Representações femininas a partir de grupos masculinos no carnaval brasileiro
Sérgio Luiz Gadini[1]
Sem qualquer pretensão de (re)contar a história do  carnaval, o texto que segue faz um recorte em manifestações desta que é uma das mais reconhecidas festas populares do País, a partir de grupos masculinos que, em desfiles de rua ou em clubes fechados, fazem referência ao gênero feminino, seja pelo nome de identificação, objetos  ilustrativos ou situações que envolvem o cotidiano da mulher brasileira.
Não se trata de um estudo histórico, e tampouco sociológico, mas um ensaio que tem por base o nome (referência de identificação) de alguns grupos ou blocos carnavalescos, em diferentes cidades brasileiras que fazem alguma alusão ao universo feminino tendo por base o ano de 2010. A amostra é aleatória, considerando algumas cidades, onde tais práticas se tornaram corriqueiras em momentos de carnaval.
Vale dizer, para efeito introdutório, que o presente ensaio não visa atacar nem unificar tais manifestações em um único e simples rótulo (preconceituoso ou não), mas indicar aspectos que, considerando variáveis e elementos históricos, podem ser melhor compreendidos. Isso, claro, em nada livra as dimensões preconceituosas que dizem respeito ao universo feminino brasileiro. A busca de uma caracterização histórica, seja quanto ao carnaval quanto ao sentido do riso (cômico) em festas populares, justifica o esforço de contextualização de tais práticas, que já registraram outros formatos e objetos temáticos.
Breve história das festas (de carnaval) populares
As referências históricas em torno do carnaval já dispõem de inúmeras contribuições, seja na forma de estudos conceituais ou descrições de casos e experiências, que registram a pluralidade de expressões e modos de ser fazer esta que, hoje, é reconhecida, em diferentes lugares do mundo, como uma das maiores festas populares, industrializada ou não por grandes corporações de mídia e da cultura.
Uma destas referências é do pernambucano Luiz Beltrão, que discute o caráter folkcomunicacional das festas populares. Para Beltrão (1980), as mais antigas civilizações já celebravam alguma forma de manifestação carnavalesca. Ou, em variados formatos, tinham um momento em que “os papéis sociais se invertiam, caíam as barreiras dos preconceitos, afrouxavamse os laços que, no cotidiano, criavam a contenção e o comedimento”, diz Beltrão, lembrando que, “sob máscaras e fantasias, sob os efeitos do vinho, da música e da agitação ambiental, os indivíduos se sentiam livres para dizer e fazer quanto as normas do convívio social lhes vedavam no tempo comum” (p. 87).
Ao contar a história do carnaval brasileiro, Ferreira (2004, 11) observa que o atual cenário do setor resulta de “diversos discursos que, ao longo dos últimos 150 anos, vem sendo lentamente elaborado através de variadas disputas de poder. Elite, povo, governo, folcloristas, jornais, rádios, gravadoras, televisão, capitais, periferias, Rio de Janeiro, Salvador, escolas de samba, trios elétricos, Recife, São Paulo e frevos são alguns dos muitos atores envolvidos na construção de um significado para a grande festa nacional”.
Conta a história que, já “na Grécia Antiga, alguns ritos, como os da iniciação de jovens para a integração com a vida adulta, já incluíam pessoas mascaradas e fantasiadas”, explica Ferreira. “Em Esparta, os meninos eram treinados para se tornarem cidadãos através de exercícios que terminavam numa grande mascarada onde, por algumas horas, o comportamento era o oposto ao da vida adulta”. E, “fantasiados de mulher, de velho ou de sátiro, os rapazes realizavam encenações obscenas ou humorísticas, com muita bebedeira e cantorias” (Ferreira, 2004, 18).
Homem se vestir de mulher para desfile também já foi prática conhecida no Egito Antigo. Diz a lenda que “uma numerosa multidão enchia as ruas da cidade desde o início da manhã para assistir ou participar da procissão em honra à deusa. A comemoração era aberta por pessoas com disfarces variados como os de soldado, caçador, gladiador, magistrado, filósofo ou mesmo homens travestidos de mulher...” (Ferreira, 2004, 19).
