Discursos e sociabilidades entre as classes populares: o regramento do carnaval e do comportamento feminino

entrudo em Porto Alegre
Charge sobre o Entrudo. Jornal A Lente, de Araújo Guerra, 1885.
Caroline P. Leal
Resumo: Este artigo tem o objetivo de analisar a reapropriação que as mulheres das classes populares fizeram das práticas carnavalescas e a maneira como perceberam novas imposições sociais, no carnaval de Porto Alegre. Analisarei a relação entre os discursos que visavam ordenar as festas carnavalescas - na tentativa de atribuir novos lugares e condições para o comportamento feminino durante tais festejos - e as práticas e condutas dessas mulheres que, por vezes se adaptavam a tais regramentos e, em outras ocasiões, burlavam tais orientações.
Palavras-chave: carnaval, mulheres, classes populares

Abstract: This article aims to analyze the reappropriation that grassroots women have practices carnival and how perceived new social charges, the carnival of Porto Alegre. Examine the relationship between the discourses which sought to order the carnival festivities - in an attempt to assign new places and conditions for female behavior during these festivities - and the practices and behaviors that these women sometimes adapt to these specific regulations, and other occasions, laughed at such guidelines.
Key-Words: carnival, women, popular classes 
      
Falar de carnaval e de sociabilidades é obrigatoriamente falar de cultura. Ainda mais se falarmos sobre condutas e comportamentos, normas essas que são produzidas, construídas e reproduzidas na cultura. Porém, discorrer sobre a cultura não é nada fácil, haja vista a imensa discussão teórica que isto acarreta. Para este trabalho, entenderemos o termo cultura como referente a diferentes fenômenos, todos eles ligados aos modos de existir dos variados grupos humanos, os valores e padrões de comportamento de uma determinada sociedade. Ao longo do tempo, homens e mulheres, por meio da cultura, estipularam regras, convencionaram valores e significações que possibilitaram a comunicação dos indivíduos e destes grupos. É através da cultura que eles puderam se adaptar ao meio, mas que também puderam adaptá-lo a si mesmo e assim transformá-lo. São exemplos destas adaptações e/ou transformações que se deram durante os  festejos carnavalescos que veremos neste artigo.
O carnaval chegou ao Brasil – e a Porto Alegre – pelas mãos de nossos colonizadores portugueses e sob a forma do entrudo. Este era uma série de brincadeiras, “contidas no calendário cristão” (GERMANO, 132), onde “não havia música, nem dança, mas muita bebida e correrias, perseguições, sujeira e violência” (VALENÇA, 1996:13). De acordo com Flores “o entrudo era uma verdadeira batalha para molhar alguém com água jogada de balde, bacia ou seringa, com arremesso de limão de cheiro” (FLORES, 1999:51) Nestes dias, “homens e mulheres se empenhavam em loucas correrias e agarramentos, jogando água. Era um salve-se quem puder!” (FLORES, 1999:51). Segundo Cunha, durante muito tempo, entrudo significava “o mesmo que Carnaval: um conjunto de brincadeiras e folguedos realizados quarenta dias antes da Páscoa” (CUNHA, 2001:25). Entre elas, além da molhadeira, argumenta a autora, compreendia-se uma série de troças de mascarados, bem como a pregação de peça em conhecidos ou passantes: “dias de molhadeiras, mas também dias de mentira e das pilherias que podiam por vezes dar margem a incidentes desagradáveis se realizados fora de seu contexto específico” (CUNHA, 2001:25). Havia, também, o costume das mulheres de prepararem “empadas ocas ou recheadas com insetos para servir aos incautos, ou biscoito e pão-de-ló temperados com boas doses de vermífugos ou purgantes” (CUNHA, 2001:56). Nesse jogo, todos brincavam: “homens austeros, estudantes, mulheres de postura recatada, crianças, escravos, trabalhadores livres. O grande apelo da festa era participar. Não havia graça em preparar armadilhas e engodos sem se arriscar a ser uma possível vítima a qualquer instante” (SOHIET, 1998:66).
