O entrudo, brincadeira praticada no período do carnaval, foi trazido para o Brasil por colonos portugueses no alvorecer do século XVII. Não obstante sua grande popularidade, pode-se afirmar que a celebração permaneceu desde o momento em que foi introduzida no Brasil até o início do século XX, período que marcaria seu ocaso, como uma festividade “fora da lei”[2]. Em Portugal, assim como no Brasil, o entrudo era bastante difundido e praticado entre a população, havendo registros da permanência de tal prática em algumas cidades portuguesas pelo menos até o final do século XIX (FERNANDES, 2001; PEREIRA, 2004). Contudo, não há certeza nem consenso entre os autores com relação à origem dessa prática.
O entrudo foi até meados do século XIX a principal e mais difundida manifestação carnavalesca no Rio de Janeiro, tendo sido utilizado para nomear o período festivo, ou seja, para denominar o conjunto de manifestações praticadas na cidade durante o carnaval. Somente após o surgimento das Grandes Sociedades Carnavalescas, em 1855, e com apoio de campanha negativa engendrada por jornalistas, médicos, higienistas, entre outros segmentos profissionais, a expressão “entrudo” passaria a designar somente o jogo das molhadelas, em oposição ao carnaval (CUNHA, 2001). Segundo CUNHA (2001), em sua face mais visível o entrudo poderia ser caracterizado como o
... costume de molhar-se e sujar-se uns aos outros com limões ou laranjinhas de cera recheados com água perfumada, com recurso a seringas, gamelas, bisnagas e até banheiras — e todo e qualquer recipiente que pudesse comportar água a ser arremessada. Incluía também, em determinadas situações, o uso de polvilho, ‘vermelhão’, tintas, farinhas, ovos e mesmo lama, piche e líquidos fétidos, entre os quais urina ou ‘águas servidas’.
Constituía o entrudo, portanto, uma oportunidade de se pregar peças a conhecidos ou passantes, oferecendo-lhes, por exemplo, acepipes providos de recheios duvidosos; momento de “guerra às cartolas”, tomando-se a elite, com seus trajes elegantes, como alvo de brincadeiras; ocasião, enfim, de fazer pilhérias com o fim de ridicularizar o outro, ações que fora daquele dado contexto podiam implicar em atritos e problemas. Um exemplo de incidente causado pela brincadeira fora de lugar aconteceu com o literato Olavo Bilac, em Ouro Preto, Minas Gerais. Residindo na cidade, afastado do Rio de Janeiro por problemas políticos, resolveu brincar com um fazendeiro local, furtando-lhe a carteira para que todos rissem de sua reação embaraçada ao perceber o acontecido. Contudo, o fazendeiro não compartilhou do espírito entrudista de Bilac, acusando-o de ladrão. O caso resultou em um duelo físico e em um convite para o escritor deixar a cidade (CUNHA, 2001).
Uma característica importante do jogo das molhadelas é sua difusão por todo o território e por todas as classes sociais, tendo sido praticado por atores sociais diversos, desde os escravos até a família imperial (SOIHET, 1998). PEREIRA (2004) em seu Carnaval das Letras, cita em nota alguns trabalhos que falam sobre a prática da brincadeira em Santa Catarina (COLAÇO, 1988), São Paulo (SIMSON, 1984) e Bahia (FRY, 1988). Pesquisas mais recentes chamam ainda a atenção para registros sobre o jogo em Minas Gerais (ARAÚJO, P., 2008). Relatos de época contribuem ainda para uma caracterização mais detalhada das feições tomadas pelo entrudo enquanto manifestação carnavalesca. BINZER (1980) - citada por PEREIRA (2004) - uma educadora alemã que residia no Rio de Janeiro, ao sair às ruas da cidade alguns dias antes do carnaval para ir ao dentista teria sido atingida por entrudistas. Nesta ocasião, escreveria a uma amiga descrevendo a cena:
Cercavam-me rostos onde se refletia o atrevido contentamento de quem vê diante de si a manifestação de uma fúria impotente: senhores elegantes, mulatinhos sujos, caixeiros vadios e até senhoras nas sacadas pareciam transformadas em demônios, rindo-se todos juntos como se tivessem conspirado contra aquela pobre infeliz torturada pela dor de dentes, alvejando-a com tais objetos resistentes e encharcantes.
