AS MULHERES NA IMAGÉTICA CARNAVALESCA NA CIDADE DE
SÃO PAULO DOS ANOS 1920
Zélia Lopes da SILVA[1]
Resumo: Neste texto discuto a presença feminina no carnaval da cidade de São Paulo, de meados dos anos vinte, a partir das elaborações visuais, considerando-se que esse tipo de fonte é significativo no registro dos carnavais da cidade. Exploro as articulações entre essas elaborações e o universo social do qual elas fazem parte e, ainda, as especificidades inerentes à própria linguagem. Entre tantos tipos, as folionas paulistas transfiguraram-se em pierrôs, princesas, prisioneiras, ciganas, espanholas, buscando divertir-se e divertir o outro, com suas troças e irreverências, seguindo o espírito dessas celebrações.
Palavras-Chave: Mulheres folionas, carnaval paulistano, imagética carnavalesca
Abstract: In this text, we aim to examine the feminine presence in the carnival of São Paulo city during the 1920’s. We will focus on visual elaborations considered as a significant source of register of São Paulo carnivals. We will study the articulations between these elaborations and the social universe of which they are part of, and yet, the inherent particularities pertaining to thelanguage. Among so many kinds of costumes and following the spirit of these celebrations, the women from São Paulo dressed up as Pierrots, princesses, prisoners, gypsies, Spaniards trying to entertain themselves and the other with their mockeries and irreverence, criticizing the customs of the Brazilian society.
Keywords: carnival women, paulistano carnival, carnival images
1. As fontes visuais: possibilidades e limites
A discussão sobre a presença das mulheres nos festejos carnavalescos na cidade de São Paulo, no período em questão, esbarra na precariedade de informações sobre essa participação, situação que se agrava quando tentamos acompanhar a desenvoltura da mulher popular em tais festividades.
Por ser uma festa ainda subordinada aos valores e ao gosto das elites, essa característica define, igualmente, os registros desse acontecer nos meios de comunicação, como os jornais e revistas da época, que privilegiam os segmentos endinheirados e médios da sociedade paulistana. Constatar tal situação não significa assumir que somente essa elite controlava as regras e todos os espaços desses festejos, uma vez que os segmentos populares, cada vez mais, pressionavam no sentido de garantir a partilha do espaço público e de chegar às avenidas principais, palco privilegiado das ditas celebrações e até então território quase exclusivo da elite.
A bibliografia especializada insiste tratar-se de uma festa predominantemente marcada pelo domínio do homem em sua estrutura de organização. Nos espaços públicos, os desfiles de carros (o famoso corso), e as apresentações das Grandes Sociedades Carnavalescas tinham o predomínio masculino, o que se reproduzia nos circuitos privados, notadamente nos clubes cujos bailes eram organizados a partir da mesma perspectiva. A mulher de elite e de segmentos médios ou mesmo as de origem popular eram apenas coadjuvantes nesses festejos[2]
Essa tese parece excessivamente exagerada, embora identifiquemos algumas dificuldades para apreensão do envolvimento das mulheres nas pândegas carnavalescas, pela carência de fontes, situação parcialmente sanada com a localização de significativo material iconográfico que se constitui em alternativa relevante, embora limitada, considerando-se que esse registro passa pelo viés de classe por restringir-se ao próprio grupo endinheirado.
Esse tipo de material só muito recentemente passou a ser explorado pelo historiador que, em regra, o utilizava como ilustração do texto escrito. Tal perspectiva foi recorrentemente argüida por Marcos Silva em diferentes trabalhos, apontando naquele momento uma certa timidez dos historiadores para lidar com essas fontes, postura que se repete em “A construção do saber histórico - Historiadores e Imagens (1992/1993)”, artigo publicado em 19953[3].
Na mesma linha de argumentação posicionou-se Míriam M. Leite, que também insiste que essa perspectiva, nos últimos anos, vem estilhaçando-se com o surgimento de pesquisas que tomaram imagens como fontes e se interrogaram sobre sua natureza de materiais visuais.