Todavia, este festejo passou a ser condenado. Em 1837, em Porto Alegre, através do código de posturas municipais, a brincadeira foi proibida, tendo sido estipuladas multas para quem desobedecesse (Livro de Registros de Posturas Municipais de 1829 a 1888.4 dez 1829. “Posturas Policiaes da Câmara Municipal da cidade de Porto Alegre approvadas pelo Conselho Geral da Província”. Porto Alegre, Typ. Do Commercio, 1837 (anexadas ao Livro de Registros das Posturas Municipais de 1829 até 1888). AHPA.
 Uma série de ataques, tanto de cunho sanitário, quanto moral, foi proferida contra o jogo e se passou a criticar aqueles que o praticavam.
Alguns anos havia que este jogo bárbaro caíra em desuso, quando a célebre ex-marquesa de Monte Alegre, mulher do atual Sátrapa de São Paulo, que já foi desta Satrapia do Rio Grande, o pôs novamente em moda. Que esta renovação do passado fosse obra da ex-marquesa nada há que admirar, pois é muito conhecida pelo seu ardente temperamento e extraordinário calor;
Não é, porém digno das humanas filhas do Rio Grande, num tempo em que o tifo, a febre e a tísica dizimam a população, ensopar d’água os que transitam nas ruas banhados em suor? (A Reforma, 15 de fevereiro de 1871)
Note-se que, nesta brincadeira, era intensa a participação das mulheres. As mocinhas de família, ou das boas famílias, tinham como um dos “prazeres diletos” entrudar. Esta predileção feminina pelo entrudo foi constatada pelo viajante John Luccock, que sentira na pele este entusiasmo. Segundo ele:
O seu pretendido entrudo estritamente familiar e doméstico era algo próximo de uma ficção. Os mais antigos relatos mostram que, muito embora ocorressem batalhas de limões de cheiro entre famílias amigas, ficar de tocaia nas janelas e ensopar passantes distraídos era um dos prazeres prediletos das donzelas da terra, ainda mais se as vítimas fossem estrangeiro. (Relato de John Luccock, 1808, Apud: FERREIRA, 1970:10)

O viajante relata o entusiasmo das “donzelas” com este jogo, que era praticado não só dentro dos lares, com a família, como também com estranhos que passavam sob suas janelas. Nesse mesmo sentido, vemos o relato de um antigo morador de Porto Alegre sobre o carnaval na cidade:
Quem se quisesse transportar ao antigo entrudo de Porto Alegre havia de lembrar-se que na rua Nova, em casa das Ângelas e Perpétuas, havia nas três tardes de entrudo um perfeito bazar de banheiras, gamelas, bacias, alguidares, seringas, copos, canecas e canjirões, a não deixar impunes os transeuntes; que no Alto da Bronze além de tudo isso ainda havia o vermelhão, o polvilho e os pós de sapatos; e que a moçada de Porto Alegre saía a pé ou a cavalo com a competente cestinha de limões de cheiro ao braço, acompanhados de criados com os respectivos suplementos, a molharem aqui e acolá as descuidadas (ou não descuidadas) que se achavam às janelas. (Gazeta de Porto Alegre, 13 de março de 1884).
Percebe-se que as moças de família participavam e gostavam da brincadeira, tanto é que ficavam em suas janelas à espera de rapazes para jogá-la. O entrudo familiar, doméstico, jogado entre seus pares e sob o olhar familiar, ao que tudo indica, era aprovado pelos habitantes da Província.  Residiria o problema no jogo do entrudo em público? O jornal A Reforma, publicou, em 1870, uma nota criticando a proibição do entrudo doméstico.
O Sr. Chefe da Polícia anda se querendo mostrar deverás rigoroso!
S. S. tão melífluo, tão elegante, nunca nos pareceu próprio para papeis terríveis; mas pelo que se vê, vai pondo os braços de fora, ao menos por seus agentes.