O relato nos permite perceber a variedade de personagens que participavam do folguedo. Contudo, deve-se atentar para o fato de que talvez, aos olhos de um estrangeiro, a brincadeira tivesse uma aparência uniforme, como se fosse permeada pelo mesmo significado por todos os jogadores. Contudo, tal unidade parece ser meramente ilusória. Havia uma diferenciação clara entre o entrudo familiar, praticado pelas famílias abastadas da Corte, e o praticado pela população pobre do Rio de Janeiro. Tal diferença se dava em diversos níveis: o material utilizado no jogo por cada classe social, por exemplo, não era o mesmo. A elite utilizava limões-de-cheiro e bisnagas, enquanto a plebe, que não tinha condições de produzir em casa seu arsenal, munia-se dos artefatos mais baratos e mais acessíveis, utilizando tipos diferentes de líquidos: água suja, café, groselha, tinta, lama e até urina (PEREIRA, 2004). O espaço de cada um desses segmentos para realizar a sua brincadeira também não era o mesmo. A cena de senhores e escravos convivendo, ou melhor, entrudando-se, não era comum. Os escravos tinham participação no jogo das elites, servindo de apoio à brincadeira, provendo seus senhores do material necessário para o jogo. Assim a Corte praticava um entrudo doméstico, familiar, no interior de suas residências (CUNHA, 2001). A população pobre e os escravos, por sua vez, ocupavam as ruas do Rio de Janeiro como espaço próprio de exercício do jogo. Construíam, de tal modo, uma ocasião para “além da folga e do divertimento, (...) inverter sinais, e rir dos brancos.” (CUNHA, 2001).
Portanto, por mais difundida que fosse e praticada por boa parcela da população carioca em seus diversos níveis, a brincadeira muito longe de ter um caráter unificador, era o retrato da ritualização da desigualdade, sublinhando o papel social destinado a cada agente (PEREIRA, 2004).
A presença e, mais do que isso, a predileção feminina por esta manifestação carnavalesca é, segundo CUNHA (2001), consenso entre os autores, bem como uma das razões que ajudam a explicar a longevidade do entrudo. Ao tratar da participação das mulheres neste tipo de festejo, a autora chama a atenção para publicações na imprensa carioca de crônicas que faziam alusão a relacionamentos amorosos e casamentos iniciados durante o entrudo, alertando para a importância da iniciativa feminina em tais processos. Ela usa como exemplo da simpatia feminina pela brincadeira um texto publicado num periódico, o Jornal das Senhoras, em 1852, em que a colunista apresenta diversos argumentos contra os defensores do carnaval espelhado no modelo europeu. No sentido contrário, destaca ainda textos produzidos no âmbito das Grandes Sociedades, destinados especificamente às mulheres e apelando para sua intervenção no sentido de acabar com o entrudo, uma vez que era justamente entre elas que a brincadeira era mais fortemente apreciada. Deve-se ressaltar, por último, que cabia fundamentalmente às mulheres, cerca de dois meses antes do carnaval, a responsabilidade das atividades de preparação do folguedo, como a produção dos artefatos a serem utilizados.
A fabricação caseira de todo o arsenal utilizado no entrudo funcionava ainda como uma possibilidade de renda extra para as famílias mais pobres, que vendiam seus produtos pelas ruas da cidade. Entretanto, não era somente esse comércio informal que se interessava pelas mercadorias destinadas ao entrudo. Não são raros os registros de reclames em jornais feitos por diversas casas especializadas na venda de artigos para o carnaval, principalmente a partir da década 1880. De fato, não apenas anunciavam produtos para o jogo como também “... sofisticavam a mercadoria: ‘bisnagas francesas’, ‘limões-de-cheiro enfeitados com papel dourado’ (...) cuja aquisição certamente servia para estabelecer novas hierarquias no interior do entrudo” (CUNHA, 2001). Também esta ação dos comerciantes, oferecendo a cada ano novos materiais relativos ao entrudo, pode ter servido como uma contribuição para que a brincadeira perdurasse por tanto tempo, a despeito de reiteradas proibições, e para seu crescimento no século XIX. As casas comerciais regulares chegaram a ser vítimas diretas da ação policial, que por vezes chegou a invadir estabelecimentos e apreender produtos relacionados à brincadeira (CUNHA, 2001).