O desdobramento desse processo apontou para uma nova perspectiva que rompeu com as antigas premissas, inscrevendo a imagem no campo dos múltiplos materiais de pesquisa que, tal qual a fonte escrita , buscam definições de métodos para o seu tratamento. A autora, no livro Retratos de Família[4], realçou que o uso da fotografia como ilustração percorreu uma longa tradição de pesquisa no campo das Ciências Humanas, visto que era conferida a ela a condição de prova, de objetividade ímpar.
Refletindo sobre essa questão, Annateresa Fabris[5], citando Francesca Alinovi, argumentou que tal atributo de "veracidade", em si mesmo, foi uma decorrência dos qualificativos conferidos à fotografia desde o seu nascimento e que tem a ver com sua dupla natureza de arte mecânica: o de ser um instrumento preciso e infalível como uma ciência e, ao mesmo tempo, inexato e falso como a arte. Embora a fama adquirida de prova irrefutável tenha se orientado por essa filiação técnica, como lembrou Fabris, os primeiros ensaios fotográficos mostraram que o novo invento pautou-se, sobretudo, por um repertório derivado da tradição pictórica: retrato, paisagens e naturezas mortas[6].
Esse duplo aspecto nem sempre foi considerado, prevalecendo o entendimento de seu caráter de prova irrefutável. Porém, como nos advertiu Boris Kossoy[7], as imagens carregam significados, mesmo aquelas que apresentam “aparente inocência” como as fotos do passado.
Essa mesma situação também ocorre com as fotos do presente. Tal constatação pressupõe que se deve considerar que manipulações ou interpretações de diferentes naturezas ocorreram ao longo da vida de uma fotografia, desde o momento em que ela foi materializada iconograficamente.“Tais manipulações/interpretações, que muitas vezes se confundem numa única atitude, envolvem: o fotógrafo que registra - e cria - o tema, o cliente ou contratante que lhe confia a missão de retratar ou documentar; a casa publicadora, que a utiliza segundo determinada orientação editorial”[8].
Mas o fotógrafo ao criar o tema, no entender de B. Kossoy, fez sua seleção num quadro de possibilidades de “ver, optar e fixar um certo aspecto da realidade cuja decisão coube exclusivamente a ele, quer estivesse registrando o mundo para si mesmo ou para o seu contratante”[9].
Arrematando essa problematização, diria que as observações feitas por Silva e Leite caminham no sentido de apontar a reversão da tendência de uso desses materiais, definindo a ruptura da perspectiva que os tomava como simples ilustração, embora essa postura do historiador frente à imagética tivesse uma razão de ser. No caso da fotografia, ligava-se à concepção que se firmou em relação à mesma, conferindo-lhe a condição de prova e aferição do real, a partir do entendimento de seu aspecto meramente técnico, ou seja, o de testemunho e prova irrefutável do real. Ora, essas questões deslocaram-se rapidamente, apontando para o entendimento da imagem (fotográfica, caricatural ou pictórica) em sua dimensão mais ampla, buscando os seus pontos de intercessão e não somente de seccionamento.
Além disso, cabe assinalar que esse tipo de documentação não escapa, igualmente, à condição de fragmento do passado que expressa o resultado final de uma seleção de possibilidades, e isso não pode ser perdido de vista. Assim, nas reflexões sobre os festejos de Momo na cidade de São Paulo, estamos utilizando algumas fotografias das fotografias, publicadas entre os anos de 1923 e 1931 pela revista A Cigarra, relativas ao carnaval em São Paulo. Essas fotografias expressam dois tipos de situações: 1) as fotos "gerais", identificadas pela revista A Cigarra, em legendas que informavam aos leitores tratar-se de família ilustre da sociedade paulistana, sem a indicação individual de cada componente fotografado; 2) e também as "anônimas", referentes a foliões que não foram identificados. Mesmo entre o primeiro grupo não havia uma preocupação em identificar cada folião. Entre as imagens citadas apareciam ainda aquelas enviadas diretamente pelas famílias abastadas para serem publicadas pela revista. Nesse caso, a identificação vinha acompanhada de alguns dados que realçavam os atributos do sujeito fotografado, fosse ele homem, mulher ou criança, e também o fotógrafo. Geralmente são fotos de estúdio que assumem as características já assinaladas por Boris Kossoy.