Mandou S.S. publicar um edital, fazendo constar à disposição das posturas municipais que proíbem o jogo, chamado de entrudo!
Até ai foi muito bem; era uma disposição legal, fe-la conhecida e devia torná-la obrigatória.
O que, porém, o Sr, Chefe da Polícia, não podia e nem pode proibir, é que as famílias no interior de suas casas divirtam-se do modo que muito bem queiram.
Na porta do domicilio do cidadão cessa a jurisdição da autoridade, sempre que a ordem publica não seja alterada; mas n’esses casos extremos não depende a jurisdição de simples vontade.
O Sr. Chefe da polícia com seus agentes não entendem a coisa assim, e com tal furor, tão cegos se atiram aos jogadores do entrudo, que em lugar de proibirem que se lancem bacias d’água do alto das janelas e publicamente nas ruas, endireitam-se a querer multar os que, no uso do seu direito legítimo, jogam o entrudo com as famílias de sua amizade e no interior das casas! (A Reforma, 27 de fevereiro de 1970)
O periódico era, portanto, contra a proibição de que as pessoas, dentro de casa, jogassem o entrudo. Condenava apenas aqueles que perturbavam a ordem pública, tal como os que lançavam bacias de água das janelas. Vemos, assim, que a brincadeira jogada dentro dos lares, apesar de proibida, era socialmente aceitável; o jogo público, por sua vez, era condenado.
Do mesmo modo que observamos a participação das “boas moças de família” nos jogos de entrudo familiar, na proteção de seus lares; há também referências a mulheres “não tão bem nascidas” e que também entrudavam. Em um processo resultante de agressões presumivelmente sofridas por uma mulher de nome Maria Antônia, chegamos a um universo no qual as práticas entrudescas mostravam-se presentes entre as camadas populares. Neste processo, o pardo Jorge – um escravo de Dona Thereza Emília de Lima com 32 anos de idade que exercia o ofício de alfaiate – fora acusado de ter agredido a Maria Antonia – uma meretriz de 29 anos que residia no famoso Beco do Fanha – tendo-lhe causado alguns ferimentos no rosto.
Entretanto, contrariando a versão policial, em seu depoimento, Maria Antônia afirmou que havia saído para ir “à casa de uma moça sua conhecida a fim de jogar o entrudo” (Estado do Rio Grande do Sul. Processo Crime nº. Maço. Porto Alegre. 03/02/1872. APERGS). Quando voltava, foi atingida por limões de cheiro, que a fizeram cair e por isso teria se ferido, “batendo com o rosto em uma laje que fica do lado de dentro” de casa. O pardo Jorge – que aparecera em sua residência “por ocasião de principiar com o jogo do entrudo” – “nenhum mal lhe fez” tendo somente a repreendido em função de sua queda (Estado do Rio Grande do Sul. Processo Crime nº.Maço. Porto Alegre. 03/02/1872. APERGS).
Na versão do alferes Guimarães, que deu voz de prisão ao acusado, este foi preso quando “lutava com uma mulher, dando-lhe pancadas, achando-se a mesma toda ensangüentada e ele próprio com a camisa toda rasgada” e esta pediu que o referido alferes não o prendesse “porque ele fazia tudo aquilo por amizade” (Estado do Rio Grande do Sul. Processo Crime nº .Maço. Porto Alegre. 03/02/1872. APERGS).