Ao longo do século XIX, o entrudo ganhou ainda outra característica interessante: sua vinculação à imagem da monarquia. Tal fato se dava pelo conhecido gosto da família imperial por sua prática, sendo comuns os festejos tanto em Petrópolis quanto no Paço Imperial (CUNHA, 2001; SOIHET, 1998). Conta-se que a fama da simpatia da família imperial pelo entrudo era tão conhecida que a atriz Stella Sezefreda (futura esposa de João Caetano) em 1825, assistindo ao cortejo de D. Pedro I, teria atirado limões-de-cheiro sobre o monarca, sendo presa logo em seguida (CUNHA, 2001).
Apesar de toda a sua popularidade, logo em 1604, apenas quatro anos após o primeiro registro do jogo no Brasil, o entrudo foi considerado como uma prática ilegal (ARAÚJO, H., 1991). A partir daí, ano após ano, foram expedidos alvarás e portarias proibindo o jogo das molhadelas: 1604, 1608, 1612, 1685, 1686, 1691, 1734, 1783, 1784, 1848 (ARAÚJO, H., 1991; CUNHA, 2001; FERNANDES, 2001). A despeito de todos estes diplomas legais proibitivos, das sucessivas iniciativas estatais de repressão e controle, a brincadeira se manteve durante o período colonial, estendeu-se por todo o Império e ainda pôde ser verificada nas primeiras décadas da República. Em 1904, por exemplo, o prefeito Pereira Passos teria feito um apelo aos diretores dos ensinos médio e superior para que conclamassem os jovens cariocas a abandonarem o entrudo (CUNHA, 2001). Já em 1907, quase no fim da primeira década do século XX, os editais e Códigos de Posturas municipais ainda faziam referência à brincadeira, numa indicação de que essas intervenções não eram atendidas pela população (CUNHA, 2001). Cabe a indagação sobre os motivos e circunstâncias que permitiram que, não obstante a clara e continuada oposição legal, o entrudo tenha podido desfrutar de tamanha longevidade.
Foi no período republicano que se intensificou a repressão ao entrudo, tendo sido especialmente na década de 1890 abundantes as proibições legais e as ações policiais (CUNHA, 2001). Tal tendência encontrava eco na imprensa carioca, que engendrou uma campanha contra o entrudo através de artigos e crônicas de alguns dos mais prestigiosos literatos do período. É importante ressaltar, contudo, que a campanha negativa não foi exclusiva da imprensa. No final do século XIX, por exemplo, uma série de profissionais voltou sua atenção para as ruas e para o modo de viver da população que a ocupava: médicos, higienistas, cientistas, urbanistas passaram a preocuparem-se com a ordenação urbana, numa tentativa de conferir a cidade do Rio de Janeiro uma aura civilizada (PEREIRA, 2004). A virada do século XIX para o XX, enfim, assistiu a um processo civilizatório e modernizador,
Nesse contexto, assiste-se a um movimento de “disciplinação rígida do espaço e do tempo de trabalho, estendendo-se seus efeitos a todas as esferas do universo social, a partir de uma estreita vigilância sobre a rua, a religiosidade e o lazer.” (SOIHET, 1998). A burguesia emergente na Belle Époque carioca, entusiasmada com os valores e modelos parisienses, ansiava por estabelecer na cidade os mesmos padrões estéticos, morais e culturais reinantes na Europa. Havia o desejo de alçar o Rio de Janeiro às veredas do progresso e da modernidade. Para isso, tornava-se fundamental, enfim, eliminar “os hábitos grosseiros e vulgares, frutos da herança lusa, negra e indígena, símbolos do atraso e do arcaísmo. [...] Urgia eliminar o velho entrudo, trazido pelos colonizadores e extremamente popular, mas que não passava de ‘uma festa grosseira, desabrida festança popular, onde se bebia e se comia intemperadamente, selvático deleite de homens que cantavam, dançavam e se divertiam com brutalidade (...)’.” (SOIHET, 1998)
Em contrapartida a toda investida em oposição ao entrudo, a festa se manteve presente nas ruas do Rio de Janeiro até os primeiros anos do século XX. A imprensa, inconformada com a ineficácia das posturas, códigos, editais e proibições conclamava o poder público a agir mais enfaticamente e fazer cumprir a lei. (CUNHA, 2001; PEREIRA, 2004) Desde meados da década 1850, quando a campanha negativa em relação ao entrudo na imprensa toma fôlego, torna-se notório o caráter paradoxal do discurso jornalístico: ao mesmo tempo em que as crônicas anunciavam a morte do entrudo, enaltecendo o “verdadeiro” carnaval — o desfile das Grandes Sociedades — os noticiários destacavam todos os anos os distúrbios por ele causados durante os festejos carnavalescos. Segundo CUNHA (2001):
as descrições e comentários da imprensa não deixam nenhuma dúvida: a forma tão sonhada do Carnaval dos préstitos espirituosos das Grandes Sociedades, pela qual se conclamava o apreço popular e se reivindicava a primazia foliona, estava longe de tornar-se a forma exclusiva ou mesmo a principal dos dias de Momo. Convivia nas ruas com o entrudo, em suas manifestações ‘modernas’ mas sobretudo em seu viés vulgar, com a guerra às cartolas, os ‘insípidos’ zé-pereiras e as danças de negros, que se intercalavam sem cerimônias entre os préstitos das sociedades mais refinadas; estas cruzavam nas ruas com mascarados avulsos e desclassificados, como diabinhos e dominós, velhos e princeses, que ainda circulavam, alheios aos apelos da civilização carnavalesca, a perguntar em voz de falsete: ‘Você me conhece?’. Para os adeptos do ‘espírito’, uma verdadeira cruzada parecia necessária a fim de derrotar os infiéis de Momo.