Tal material constitui-se de fotografias históricas cujo tratamento exige alguns cuidados metodológicos, de modo que garantam sua inserção no contexto em que se originou, como nos adverte Míriam M. Leite. Uma outra postura a ser seguida será agrupá-las por assunto (ou tema), embora as fotos carnavalescas tenham sua especificidade, pois as fantasias lhes conferem essa característica. Tal procedimento metodológico foi utilizado tanto por Míriam M. Leite[10], quanto por Roberto Da Matta[11], que elaboraram pesquisa tomando a fotografia comodocumento.
Embora possamos identificar uma certa convergência, entre os autores citados, em relação a esse procedimento, não significa que ambos tivessem as mesmas posturas na abordagem da imagem fotográfica. Míriam Moreira Leite, por exemplo, preocupou-se com a historicidade dessa imagem, enquanto que Da Matta não atribuía muiita significação, uma vez que “o carnaval opera(va) com a noção de tempo cíclico”, que se repetia a cada ano. Nas fotos trabalhadas pelo autor, as referências de tempo e espaço ficaram diluídas e não apresentam qualquer significação no cômputo de sua análise. Para ele "as imagens fotográficas (...) foram reunidas em conjunto e muitas vezes comentadas enquanto tal. De outras vezes, porém, preferi(u) o comentário individual"[12].
Assim, neste texto discutirei algumas fotos de folionas e uma caricatura de Benedito Carneiro Bastos Barreto — o famoso Belmonte —, que foram publicadas em A Cigarra ao longo dos anos vinte. A caricatura, por sua característica irreverente e de demolição, constituise em material privilegiado para pensarmos o universo mais abrangente que envolve esses festejos - o que pode ser ampliado com algumas fotos de folionas - e permite demarcar, mesmo que de forma preliminar, as preocupações que orientaram o imaginário social dos anos vinte do século passado, período marcado por profundos questionamentos em relação à forma como a sociedade estava organizada. E, ainda, ela permite, a partir de uma linguagem própria, definir as nuanças da festa de Momo em São Paulo, que envolvia as elites e os segmentos médios, nos espaços públicos e agremiações de lazer.
2. As transgressões carnavalescas das mulheres paulistanas
Antes de tecer algumas considerações sobre as possíveis abordagens que o tema sugere, cabe assinalar que, no cotidiano dos festejos de Momo, a mulher paulistana emergiu em diferentes disfarces e, em algumas situações, manifestou os seus desejos. Transfigurou-se em índia americana estilizada, personagens de contos de fada, como a “Branca de Neve”, ou ainda em “figuras orientais”. Vestiu-se de rainha, Colombina, Pierrô/Pierrete, serviçal doméstica, prisioneira, cigana, espanhola e bandeirante.
Muitas dessas fantasias de difícil identificação por aparecerem bastante estilizadas, sugerem a tematização de certos tipos que faziam parte da sociedade e da imaginação social como é o caso da mocinha, na foto da figura 1, que supomos tratar-se de uma “cigana” estilizada.
Porém, em algumas dessas representações as folionas fizeram troça e criticaram os valores considerados anacrônicos. Reafirmaram sua paulistanidade fantasiando-se de bandeirantes ou, ainda, sua origem ou nacionalidade. A busca ou o reforço das origens foi recorrente nessas representações.
Figura 1- Cigana, A Cigarra, 1922. |
Não só os tipos mobilizavam a imaginação das paulistas folionas. Elas também buscaram inspiração nos grupos marginais da sociedade, como os piratas, presos e ciganos, cujos valores se constituíam no reverso da “boa” sociedade. Mesmo assim, tais grupos foram projetados nas avenidas e salões, o que nos leva a indagações sobre o significado dessas opções. Ou seja, por que esses tipos e grupos extravasaram o universo popular, e o que significava para as elites a recorrência às fantasias que tematizam esse campo? Como pensar essa incorporação de elementos que extrapolam o seu mundo?