Para Burke, o uso de histórias narradas pelas pessoas no passado, registradas nos arquivos de polícia, permite que o historiador tenha acesso a diversas vozes do passado e diferentes visões do mesmo assunto. Entretanto, ele recomenda que,
a questão para os historiadores nesse tipo de justaposição de narrativas concorrentes é não tentar decidir a história de quem é a ‘correta’ (como faria o juiz) ou provar o que tomamos como realidade é uma ilusão (como faria um filósofo), mas usar as histórias para reconstruir as atitudes e valores dos narradores, empregando um conflito de narrativas para compor uma narrativa de conflitos. (BURKE, 2000:18)
Provavelmente, os ferimentos não foram causados pela brincadeira, como afirmava Maria Antônia, mas o que nos interessa é o fato dela tê-la usado para justificá-los, podendo ser isso um indicativo de que esse jogo poderia, às vezes, ter uma face agressiva e grosseira, fazendo com que pessoas saíssem lesionadas da diversão. Além disso, denota-se que outros segmentos sociais, como no caso o de uma prostituta, também entrudavam com todo gosto e utilizavam o espaço dito como correto pela imprensa para a brincadeira: o privado. E não somente isso: Maria Antônia, ao tomar esta postura, não rompeu com as fronteiras designadas para as participações femininas, e sim, adequou-se aos padrões estabelecidos como corretos. Careli, ao investigar inquéritos policiais, processos criminais e crônicas jornalísticas, buscando a caracterização da virtude, expõe “a forma como determinados comportamentos veiculados como ideais, característicos de um dado grupo social, não ficavam restritos ao mesmo, sendo de formas diversas incorporados por indivíduos alheios a ele” (CARELI, 1999:278), como no caso de Maria Antônia, uma popular, que ao brincar o entrudo, o fez na casa de uma amiga, no interior do lar, como recomendavam os jornalistas, e atribuiu a culpa de seus ferimentos ao entrudo público, que era também condenado pela imprensa. Maria Antônia estava adaptando-se ao meio social produzido pela elite letrada porto-alegrense, ambiente ao qual ela não era pertencente, mas que permeava sua conduta.
Com o objetivo de substituir e enterrar a tão condenada brincadeira do entrudo, foram criadas as sociedades carnavalescas, que realizariam préstitos, como carros adornados e bailes fechados para seus membros. Aqui, em Porto Alegre, as pioneiras foram a Sociedade Carnavalesca Esmeralda Porto-Alegrense e a Sociedade Carnavalesca Os Venezianos. Alegavam estar trazendo o progresso e a civilização à cidade, livrando-a do rude e grosseiro entrudo. Além disso, essa festa veio também com outros objetivos: pretendia-se uma moralização e readequação da participação das mulheres nos festejos dedicados a Momo.
De uma presença ativa nas brincadeiras das molhadelas do entrudo, nas quais elas se entregavam com todo ardor; passariam à passividade. Ao invés da proximidade, principalmente corporal, oferecida pela brincadeira tradicional, o distanciamento do préstito: agora os rapazes das sociedades desfilariam nos carros, enquanto as mulheres assistiriam, aplaudiriam e lhes jogariam flores ao invés do temido limão. Havia um controle sobre as mulheres, que pretendia negar-lhes o espaço carnavalesco.
Qual seria então o papel apropriado para as mulheres dentro do carnaval? Como as relações de gênero podem nos ajudar a entender esta restrição? Segundo Scott, o gênero é o elemento que organiza as relações sociais criadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o “gênero é a primeiro modo de dar significados às relações de poder” (SCOTT, 1990:14). Podemos observar no carnaval de Porto Alegre uma série de significados que são atribuídos à diferença sexual e que são constitutivos dos “verdadeiros homens e mulheres”. Relações de poder ficaram explícitas ao se ditar quem poderia exercer determinados comportamentos, em apontados espaços. Lugares foram alterados e condutas foram adaptadas em prol desta construção, que partiu das camadas elitizadas e que foram, por vezes, incorporadas, por outras, burladas, pelas camadas populares e, sobretudo, pelas mulheres.