A invenção do carnaval teria sido da própria Igreja Católica, em 604, pelo Papa Gregório I, ao determinar que um período do ano “os fiéis deveriam deixar de lado a vida cotidiana para, durante um certo número de dias, dedicarem-se exclusivamente às questões espirituais” (Ferreira, 2004, 25). Em 1091, o primeiro dia da quaresma é nomeado de “quarta-feira de cinzas” e, pois, nos 40 dias seguintes “os fiéis deveriam se privar dos prazeres da vida material e dedicar-se a elevar seu espírito a Deus e a meditar sobre Cristo e sua ressurreição, que seria festejada no fim da Quaresma, no domingo de Páscoa” (p.26). Forjou-se, assim, o hábito de fazer “festas nos dias imediatamente anteriores ao longo período de abstinência”. É daí que surge a expressão carnaval: Carnelevarium, caramentran, carnisprivium, carnelevare ou carnelevamem são alguns dos termos que designam as festas carnavalescas. O que há em comum, nas diferentes manifestações, é a manutenção atualizada de hábitos das festas pagãs, brincadeiras, danças e o uso de máscaras e fantasias.
 A existência de grupos organizados para se divertir no carnaval remonta ao mesmo período medieval. Em diferentes povoados europeus, dos primeiros registros constata-se que tais grupos (na forma de 'sociedades', clubes ou blocos) a referência era “critica e comentar as relações entre os casais da cidade ou bairro onde se encontravam”, operando como 'denúncia' de situações que não aparentavam práticas sociais habituais. “Um de seus alvos eram as viúvas e os casamentos realizados entre pares considerados desproporcionais entre si”. Esses exemplos envolviam casos, hoje comuns, como “um homem muito velho com uma mulher muito nova, ou um homem muito gordo com uma mulher muito magra, ou uma mulher muito pobre com um homem rico”. Em geral, os grupos organizavam “cortejos passavam em frente  à casa escolhida, momento em que se realizava uma espécie de panelaço, batendo-se em caçarolas e sacudindo-se sinos na direção do lar dos 'pobres' esposos”. Tais brincadeiras, que deviam mesmo ser agressivas e discriminatórias, eram denominadas “charivaris ou assuadas” (Ferreira, 2004, p.37).
O preconceito de gênero, de alguma forma, parece marcar parte da história de brincadeiras carnavalescas, onde se buscava diversão pela 'eleição' de atores a ser ridicularizados. Assim, “com o crescimento do teatro de rua, no final da Idade Média, muitas das sociedades alegres passaram a representar peças ou esquetes, frequentemente difamatórios, durante os dias de Carnaval, nos quais os 'cornudos' eram um dos principais temas”, explica Ferreira (p.37).
Trazido ao Brasil pelos colonizadores portugueses, com base nas festas de entrudo, o carnaval foi aos poucos adquirindo contornos próprios, passando por adaptações que tentavam conviver, de um lado, com as brincadeiras (agressivas, muitas vezes) dos pobres e escravos pelas ruas da cidade e, por outro lado, com o esforço das elites lusitanas da Casa Grande por festas apropriadas ao gosto e estilo da nobreza. Com o crescimento das cidades brasileiras, o carnaval também adquire traços regionais, de acordo com ritmos musicais, grupos de colonização diferenciada, até a gradual 'industrialização' festiva, registrada a partir de meados do século XX, com o fortalecimento dos desfiles de ruas, a partir da então capital federal (Rio de Janeiro), que se torna a referência carnavalesca nacional, já nas primeiras décadas (1900), com suas influências híbridas e reinvenções criativas dos blocos e escolas cada vez mais profissionais.
Riso, máscaras e representações carnavalescas
Ao apresentar o contexto da cultura popular na Idade Média, Bakhtin (2002) observa que pelos seus gestos e hábitos (ritualísticos e cômicos), os festejos do carnaval “ocupavam um lugar importante na vida do homem medieval”. Assim, “além dos carnavais propriamente ditos, que eram acompanhados de atos e procissões complicadas que enchiam as praças e as ruas durante dias inteiros, celebravam-se também a 'festa dos tolos' (festa stultorum) e a 'festa do asno'; existia também um 'riso pascal' (risus paschalis) muito especial e livre, consagrado pela tradição” (Bakhtin, 2002, p.4).
Ao retomar situações históricas que ilustram a presença do riso, Bakhtin (2002) lembra que “no folclore dos povos primitivos encontra-se, paralelamente aos cultos sérios (por sua organização e seu tom), a existência de cultos cômicos, que convertiam as divindades em objetos de burla e blasfêmia ('riso ritual'); paralelamente aos mitos sérios, mitos cômicos e injuriosos; paralelamente aos heróis, seus sósias paródicos” (p.5). Mas, “durante o carnaval é a própria vida que representa, e por um certo tempo o jogo se transforma em vida real. De acordo com o autor (p.7), essa é a natureza específica do carnaval, seu modo particular de existência”.