Penso que refletir sobre as fantasias implica, por um lado, perscrutar os significados simbólicos que envolvem certas tematizações, os quais não podem ser abstraídos dos sujeitos reais que serviram de inspiração, e, por outro, que nessas fantasias existem dois aspectos importantes a realçar, além dos já mencionados: 1. um deles é a preocupação em garantir os elementos que permitem provocar o riso, através da inversão de papéis; 2. o outro é a busca de diálogo com o público por meio da zombaria.
Mesmo entre as elites, a inversão de papéis e o riso derrisório foram elementos importantes do seu aparecer no espaço público, castigando em algumas situações, de forma impiedosa, valores considerados anacrônicos que as aprisionavam em seu cotidiano.
Exemplos das situações apontadas podem ser percebidos em algumas fantasias, como o
“Bloco de casar... eu posso”, “o grupo de prisioneiros”, as “serviçais domésticas”, cujas inversões propiciavam o chiste, a zombaria e a busca, por meio do riso motejador, de interlocução com o público. Os presos, por exemplo, serviram de inspiração para um grupo de foliões — homens e mulheres — que, fantasiado de “prisioneiros”, desfilaram no corso da Avenida Paulista (Figura 2). Roupas listradas, número de identificação no peito e máscaras pretas, garantiam o completo disfarce. Nesse caso, “o riso enquanto arma de destruição”[13]demolia a falsa autoridade e a falsa grandeza de Momo. Os foliões, ao inspirarem-se naqueles que de fato subvertiam as regras do viver em sociedade, metaforicamente pretendiam transgredir a ordem reinante e, aproveitando-se da “liberdade carnavalesca”, escapar do aprisionamento dos valores aos quais estavam submetidos em seu cotidiano.
Figura 2. A Cigarra, 1924 Carnaval na Avenida Paulista |
Já os trajes ciganos podem ser pensados a partir de uma representação mais ampla que remete à vida desse próprio grupo e aos significados a ele atribuídos pela sociedade em sentido mais amplo.
Nas percepções veiculadas na sociedade, o grupo é visto numa dupla acepção que traduz aspectos de sua cultura marginal, com suas faces negativa e positiva simultaneamente. Nucleando esse entendimento, encontra-se a magia de uma vida nômade que aparece marcada por percepções que enfatizam a sensualidade e as paixões ardentes, que são vivenciadas por homens e mulheres do grupo manifestam-se em seu estilo de vida e em suas músicas e danças. Ou seja, por assumirem uma postura marginal à sociedade, talvez aí esteja o apelo para ser recorrentemente tematizado durante o carnaval e também sejam indicativos de elementos que despertam a curiosidade e a imaginação em sua volta.
Tendo em mente as questões assinaladas é possível pensar que esse tenha sido o sentido que, em 1924, o grupo cigano despertou em moças e rapazes das elites que desfilaram em carro aberto na Avenida Paulista portando seus trajes característicos. As moças vestiam blusa branca de manga curta sob colete curto, de cor contrastante (a foto era em preto e branco). Usavam como adorno um lenço amarrado na cabeça em forma de touca. Os brincos de argola complementavam o traje. Os homens vestiam o mesmo “disfarce”: camisa branca sem gola, colete pequeno e uma tira amarrada na cabeça[14].
3. As faces de “Colombina”...e os desejos da libido
Ao longo dos anos, a mulher paulistana transfigura-se, mediante a personagem “Colombina”, em mulher fatal, símbolo dos desejos masculinos, que transita entre o jogo de sedução sem compromissos de Arlequim e o amor absoluto de Pierrô, projeção já bastante disseminada no imaginário coletivo do país. Tal personagem não estava presa a qualquer convenção social e, recorrentemente, aceitou a corte do personagem/sujeito Arlequim, sugerindo o vivenciar de experiências amorosas apenas toleradas aos homens.