Careli ressalta que entre os anos de 1850 e 1900, em Porto Alegre, “reinterava-se a crise de costumes e a crise moral como explicativa dos mais diferentes problemas” (CARELI,1999:281), não sendo, portanto, “fortuita a insistência na qual incorriam os ‘homens do jornal’ no quesito ‘virtude’ como instrumento de combate à imoralidade e ao ócio, que na visão desses, punham em risco a acumulação viabilizada pelo trabalho para a concretização de uma sociedade civilizada e ordenada” (CARELI,1999:281). Para o alcance de uma sociedade moderna era necessário o “desenvolvimento de condições morais e sociais adequadas àquela concepção de progresso que [os intelectuais] buscavam implementar” (CARELI, 1999:281). Era preciso, portanto, se ter um novo carnaval: o entrudo era considerado uma brincadeira licenciosa, que proporcionava a perda do controle dos pais e também da prudência sobre o comportamento feminino, pois durante o festejo haveria o perigo dos “abraços traiçoeiros que começam na porta da rua e iam terminar mesmo nas barbas dos senhores pais de família” (A Reforma, 14 de fevereiro de 1875). Careli afirma que “o comportamento sexual referente ao gênero feminino no século XIX era associado – por grande parte da imprensa escrita – a uma existência virtuosa a ser canalizada ao longo da vida para o fim maior a que estava destinada a mulher: o casamento e a maternidade” (CARELI, 1999:240). Ao participarem desse temido jogo, as mulheres não estariam praticando uma existência tão virtuosa assim, podendo prejudicar o objetivo máximo delas: o casamento. Segundo Pedro, a partir de 1850, nas cidades do Sul, durante a formação das elites nos centros urbanos, foram freqüentes as imagens idealizadas das mulheres e de seus papéis familiares. Essas elites que se formaram, é que “iriam promover os jornais[2] responsáveis pela divulgação de modelos de comportamento, especialmente para as mulheres” (PEDRO,1994:281), como por exemplo, os comportamentos que se esperavam delas durante os festejos carnavalescos.
Todavia, se os jornais nos mostram registros produzidos predominantemente por homens – que elaboravam imagens idealizadas para as mulheres e divulgavam sua nova tarefa durante o carnaval – conseguimos a partir de processos-crime, buscar indícios, vozes femininas. Nesses processos elas são chamadas à justiça para testemunharem sobre eventos dos quais fizeram parte e é neste momento que suas vozes emergem em meio a depoimentos, inquéritos e testemunhos e podemos saber um pouco das versões femininas, mesmo que coagidas pela justiça, em uma situação um tanto quanto constrangedora.
Não devemos, entretanto, acreditar que através dos processos criminais descobriremos o que realmente aconteceu. Isso, contudo, não impede que eles possam ser ricos registros das práticas e representações dos agentes sociais envolvidos na questão, abrindo um leque de possibilidade para compreender tanto a eles, quanto a sociedade a que pertenciam. Para Chalhoub,
ler processos criminais não significa partir em busca ´do que realmente se passou` porque esta seria uma expectativa inocente – da mesma forma como é pura inocência objetar à utilização dos processos criminais porque eles ´mentem`. O importante é estar atento às ´coisas` que se repetem sistematicamente: versões que se reproduzem muita vezes, aspectos que ficam mal escondidos, mentiras ou contradições que aparecem com freqüência.(CHALHOUB, 1986:67)
Assim, vemos que, muitas vezes, o discurso que atribuía às mulheres um comportamento caracterizado pela passividade e moral acabava encontrando eco nas próprias práticas sociais femininas.
O processo que analisamos é resultado de um homicídio ocorrido durante um baile público carnavalesco realizado no dia 5 de fevereiro de 1882, no Teatro de Variedades. Os bailes de máscara ou de salão afiguraram-se no Brasil em meados no século XIX, era uma “festa privada, onde as famílias brancas, ou melhor, as camadas dominantes da sociedade brasileira podiam divertir-se e participar das festas sem misturar-se aos negros e mestiços das camadas mais baixas”   (KRAWCZYK,1992:14). Segundo Sebe, “o salão tem sido sempre o lugar da elite, regulado por convites, ingressos pagos ou indicações. A celebração da festa de Momo em salões é antiga e se aprimorou, no Rio de Janeiro, depois do entrudo, mas como mostram as crônicas do tempo surgiu embasada no modelo italiano” (SEBE , 1986:63). Assim, em 1835, a fim de “criar uma alternativa interessante e elegante de folia [...] para estimular as classes abastadas a permanecerem na cidade durante o carnaval” (VALENÇA,1996 :19) foi que a esposa do dono do Hotel Itália, uma italiana, “inspirada nos costumes de sua terra natal” (VALENÇA,1996 :19) organizou o primeiro baile de máscaras. A moda estava lançada; “como capital do país, cabia ao Rio de Janeiro irradiar os modelos das celebrações nacionais” (SEBE , 1986:64), tendo o modelo carioca servido de exemplo para as demais cidades.