Segundo Bakhtin (2002, p.10), “as formas e símbolos da linguagem carnavalesca estão impregnados do lirismo da alternância e da renovação, da consciência da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder. Ela caracteriza-se, principalmente, pela lógica original das coisas 'ao avesso', 'ao contrário', das permutações constantes do alto e do baixo ('a roda'), da face e do traseiro, e pelas diversas formas de paródias, travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos bufões”.
As manifestações carnavalescas também são marcadas pela presença do grotesco. Na leitura de Bakhtin (2002, 18), “no realismo grotesco, a degradação do sublime não tem um caráter formal ou relativo. O 'alto' e o 'baixo' possuem aí um sentido absoluta e rigorosamente topográfico”.
Enquanto alto seria a dimensão celeste (o céu), o baixo seria o mundo terreno, talvez mais próximo de uma dimensão 'mundana'. E, em seu aspecto corporal, “o alto é representado pelo rosto (a cabeça), e o baixo pelos órgãos genitais, o ventre e o traseiro”. A produção de “imagens grotescas” seria, assim, um modo de expor aspectos 'mundanos', limitados talvez, mas 'não perfeitos', na medida em que demandam evolução, em mudança, para um cenário ideal ('alto' ou quem sabe 'divino').
Deste modo, na esteira de François Rabelais, Bakhtin (2002, p.22) identifica nas expressões grotescas um lado mais rude, 'feio' para a estética medieval dominante, que mantém uma “natureza original” e diferenciada das situações cotidianas habituais e, portanto, teriam espaço de manifestação em momentos lúdicos, como as festas e o próprio carnaval. Em relação ao corpo humano, por exemplo, as produções representativas buscariam de um visual “desfigurado”, disforme e, em certo sentido, monstruoso, em geral apresentado pelo exagero, caricatura forçada e bizarro. É aí que o 'grotesco' encontra espaço nas festividades carnavalescas. Corpos fisicamente deformados são imagens da escultura que ilustram o lado grotesco e contrastam com um padrão estético de beleza que foge ao habitual, visível e  exposto no dia-a-dia, mas projetam ao mesmo tempo a passagem da própria condição humana de perenidade, ainda que não divinamente idealizada. É a ambigüidade que marca a expressão grotesca (seja clássica, medieval ou moderna).
Mas, vale ponderar, a imagem grotesca não é exclusividade medieval, pois pode ser encontrada “na mitologia e na arte arcaica de todos os povos, inclusive na arte pré-clássica dos gregos e romanos”. Essas expressões, embora relegada nas artes oficiais, ainda assim encontráveis em peças artesanais de miniatura, cerâmica, máscaras cômicas, estatuetas e demais objetos e expressões literárias que integram as artes na história humana.
Por isso, é relevante retomar a origem do termo grotesco. “Em fins do século XV, escavações feitas em Roma nos subterrâneos da Termas de Tito trazem à luz um tipo de pintura ornamental até então desconhecida. Foi chamada de grottesca, derivado do substantivo italiano grotta (gruta)”, explica Bakhtin (2002, p. 28). Nas diferentes tendências das décadas e séculos seguintes (entre XVII e XVIII), o grotesco também vai registrar variações em suas feições, de acordo com tendências e características dos formatos artísticos (commedia dell'arte, comédia de Molière, romances cômico ou filosóficos, etc).
O uso da máscara também registra uma explicação histórica. Para Bakhtin (2002), a máscara traduz a alegria das alternâncias e das reencarnações, a alegre relatividade, a alegre negação da identidade e do sentido único, a negação da coincidência estúpida consigo mesmo; a máscara é a expressão das transferências, das metamorfoses, das violações das fronteiras naturais, da  ridicularização, dos apelidos; a máscara encarna o princípio de jogo de vida, está baseada numa peculiar inter-relação da realidade e da imagem, característica das formas mais antigas dos ritos e espetáculos (p.35).