Mas em 1925 tal mulher foi castigada pela sátira carnavalesca. Em “inocente” desenho, Belmonte (figura 3) a destroça de forma impiedosa. A cena tem ao fundo uma lua cheia, árvores ladeando o casal, em clássico jardim, propiciando ao par romântico todo um clima sedutor. Na charge, o cenário onírico é violentamente destroçado pela legenda que arrebenta os efeitos ilusionistas que dão sustentação àquela paisagem. A mesma postura demolidora desdobra-se à legenda que, no diálogo entre os amantes, evidencia um Pierrô distraído e nada romântico.
Colombina tenta partilhar de seu “estado de espírito”, indagando sobre os motivos de sua tristeza, e tem como resposta um assunto oposto ao esperado pelo cenário romântico que os envolve e, por isso mesmo, tem a força destroçadora das múltiplas projeções que se criaram em tornos desses personagens míticos e também do carnaval.
Figura 3 – Belmonte, Frivolidades de Colombina, A Cigarra, 1925. |
O desenho e o diálogo entre Colombina e Pierrô acenam para duas situações: a primeira evidencia o descompasso entre imagem e legenda, que buscou, por meio do contraste, provocar o riso do leitor e imprimir avassaladora crítica a esse mito do carnaval duplamente banalizado. Já a segunda remete ao desenho. O autor brinca com alguns dos significados que a paisagem adquire na pintura e que sinalizam para suas características ilusionistas.
Além desses contrastes que configuram um dos princípios dos comics e elemento primordial do riso de derrisão, tal elaboração procurou destruir as ilusões construídas em torno dos sonhos de carnaval, expressos no mito de Colombina, mulher de beleza ímpar e arrebatadora, capaz de provocar sentimentos de amor e paixão, mas também passível de deixar-se seduzir por um conquistador qualquer, tal qual Arlequim. Na cena em questão, essa simbologia foi destroçada pela indiferença de Pierrô que, sequer, notou sua presença, mesmo que o cenário estivesse carregado de ícones do romantismo, que sempre enlevaram determinada elaboração sobre a relação amorosa.
Nas passeatas públicas, como o corso, aqui e acolá, os “grupos” fantasiados buscavam manter o chiste como elemento próprio do carnaval ao fantasiarem-se, por exemplo, de“serviçais domésticas”, com suas toucas e aventais de organdi adornados com rendas.
Nesse caso, traziam ao espaço público o sentido irônico do carnaval através de uma dupla inversão que tinha como objetivo provocar o riso, já que nessa fantasia está presente um dos elementos de inversão que provoca o riso, que é parecer o que não era[15]
Embora o grupo usasse a .fantasia para compor um tipo, o público sabia que os seus integrantes eram mocinhas das famílias endinheiradas. Aí residia a graça da transfiguração, uma vez que o personagem escolhido era antípoda ao mundo real daqueles sujeitos.
Ao longo da década seguinte, esse padrão de carnaval permaneceu nas ruas e espaços fechados, nos quais as moças e senhoras das elites exibiam-se em ricos trajes, ora compondo um tipo específico, ora desafiando os costumes e valores a partir de trajes que colocavam em xeque aquelas regras.
As transgressões, contudo, não foram evidenciadas apenas nos trajes. Elas aparecem, nos primeiros anos da década de trinta, em situações que sinalizam para uma certa liberalidade dos costumes, e foram expressas nas intimidades amorosas (apalpadelas, beijos e abraços, sugerindo relações amorosas mais íntimas), trocadas entre os foliões, enfaticamente registradas nas crônicas jornalísticas e nas narrativas literárias do período (No país do carnaval, de J. Amado, e Parque Industrial, de P. Galvão)[16]
Contudo, tais condutas não podem ser.tomadas como práticas corriqueiras do dia-a-dia de homens e mulheres fora dessas festividades. O recato ainda era um valor caro aos brasileiros, sobretudo se pensarmos que mesmo as fantasias femininas das moças de elite e de classe média apenas insinuavam ligeiras transgressões expressas no realce das formas e no uso de fantasias de tecidos transparentes (sempre forrados), indicativas de possibilidades novas de sedução e de liberalidade dos costumes.