Em Porto Alegre, ocorriam durante o carnaval diversos bailes, chamados públicos, para os quais se pagava uma quantia para entrar. Os bailes ocorriam no Teatro de Variedades, no Teatro São Pedro, no Rink Cosmopolita. Algumas vezes, eles contavam com a presença das grandes sociedades, que após seus desfiles apresentavam-se neles: “Em atenção aos dedicados convites que lhe foram feitos, comparecerá á noite a sociedade [Esmeralda] aos bailes mascarados no teatro S. Pedro e no de Variedades” (Mercantil, 21 de fevereiro de 1882).
O caso aqui relatado aconteceu, como mencionamos anteriormente, no Teatro de Variedades. Significativo nesse processo é o fato de que, através dele, podemos chegar a uma voz feminina que nos elucida diversos elementos sobre a participação das mulheres nos bailes. Deve-se considerar que quando chamadas para testemunhar perante a justiça, as pessoas estão coagidas, não é um registro voluntário e livre, mas sim um registro diante de uma autoridade. Tal processo, portanto, resultou de uma briga entre cadetes e paisanos, no referido baile, aonde Marçal Nunes Garcia é acusado de ferir gravemente a Honório dos Santos, que acabou falecendo. O conflito, de acordo com depoimentos contidos no processo-crime sobre o ocorrido, teria sido em função de uma moça (Processo-crime nº1449, maço 55, Júri-Sumário, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul).
Segundo José Pires Soares, amigo da vítima, Honorata – uma escrava do Dr. Barcellos – teria se dirigido a Honório e dito a ele que a próxima marca seria sua. Verifica-se, pois, que os bailes públicos, diferentemente dos bailes das sociedades carnavalescas – dos quais só participavam os sócios – eram freqüentados pelas classes menos abastadas, incluindo-se os escravos que podiam participar da folia. Apesar de Castro afirmar, conforme as Posturas Municipais da Câmara de Porto Alegre, de 1847, que “nos locais de diversão pública, não eram permitidos negros escravizados, a jogar, a conversar, a comer, a tanger ou a bailar”, na prática isso não se verifica, tendo Honorata, escrava do Dr. Barcellos, ido participar de um baile público em homenagem a Momo. (CASTRO, 1994:66).
Nisso, chegara o cadete Fontoura e convidara a moça para dançar, tendo esta se recusado. Iniciada a música, Honório se levantou, puxando Honorata para bailar. Fontoura a proíbe, colocando-se à frente dos dois, dirigindo palavras agressivas a Honório. O cadete é retirado pelo alferes Godinho do recinto, mas outros companheiros dele entram e apontam para a vítima dizendo: é aquele ali! A confusão inicia e Honório é ferido gravemente, sendo o cadete Marçal Nunes Garcia acusado do crime. O caso fica mais instigante quando vemos o relato de Honorata. Segundo ela, Honório é que a teria tirado para dançar e que, após a marca, ele a convidara para tomar uma cerveja, o que ela recusara.
Já o cadete Fontoura, em seu depoimento, afirma que o conflito se deu porque “Honório estava pronto para dançar com ela uma marca que já havia prometido dançar com ele respondente, e que instando com o falecido para ceder-lhe o par e este respondendo-lhe mal originou-se então a questão” (Processo-crime nº1449, maço 55, Júri-Sumário, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul).