Como se pode perceber, as variadas estratégias de expressão popular, tendo por base alguns elementos já utilizados em festas carnavalescas, indicam a escolha de modos de representação que podem ser reconhecidas, guardadas as proporções, nas atuais manifestações do carnaval brasileiro, a partir das referências de alguns grupos existentes  em cidades brasileiras (em 2010), que fazem referência ao universo feminino.
Grupos carnavalescos masculinos tentam representar (ou imitar) a mulher
O pesquisador da cultura popular, Roberto Benjamin, uma das referências dos estudos em Folkcomunicação no Brasil, discute as imitações femininas no livro   Folguedos e Danças de Pernambuco (1989). “O homem se vestir de mulher tem várias conotações, a mais corrente e, ao mesmo tempo, a mais inadequada é a que sugere a homossexualidade, ridicularinzando-a”, explica. Mas, há outros folguedos em que a figura do travesti comparece, na maioria dos casos porque, nas suas origens e por muito tempo, a mulher não participava dos folguedos. Ela era substituída por homens caracterizados de mulheres. E ainda é assim no folguedo Cavalo-marinho, uma variante pernambucana/paraibana do bumbameu-boi (ocorrente na zona da mata norte de Pernambuco e zona da mata sul da Paraíba), onde são representadas por homens as figuras da pastorinha e das damas do baile dos galantes. A situação limite da mulher também é representada pela figura da 'catirina', do cavalo-marinho (uma pescadora que se apresenta grávida). Hoje, essa figura da catirina compõe, também, o folguedo carnavalesco maracatu rural (disseminado na zona da mata de Pernambuco e Paraíba e ocorrente também nas cidades das regiões metropolitanas do Recife e de João Pessoa). (BENJAMIN[2], 2010).
Benjamin lembra que existem outras manifestações onde aparece a figura do 'travesti', como o folguedo carnavalesco das 'cambindas': “variantes autônomas das festas de reis negros, que acontecem nas cidades pernambucanas de Ribeirão, Pesqueira e Triunfo. Também há 'cambindas' na Paraíba, nas cidades de Taperoá e Lucena”. Oportuno, aqui, é destacar a constatação de que a ausência da mulher em algumas manifestações festivas poderia ter motivado o homem a representá-la, ao seu modo, pelo uso de roupas e adereços femininos (batom, calçado, anágua, rouge, dentre outros). “Em diversos grupos de diferentes folguedos os papéis femininos são desempenhados por homens; a mulher é proibida de participar”, diz Benjamin. Conforme o autor, “trata-se de uma tradição muito antiga presente em civilizações muito diferentes - na Grécia Antiga, na Inglaterra ao tempo de Shakespeare (Período Elizabetano), no Japão atual”. Geralmente, em tais  situações, “os papéis femininos são desempenhados por rapazes, quase sempre adolescentes imberbes, que vestem trajes femininos. A presença desta forma de travesti é sempre um sinal de tradicionalismo do grupo e de antigüidade do folguedo”, completa.
Benjamin (1989) esclarece o assunto, diferenciando  “os travestis dos grupos folclóricos tradicionais, das outras formas comuns de travesti, mais tipicamente urbanas, que se vêm nos carnavais e em outras ocasiões”. Para o autor, seriam duas situações bem diferentes: “o travesti que busca a completa semelhança com a mulher, com quem se identifica psicologicamente e o outro que caricata a mulher por deboche, em situações que o machismo tipifica como humilhantes e ridículas do papel social da mulher”.
A ausência de referências bibliográficas que poderiam indicar contextualmente o uso de representações femininas em festas populares, entretanto, também é apontada como uma dificuldade para avançar em uma história mais esclarecedoras de tais situações. Limite este que também marca o presente ensaio. Algumas mudanças nos papéis de representação festiva, contudo, são indiciais de outras transformações sociais, envolvendo crenças, valores morais e mesmo espaço real na vida cotidiana por diferentes setores ou grupos de gênero.
É possível conferir através dos nomes dos blocos, as formas de referência ao universo feminino. O foco da apresentação que segue em torno do nome de tais grupos deve-se a dois motivos. Em um primeiro aspecto pela limitação, de acesso à informação contextual dos blocos e, em segundo, porque o nome (valeria o mesmo para o título de um periódico ou logomarca de um produto) é a imagem primeira e referencial de um grupo que tenta forjar uma identidade. Seria, assim, o 'cartão' de apresentação de um ator. E, pois, sem muito esforço, é um importante código do que se pensa e indica com tal escolha.