Porém, a literatura engajada da época[17] evidencia a vulnerabilidade da mulher popular durante esses festejos, colocando-a como presa fácil aos apelos da libido e às investidas libertinas dos jovens burgueses, sempre à caça de novas emoções, livres de compromissos.
Essa não é a posição da imprensa vinculada a esses estratos populares. Embora não dê destaque particularizado a esse segmento, noticia a participação e êxito de jovens e senhoras nas celebrações de Momo, em diferenciados níveis: participando dos desfiles, integrando as diretorias de agremiações, organizando bailes, dirigindo os blocos ou concorrendo a prêmios em bailes à fantasia em seus próprios clubes.
Deduzimos dessas avaliações que, embora fossem preconizadas regras rígidas para as mulheres de todos os segmentos sociais, os festejos momescos propiciavam aos diferentes estratos sociais experiências novas a partir de outros padrões de valores, independentemente de sua condição social. Tanto é assim que as críticas às “condutas desviantes” atingiram, igualmente, as mulheres das elites e das classes populares.
Cremos ter demonstrado as possibilidades das fontes visuais para a tematização de certos aspectos que envolvem as práticas culturais e os valores que permeiam essas relações e que se expressam nas múltiplas dimensões do cotidiano de homens e mulheres, até mesmo nos festejos momescos, na cidade de São Paulo daqueles anos.
Artigo publicado em Patrimônio e Memória, UNESP – FCLAs – CEDAP, v.1, n.2, 2005 p. 50
[1] Livre Docente do Departamento de História – FCL – UNESP/Assis – SP –
Brasil - e-mail: zelials@assis.unesp.br Estas reflexões resultam de ampla pesquisa para minha tese de Livre Docência sobre o carnaval na cidade de São Paulo entre 1923 a 1938 que foi defendida em junho de 2004, na UNESP, Campus de Assis.
[2] QUEIROZ, M. I. P. O carnaval brasileiro. O vivido e o mito. 1ª ed. São Paulo: Brasilienese, 1992.
[3] SILVA, M. A. A construção do saber histórico - Historiadores e Imagens (1992/1993). Revista de História. São Paulo: USP, n.125/126, 1991/1992.
[4] LEITE, M. M. Retratos de família. Leitura da fotografia histórica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993 (Texto e Arte, v. 9).
[5] FABRIS. A. A fotografia e o sistema das artes plásticas. In: FABRIS. A (Org.) Fotografia. Usos e funções no século XIX, São Paulo: EDUSP, 1991, p. 173.
[6] Ibid, p. 174.
[7] KOSSOY, B. Fotografia e História. São Paulo: Ática, 1989.
[8] Ibid, p.72.
[9] Ibid, p. 72/73.
[10] LEITE, M. M. Retratos de família. Leitura da fotografia histórica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993 (Texto e Arte, v. 9).
[11] DA MATTA, R. da. Universo do carnaval: imagens e reflexões. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1981.
[12] DA MATTA, op. cit., p. 34.
[13] PROPP, V. Comicidade e riso. São Paulo: Ática, 1992.
[14] A Cigarra, 1924.
[15] PROPP, V. op. cit.
[16] As obras citadas são as seguintes: AMADO, J. No país do carnaval. Rio de Janeiro: Record, 1997. LOBO, M. (GALVÃO, Patrícia). Parque industrial (1933). São Paulo: Alternativa, s/d. Edição Facsimilar).
[17] Veja-se, por exemplo, o romance de Patrícia Galvão, Parque industrial, que explora a problemática da mulher popular, branca e negra, jovem e ingênua que, em seu entendimento, torna-se presa fácil de jovens burgueses sem escrúpulos, durante esses festejos. Curso SEO
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