O que realmente aconteceu não sabemos (nem mesmo as investigações na época chegaram a uma conclusão, tendo o réu sido absolvido por falta de provas, apesar de uma testemunha ter dito que o viu empunhando uma adaga coberta de sangue), mas o que nos interessa são os diferentes pontos de vista sobre o ocorrido e a postura de seus atores.
Quando Soares afirma que Honorata dirigiu-se a Honório para convidá-lo a dançar, nos coloca diante de uma situação na qual ela parece estar transgredindo as condutas socialmente atribuídas às mulheres, que seriam marcadas pelo recato e pela passividade, uma vez que o protagonismo ficava a cargo dos homens. Todavia, ao prestar seu depoimento e negar tal versão, alegando que teria sido convidada por Honório, talvez a mesma estivesse buscando se adequar a esses modelos de comportamento difundidos não só entre a elite como também entre as classes menos favorecidas, pois, possivelmente, a visibilidade do ocorrido poderia acarretar prejuízos à sua imagem de conduta moral em seu meio. Tal atitude, de negação de seu comportamento, talvez tenha se dado, porque “nas classes populares a honra não é uma condição moral herdada pela destacada posição social dos genitores, mas sim é definida pelas ações e intenções social e cotidianamente verificáveis” (CASTRO, 1994:173). Ao assumir sua postura Honorata estaria se declarando não tão virtuosa assim, colocando em risco sua honra e moral e não se enquadrando no modelo de boa mulher.
Além do mais, de acordo com Careli, “uma mulher que por sua beleza fosse alvo de disputa masculina representava o perigo da presença de duelos, brigas... que ameaçavam a normalidade social almejada, bem como davam um poder à mulher que não era compatível com os limites a ela socialmente atribuídos” (CARELI, 1999:50). Talvez por isso, Honorata negasse sua postura de iniciativa, pois sobre ela já pesaria, indiretamente, a culpa pelo assassinato; aos nossos olhos, no entanto, ela não só teria rompido com essas fronteiras de comportamento destinado às mulheres pela iniciativa de convidar Honório para dançar, como também o fez por, ao causar a disputa entre os homens e exercer um poder sobre eles, não praticando o ideal de passividade disseminado, mesmo que, em termos de discurso, ela negasse essa pretensa autonomia.
No desenrolar do caso, foram inquiridas duas testemunhas no processo: Amália e Maria Leopoldina, ambas amigas do acusado, que foram com ele para o baile. As moças, ao serem inquiridas sobre seus ofícios, declararam-se profissionais de serviço doméstico. Marçal Nunes Garcia, no entanto, ao ser questionado o porquê dele ter dado uma adaga a Amália para esta guardar, afirmou ser perigoso não ter armas em tais casas, nos levando a acreditar que a profissão das moças não era a de serviços domésticos e sim de prostituta[3].
Mas por que teriam elas omitido seus verdadeiros ofícios? Segundo Arend, “durante o século XIX, a elite procurava ‘regulamentar’ as práticas sexuais da população segundo os seus padrões. Através do discurso e da prática médica, da atuação do judiciário, do discurso higenista da imprensa, [de novas práticas para se brincar o carnaval], etc essa elite difundia a idéia do ‘sexo dentro da legalidade do matrimônio’, ou junto das relações ‘estáveis’” (AREND,1994:61). Ao haverem elas preterido seu real ofício, Amália e Maria Leopoldina, nos dão a idéia de terem “introjetado alguns desses valores difundidos pela elite em relação à sexualidade” (AREND, 1994:62).
Honorata, Amália e Maria Leopoldina, mulheres cujas ocupações as colocavam em lugares considerados inferiores na disposição dos espaços sociais – a primeira escrava e as demais, possivelmente, meretrizes – são exemplos de que mesmo entre as camadas populares os emblemas e sinais produzidos pela elite se proliferavam, uma vez que, em seus discursos, as três procuraram se adequar às expectativas sociais em relação aos comportamentos femininos. Honorata, ao negar sua conduta durante o baile, e Amália e Maria Leopoldina, ao esconderem suas reais profissões, procuraram reproduzir os comportamentos esperados, atestando virtude moral e honradez.
