Lito de Araújo Guerra, publicada no periódico O Século, 1880, retirada de FERREIRA, 1970, p.50. |
Na figura em questão, o autor está retratando esta polêmica, muito em voga na época, que aparece com freqüência nos jornais: a disputa entrudo x sociedades. As tradicionais sociedades carnavalescas, Esmeralda e Venezianos, tinham sido criadas com o objetivo de abolir o entrudo dos hábitos da cidade. O entrudo era uma brincadeira que há tempos vinha sendo “perseguida”. Atacado de grosseiro, rude e perigoso, já em 1837 tinha sido proibido pelo Conselho Geral, mas continuava a encantar os foliões. Somente a epidemia de cólera, nas décadas seguintes, fez com que sua popularidade baixasse. E isso não durou muito tempo, tendo a brincadeira voltado com força total na década de 70.
No ano 1873, portanto, a Sociedade Carnavalesca Esmeralda Porto-alegrense e a Sociedade Carnavalesca Os Venezianos foram fundadas. Entre os esmeraldinos encontravam-se modestos funcionários públicos, comerciantes, major da Guarda Nacional, moços relativamente pobres: empregados públicos, estudantes, intelectuais. Já os venezianos eram pertencentes às famílias mais abastadas, membros do alto comércio e pessoas ligadas a atividades financeiras e empresariais. Ambas as sociedades foram motivadas pelo propósito de se acabar com o entrudo, pois agora sim, Porto Alegre passaria a ter o “Carnaval”. Segundo Lazzari, para a maioria dos cronistas locais o carnaval (das Sociedades) representava todos os valores positivos, enquanto o entrudo era o reflexo de todos os males. Era preciso se construir uma nova imagem ideal para o carnaval. Imagem essa, que refletisse o bom gosto, o bom senso, o refinamento e sofisticação da cidade que estava a se modernizar.
Eu já não quero falar nesta liberdade de que nos apossamos de entrar por qualquer casa alheia, e ir até o quintal para molhar a sinhá, as velhas e as meninas, até que nos deitam nalguma gamela, cedendo à força de frágeis mãozinhas que nos seguram e nos roçam.O brinquedo tem outros mil atrativos, e dá lugar a episódios burlescos, aconchegos ternos, a que empreguemos com toda a sem-cerimônia um dos nossos cinco sentidos, coisa que nos é inteiramente proibida nos tempos comuns. (A Reforma, 1873).
Vemos nas palavras do jornalista, o quanto a imprensa apresentava o entrudo como uma brincadeira perigosa, onde a moral das moças e, conseqüentemente, das famílias estava sendo arriscada. Isso também está presente na figura, pois como afirma Burke, as imagens“[...] freqüentemente, tiveram seu papel na ‘construção cultural’ da sociedade, são testemunhas dos arranjos sociais passados e acima de tudo das maneiras de ver e de pensar do passado”.(BURKE 2004, p. 324) Estão muitas vezes relacionadas a acontecimentos e episódios que marcam aquele determinado período, por isso “[...] o significado das imagens depende do seu contexto social”. (BURKE2004, p. 324)
Em nossa figura, homens e mulheres estão se deliciando com o jogo do entrudo. Aparecem cinco casais espargindo águas de suas bisnagas um no outro(o homem na mulher e vice-versa). Um dos casais está a se beijar, outros dois estão com os corpos entrelaçados, numa postura um tanto quanto indecorosa para a época, evidenciando o quanto esse jogo permitia o contato corporal entre homens e mulheres. Por ser ela uma representação devemos atentar para o fato de que enquanto imagem ela dá “acesso não ao mundo social diretamente, mas sim a visões contemporâneas daquele mundo”, (KERN, 2005, p.236) pois sendo arte ela “é uma fonte que diz sobre o seu momento de feitura e não sobre o tempo do narrado ou figurado”.(PESAVENTO, 2002/2, p.1)
Com apenas essas referências, entretanto, não podemos afirmar se o autor está querendo demonstrar apoio, negação, deboche ou outro tipo de sentimento em relação ao carnaval porto-alegrense. Contudo, na extremidade inferior está escrito: “o entrudo, que é simplesmente um pretexto, já começa com todo o seu furor. Olho vivo, paes de família; olho vivo!”. Isso, segundo Flores, é uma característica peculiar das charges, pois esta é “um texto usualmente publicado em jornais sendo via de regra constituído por quadro único. A ilustração mostra os pormenores caracterizadores de personagens, situações, ambientes, objetos. Os comentários relativos à situação aparecem por escrito”. (FLÔRES, 2002, p.14.)