Frente às considerações apresentadas, percebe-se que o entrudo, mesmo com todas as proibições que sofreu e diante das sucessivas campanhas negativas mantinha-se presente na sociedade carioca ainda no início do século XX. As razões para o seu desaparecimento ainda carecem de investigação mais aprofundada, mas não parecem ter sido resultado único e direto das ações proibitivas do Estado.
Assim, diante do recrudescimento das investidas policiais, acompanhada de uma grande campanha na imprensa e do apoio da intelectualidade carioca, nossa problemática recai sobre as justificativas apresentadas pela população para a permanência da festa.
Algumas hipóteses para explicar a longevidade da manifestação já foram levantadas pela historiografia: as inovações tecnológicas nos apetrechos utilizados, conferindo de certa forma uma “modernização” na maneira de brincar; a preferência feminina pelo jogo; o gosto da família imperial e ainda a separação dos espaços de atuação da elite e da população menos abastada. Contudo, nenhuma dessas perspectivas interpretativas privilegia o discurso da plebe, camada da população que sofreu mais diretamente com as investidas repressivas do Estado.
Nossa proposta é de dar voz a estes atores sociais, buscando suas motivações e justificativas para manterem vivas as práticas entrudistas, mesmo em um contexto hostil e marcado pela repressão policial. Para isso, inicialmente, pretendemos analisar os processos criminais de pessoas presas pela prática do entrudo, assim como as páginas policiais de dois jornais – Gazeta de Notícias e Jornal do Brasil - com a intenção de identificar nesse conjunto documental o discurso dos entrudistas.
ARAÚJO, Hiram (coord.). Memória do Carnaval Carioca. Rio de Janeiro: Oficina do Livro, 1991.
ARAÚJO, Patrícia Vargas Lopes de. Folganças populares: festejos de entrudo e carnaval em Minas Gerais no século XIX. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGF/UFMG; Fapemig; FCC, 2008.
COLAÇO, Thais Luzia. O carnaval do desterro: século XIX. Dissertação de mestrado em história, Centro de Ciências Humanas, UFSC, 1988, apud PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O Carnaval das Letras: literatura e folia no Rio de Janeiro do século XIX. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004.
CUNHA, Maria Clementina Pereira da. Ecos da folia: uma história social do Carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
FERNANDES, Nelson da Nóbrega. Escolas de samba: sujeitos celebrantes e objetos celebrados. Rio de Janeiro: Secretaria das Culturas, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2001.
FRY, Peter et al. Negros e brancos no carnaval da Velha República. In: REIS, João José (org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988, apud PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O Carnaval das Letras: literatura e folia no Rio de Janeiro do século XIX. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004.
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O Carnaval das Letras: literatura e folia no Rio de Janeiro do século XIX. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Carnaval brasileiro: o vivido e o mito. São Paulo:
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SIMSON, Olga Von. A burguesia se diverte no reinado de Momo: sessenta anos de evolução do carnaval na cidade de São Paulo. Dissertação de mestrado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP. São Paulo, 1984, apud PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O Carnaval das Letras: literatura e folia no Rio de Janeiro do século XIX. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004.
SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca da Belle Époque ao tempo de Vargas. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getulio Vargas, 1998.