“Ninguém nasce mulher, torna-se mulher” (BEAUVOIR,1967:9), afirmava Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo. Essa construção, feita pela família, pela escola, pela Igreja, estava também sendo promovida pelo carnaval em Porto Alegre no último quartel do século XIX. Ao estipularem novos lugares e comportamentos tidos como adequados para as folionas, os festejos carnavalescos estavam contribuindo para uma construção social do que era “ser mulher” e, acima de tudo, ser mulher distinta. Essa caracterização do que era ser uma boa mulher não ficava restrita aos meios dos quais partiam: mulheres de classes menos abastadas também internalizavam tais quesitos, tentando adequarem-se aos modelos e padrões divulgados, ao menos em nível de discurso.

Referências Bibliográficas
AREND, Sílvia. Um olhar sobre a família popular porto-alegrense (1886-1906). Porto Alegre: UFRGS, Dissertação de Mestrado, 1994.
BURKE, Peter. Desafios de uma história polifônica. Folha de São Paulo, São Paulo, 15 de outubro de 2000.
CARELI, Sandra.Texto e contexto: Virtude e Comportamento Sexual Adequado às Mulheres na Visão da Imprensa Porto-Alegrense da Segunda Metade do Século XIX.  Porto Alegre: Dissertação de Mestrado, UFRGS, 1997.
CASTRO, Carmem Lúcia. Ferro de Brasa, Tacho de Cobre, Puxados úmidos: cotidiano das mulheres escravizadas em Porto Alegre (século XIX). Porto Alegre: Dissertação de mestrado/PUCRS, 1994.
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque.  São Paulo: Brasiliense, 1986.
CUNHA, Maria C. P. Ecos da Folia: uma história social do carnaval carioca entre 1880 e 1920. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
FLORES, Moacyr. Do entrudo ao carnaval. Estudos Ibero-Americanos, XXII (1) – junho, 1999.
KRAWCZYK, Flávio; GERMANO, Íris e POSSAMAI, Zita. Carnavais de Porto Alegre. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe. Florianópolis: Ed da UFSC, 1994.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise histórica.  Educação e Realidade, Porto Alegre, v.16, n.2, p.5-22, jul/dez., 1990.
SEBE, José Carlos. Carnaval, carnavais. São Paulo: Ática, 1986.
 SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca da Belle Époque ao tempo de Vargas. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998.
VALENÇA, Rachel. Carnaval: pra tudo se acabar na quarta-feira. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: Prefeitura, 1996.


[1] Doutoranda em História pelo PPGH/PUCRS.
[2] Há de se mencionar que alguns dos membros das sociedades carnavalescas, além de pertencerem ao Partenon Literário, eram donos ou redatores de muitos dos jornais da cidade, como por exemplo, Achylles Porto Alegre e Miguel Werna.
[3] Segundo Careli, tal negação era recorrente nos inquéritos e processos-crimes, sendo escasso o número de meretrizes nele. Moreira explica esse fato dizendo que: “primeiro, muitas dessas profissionais, deviam assumir a categoria de ‘serviços domésticos’ negando suas atividades como ‘mulheres de má nota’. Além disso, as próprias autoridades, num período em que a moralização pelo trabalho’ já vinha sendo pregada para sanar a causa da maioria dos crimes, negava-se a dar o status de profissão a tais práticas, preferindo qualificações genéricas como ‘serviço doméstico’, ‘sem trabalho’, etc. (CARELI, 1999:240).

Publicado originalmente em: LEAL, Caroline P. Discursos e sociabilidades entre as classes populares: o regramento do carnaval e do comportamento feminino. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, v. 3, p. 168-178, 2011.

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