Assim, a expressão icônica atrelada à escrita pode nos clarear um pouco mais sobre as intenções e pensamentos do autor. Flôres, ainda argumenta que: “A charge é um interessante objeto de estudo por aquilo que mostra e diz de nós mesmos e do mundo em que vivemos, contribuindo, além disso, para moldar o imaginário coletivo[...}, o conteúdo da charge desnuda a reação ao status quo. [É um] tipo de texto sui-geniris que mostra e conta, ao mesmo tempo, os conflitos sociais. [...] Sua temática versa, em geral, sobre o cotidiano – questões sociais que afligem, irritam, desgostam, confundem”. (FLÔRES, 2002, p.11.)
Datada do ano de 1880, a nossa charge parece ser um alerta aos pais de família ao mesmo tempo em que é um deboche aos usos e costumes dos porto-alegrenses e da defesa moral feminina. Reflete o pensamento de seu autor sobre questões que estavam em evidência naquele período: o entusiasmo da população ao divertir-se com o “atrevido” entrudo e a possibilidade de burla, para as moças, da vigilância paterna e atitudes que em dias normais não eram permitidas.
Apesar disso, não se pode afirmar que ela tenha exercido algum tipo de influências sobre seus destinatários, se essa imagem foi percebida da forma como o autor queria, pois“[...] os produtores de imagens não podem fixar ou controlar seus significados, embora tentem muito arduamente fazê-lo, seja por meio de inscrições ou outros meios,” (BURKE, 2004, p.223) caso que parece ser o que aconteceu na figura em questão.
As imagens, muitas vezes, cumpriram também um papel pedagógico, sendo uma forma de “educar” a população a partir de ideais vigentes de certo grupos da sociedade. Segundo Kern “a imagem artística foi também utilizada por suas potencialidades pedagógicas e de expressão de poder, desde a antiguidade até o mundo moderno, quando a arte começou a ser desfrutada pelo prazer estético que ela produzia e cultuada como obra-prima”. (KERN,2005, p.17)
Nesse caso, pode ser que a imagem pretendesse vincular uma idéia oriunda de parte da incipiente burguesia porto-alegrense, que queria um carnaval culto e sofisticado e não mais o atrevido entrudo e seus contatos corporais, e, através dela (da imagem), educar, clarear para os demais as ameaças entrudescas. Mas como saber realmente seus objetivos? Para a Antropologia Visual, compreender a circulação, recepção da obra e os sentidos atribuídos a ela são de vital importância, pois a linguagem imagética não possui um significado universal.
Para tentar entendê-la é preciso relativizá-la, é necessário perceber as funções sociais que essas imagens exercem, pois como afirma Kern “a imagem não pode ser pensada pelo conceito de imitação oriundo do mundo clássico, já que ela se constitui como representação, estruturada por conceitos e pela acepção que o artista tem do mundo, por suas intenções ou aquelas do encomendante da obra e pelo uso social da mesma”. (KERN, 2005, p.18)
Dessa forma, é mister sabermos quem foi seu autor, pois como vimos ao analisarmos imagens é cogente apreender o contexto social onde foram elas elaboradas, o testemunho delas “necessita ser colocado no ‘contexto’, ou melhor, em uma série de contextos no plural (cultural, político, material, e assim por diante)”. (BURKE, 2004, p.237)
Inserido nessa conjuntura está a participação do autor da obra, portanto, é necessário entender que o artista pega os dados do exterior e os interpreta, por isso não se pode pensar a arte como um espelho da realidade, pois além de tudo nela está presente a intenção do autor. O que queria ele com essa obra? Foi ela encomendada por outrem?
A charge foi feita por Araújo Guerra, publicada no periódico O Século, de propriedade de Miguel Werna1[1]. Esse era um jornal ilustrado, de edição semanal, que costumava publicar anedotas maliciosas e escandalosas para as famílias da burguesia local e dedicado em criticar os costumes da cidade. Miguel Werna, e Bilstein, seu proprietário, nasceu em 1850 e faleceu aos 46 anos. Membro de uma família ligada a aristocracia imperial, desde 1877 dedicou-se ao jornalismo. Foi um dos fundadores da Sociedade Parthenon Literário e era filiado ao Partido Conservador. Publicou O Século de 1880 a 1893[2]. Em editorial publicado em janeiro de 1882, Miguel Werna anuncia que:
“a tiragem de seu jornal é de 2000 exemplares e declara alguns de seus princípios: afirma não fazer jornalismo partidário, mas informa sua ligação ao partido conservador e sua repulsa aos liberais; declara que respeita o lar doméstico e o cidadão digno, mas castiga com ‘estrondosas gargalhadas’ os hipócritas e mentirosos”. (LAZZARI, 2001, p.119)
Com isso podemos entender um pouco mais quais eram os propósitos e intenções com a publicação da charge: uma sátira, com “estrondosas gargalhadas”, à hipócrita burguesia porto-alegrense, que apesar de exaltar as sociedades carnavalescas e mal falar o entrudo continuava a praticá-lo. Segundo Lazzari “ a própria vulgaridade que descrevia no jogo do entrudo representava, no seu modo de ver, a verdadeira moralidade dos novos ricos, a qual fazia questão de expor ao escárnio público”.(LAZZARI, 2001, p.119) Note-se que as pessoas que estão brincando o entrudo na charge, com suas cartolas e vestimentas, são nitidamente elementos de uma classe mais abastada, de quem se esperaria o comedimento do carnaval das sociedades, e não as burlas e a licenciosidade do entrudo, que deveria “civilizar” e “educar” o restante da população através do carnaval chic, elegante e sofisticado das sociedades. Porém não era isso o que ocorria. Ao invés de ser o entrudo eliminado, ele continuava a motivar os foliões, não só os populares, como a hight society porto-alegrense.