Na capital paraibana (João Pessoa) são três os blocos que participam da folia de rua, desfilando com homens vestidos de mulheres: as Virgem de Tambaú, Viúvas da Torre e as Virgens de Mangabeiras. O bloco 'Viúvas da Torre', por exemplo, registra um histórico no carnaval de rua paraibano, com 17 de existência, tem hino próprio (oficial) e dispõe de estrutura de trio elétrico queacompanha os desfiles. O bloco foi criado, em 1993, por um grupo de amigos que se encontrava para beber, em uma antiga mercearia (do seu Zé Faustino) do bairro da Torre, em João Pessoa. Na origem, cinco homens se fantasiaram de preto, levando o boneco de um defunto pendurado em uma rede (era a alegoria do bloco). Logo o grupo ganhou adesão de outras “viúvas” e a brincadeira ganhou as ruas no carnaval local.
A descrição que Jéssica Callou faz (em texto publicado no Recanto das Letras, 18/02/2006), do bloco as “Virgens de Tambaú” sintetiza a ação do grupo. Conforme a autora, o carnaval pessoense teria na sexualidade seu ponto mais forte. “Só que nós aqui fomos mais inteligentes: em vez de lotar os meios de comunicação com bundas, lotamos as ruas da cidade com criaturas bizarras, conhecidas por 'virgens de Tambaú'”, diz.
Essas moças são, nada mais nada menos, do que rapazes. Isso mesmo. Uma vez por ano, e só 1,os homens de João Pessoa libertam seu lado feminino (que juram ser “sapatão”), acordam mulheres mesmo e botam as fantasias pra fora, junto com as pernas peludas em  minissaias provocantes (...) Você vê homens imensosapertados em roupas microscópicas, barrigões brancos saltando para fora de shortinhos, garrafa vazia de refrigerante de 2L (daquelas de plásticos) imitando seios, gritos falseteados, unha pintada, camisolinha do piu-piu... Os acessórios são variadíssmos. Os temas, também: seja batgirl, odalisca ou tiazinha, só não vale, aqui, ser homem. (CALLOU, 2006)
Nas Minas Gerais encontra-se, por exemplo, os blocos as 'Mimosas', em Congonhas, o 'Mamãe virei bicha', de Belo Monte, o 'Banda Santa', de Belo Horizonte. Também nas Gerais, em Juiz de Fora, tem o bloco das "Domésticas de Luxo", considerado um bloco tradicional, em que homens se vestem de mulher e ainda se pintam de preto. Em municípios da região, existem outros blocos com prática similar, denominados como 'as virgens' e as 'piranhas', que contam com a presença não exclusiva de homens.
Em São Luís (MA), existem grupos que mantêm o hábito de desfilar com homens vestidos de mulher. Entre os quais, pode-se citar os blocos 'A Bandida', 'Boneco Guelo', 'As Piranhas', 'Los Perequitos', 'As Cuquetes', o 'Unidos das Feiras Como Que...”, o 'Máquina de Descar Alho' e 'As Melindrosas'. Já no interior do Rio Grande do Norte tem, também, 'As Virgens', de Caicó (RN).
Em Corumbá, no Mato Grosso do Sul, participam do carnaval local o bloco 'Chana Cheirosa', que desfila com homens travestidos (casados ou não). Ainda no Grande Pantanal, no interior do Mato Grosso, município de Acorizal, próximo de Cuiabá, um grupo carnavalesco denomina-se 'Bloco das Piranhas”. Em uma perspectiva similar, na cidade de Santos (SP) tem o 'Bloco da Dorotéia', que mantém uma tradição bastante semelhante aos demais casos descritos. E na cidade de São José do Barreiro, interior de São Paulo, um grupo conhecido no carnaval local chama-se 'Bloco das Arrependidas'.
No município da Lapa, região metropolitana de Curitiba, embora não tenha carnaval de rua, há o desfile das "bonecas", como atração tradicional nos clubes da cidade, com a mesma estratégia de atração em que a principal característica é de homens vestidos como mulheres. Ainda no sul do País, na capital catarinense (Florianópolis), o termo que apresenta o bloco em que os homens se vestem como mulheres, é mais pejorativo e, talvez,  igualmente ambíguo. Chama-se 'Bloco dos Sujos', e seus integrantes saem pelas ruas do Centro da Cidade em época de carnaval.
E, por fim, a tradicional irreverência do carnaval  d' Olinda (PE) tem como uma de suas referências o bloco 'As Virgens de Olinda', que sai em desfile uma semana antes da data oficial do carnaval. Fundado em 1953, 'As Virgens de Olinda' conta apenas com homens no grupo e, cada ano, o tema escolhido busca refletir situações cotidianas, como política, novela, saúde, educação, dentre outros aspectos ou problemas sociais. Informações da cidade (da pesquisadora Betania Maciel) dão conta de que a adesão ao 'Virgens do Olinda' foi tamanha que, com apenas 10 anos de existência, houve uma dissidência, que resultou na criação do bloco 'As Virgens de Verdade', que desfila duas semanas antes da abertura do carnaval. Ao que tudo indica, contudo, as referências ficaram mais no nome, embora tais grupos mantenham, ainda hoje, apenas homens entre suas personagens, que mantém o hábito de ser vestir como mulheres.
Considerações Finais
Além dos casos citados, existem, nas mais diferentes regiões e estados do País, muitos outros em que pessoas, em geral homens, se organizam em blocos para participar do carnaval, tendo por referência se fantasiar como mulheres. Nessas situações, o uso de roupas, calçados, perucas e demais objetos são usados habitualmente para tentar imitar o universo feminino.
Se considerar a tradição carnavalesca, em que as máscaras e fantasias objetivam 'sair' da normalidade cotidiana, e situam, por alguns momentos, os atores em diferentes papéis sociais, confundindo relações previsíveis, pode-se dizer não haveria problema que o homem representasse a mulher. E tampouco o contrário. Embora, o mais recorrente seja o homem se apresentar como mulher.
No entanto, o problema é que, em muitas destas situações, os próprios nomes já trazem marcas de uma representação preconceituosa, mesmo que na pretensão da brincadeira e do propósito descontraído de uma inversão de papéis. Nos desfiles, o apelo às eventuais crises histéricas, como se fosse habitual ao comportamento feminino é outra recorrência visível nas representações de tais grupos carnavalescos.
Oportuno destacar o modo como os grupos, ao acionarem recursos do grotesco, da ironia e do exagero, característicos da festa popular do carnaval, produzem representações de mulheres e traduzem estereótipos de gênero. Virgens, freiras e prostitutas oscilam entre as imagens das mulheres no carnaval, projetando elementos presentes no imaginário social que ridicularizam os ‘papéis sociais’ atribuídos às mulheres.
Essa história de brincadeiras carnavalescas, portanto, mantém um sentido e efeito ambíguo: por um lado, exercita o uso da máscara e da fantasia como dispositivo de lazer festivo e, de outro aspecto, tende a exagerar nas próprias representações, como se o universo feminino – um pouco próximo das provocações medievais a atores que não  se enquadravam em comportamento 'normalizados' – fosse motivo a ser imitado.
Como o era alguma pessoa excessivamente magra ou gorda, com alguma diferença em seu organismo físico. Tais ambigüidades de representação, por seu próprio objetivo, são importantes, na medida em que impulsionam manifestações festivas do carnaval, mas poderiam levar seus atores a (re)pensar algumas estratégias de apelo que, eventualmente, podem ser entendidas como descaracterização da pretendida condição de igualmente universal entre todos os grupos e gêneros humanos.
Referências Bibliográficas:
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www.clickpb.com.br/artigo.php?id=20080127074044  - Virgens de Tambaú
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comemora-seus-quinze-anos-neste-domingo/ “Debutantes: bloco ‘Viúvas da Torre’ comemora seusquinze anos neste domingo” (24/01/2008)
http://recantodasletras.uol.com.br/artigos/113594  - “Descrevendo as virgens de Tambaú”. Por Jéssica Callou. Texto publicado no Recanto das Letras em 18/02/2006.
www.pousadapeter.com.br/index_virgens.htm
www.olinda.pe.gov.br/carnaval-de-olinda/virgens-de-verdade-fazem-a-festa-em-olinda

Artigo publicado em Fazendo Gênero 9, Diásporas, Diversidades, Deslocamentos, 23 a 26 de agosto de 2010.


[1] Professor de Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG/PR) e do Ms em Comunicação da UFPR, dr em Ciências da Comunicação. E-m: sergiogadini@yahoo.com.
[2] Informação exclusiva, escrita por Roberto Benjamin, a partir de consulta on line feita pelo autor (Gadini), entre maio e junho de 2010.