Em alguns jornais publicavam-se apelos para que os associados da Venezianos e Esmeraldativessem “pelo menos, a delicadeza de não levarem bisnagas para os bailes...”,( FERREIRA,1970, p.45) o que demonstra que apesar de conseguir conquistar o gosto dos porto-alegrenses o novo carnaval não conseguiu efetivar o maior de seus propósitos: eliminar o entrudo. Vejamos a citação:
“Temos observado em tôda parte esse fato: quanto maior é o entusiasmo verificado nas festas carnavalescas, menor é o uso da bisnaga e, sobretudo do feio emprego do balde d’água. Aqui em Porto Alegre, entretanto, o que se vê desmente a regra: O Carnaval e o Entrudo fazem par e é difícil dizer-se qual o que mais domina, pois até nos bailes realizados pelas nossas sociedade, apesar dos prévios avisos e severas recomendações, a bisnaga se ostenta com toda a energia”. (FERREIRA, 1970, p.45)
Miguel de Werna não era um apoiador do entrudo, mesmo porque fora um correto sócio da Esmeralda. A linguagem de seu jornal, maliciosa e por vezes até ferina, provocava desconforto e polêmica entre as “boas famílias” da capital. Entretanto, segundo suas palavras:
Nunca escrevemos com intenção de que nossas palavras possam ter uma interpretação pouco decente; relatamos fatos que nos pareceram espirituosos ou, quando menos, merecedores de atenção pela sua originalidade. (...)Quanto a essas pessoas pudicas que se constituíram em nossas censoras aconselhamos que não consintam que suas famílias leiam o Século; ofende-lhes a pudicicia a leitura e isto pode-lhes causar grande mal.Leiam de preferência o Primo Basílio ou a Nana; são leituras moralíssimas e por isso muito próprias para tais famílias... (O Século, 1882,p.1)
O que ele estava fazendo, portanto, era também refletir, através da imagem, questões que faziam parte do cotidiano, das polêmicas e das diversões daquela sociedade, ou de grupos sociais pertencentes a ela.
Tentou-se, nesse trabalho, deste modo, demonstrar o quanto a visão de mundo do autor da imagem e de seu encomendante estava concernente com as preocupações sociais de Porto Alegre, principalmente com o status referente a forma de se brincar o carnaval. Sua expressão, através da charge, está em acordo com as polêmicas publicadas nos periódicos em circulação - termos como grosseiro e atrevido eram utilizados pela imprensa da capital riograndense para designar a brincadeira. Nota-se que essa é a forma que Araújo Guerra representa o entrudo: os casais a se beijar, com um sentido de licenciosidade e atrevimento; enquanto em outro a mulher está caindo no chão, por causa da brincadeira agressiva e violenta. Isso não quer dizer que essa idéia seja algo presente em todos os segmentos da sociedade. Se alguém de uma classe social inferior se deparasse com a imagem atribuiria a ela os mesmos significados que um membro da burguesia? Talvez não, pois essa era uma polêmica das classes mais abastadas, que queriam extinguir o entrudo e instaurar o carnaval culto e elegante, prevenindo possíveis “escapadelas” femininas. Mais uma vez, vemos que a recepção das obras depende também das visões de mundo do receptor, que as interpretará de acordo com os seus conceitos, símbolos e experiências, pois a imagem artística “tem a potencialidade de informar mais a respeito dos modos de pensamento de um grupo social do que sobre fatos”. (KERN, 2005, p.18)
Além disso, tentou-se ratificar que o entrudo, a despeito das críticas que recebia em função da sua libertinagem e por não ser uma brincadeira digna para as “filhas do Rio Grande”, era um costume muito comum mesmo entre as pessoas das classes mais abastadas – que as sociedades carnavalescas não conseguiram extirpar -e que era constante alvo de ataques conservadores e moralistas, tendo através da representação nos permitido “ ‘imaginar’ o passado de forma mais vívida”, (KERN, 2005, p..18) pois como afirma Pesavento “seja como confirmação, negação, ultrapassagem, transformação, inscrição de um sonho, fixação de normas e códigos, registro de medos e pesadelos, exteriorização de expectativas, a arte é um registro sensível no tempo, que diz como os homens representavam a si próprios e ao mundo”. (PESAVENTO, 2002/2 p.1)