Relações de Gênero e Poder no Carnaval de Porto Alegre


 Ilustração 1 – Entrudo. Retirada do jornal A Lente, 1885.
Resumo: O presente texto busca discutir as relações de gênero e de poder estabelecidos nos festejos carnavalescos da cidade de Porto Alegre, por volta do último quartel do século XIX, a partir da análise das brincadeiras de entrudo. Buscarei mostrar como essa celebração passou a expressar disputas simbólicas em torno do poder, bem como sentidos e significados para as relações entre homens e mulheres.
Palavras-chave: carnaval, gênero, mulheres.
Abstract: This paper discusses the relationship of gender and power established in the carnival festivities in the city of Porto Alegre, by the last quarter of the nineteenth century, from the analysis of the Shrovetide play. I seek to show how this celebration came to express symbolic disputes about power and senses and meanings for relations between men and women.
Key-words: carnival, gender, women.
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Carnaval! Festejo mais celebrado no Brasil e para mim, mais do que isso, um ótimo espaço de análise do social: através dele podemos ter acesso ao mundo das relações estabelecidas entre homens e mulheres, nos permitindo enxergar a diversidade das atividades práticas e representacionais que compõem esses universos. Enquanto festa, o carnaval pode ser entendido como um momento em que há
espaços de negociação, de tensões, de conflitos, de alianças e de disputas entre distintos agentes, que se conflitam e se debatem em torno não só dos sentidos e significados a serem dados à festa, como também em torno das práticas que as constituirão dos códigos que as regerão, das regras que estabelecerão permissões e proibições, que definirão limites e fronteiras entre o que pode ser admitido e o que deve ser excluído (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p.147).

            O presente artigo visa discutir um momento específico do carnaval de Porto Alegre: as brincadeiras de entrudo. Buscarei mostrar como essa celebração passou a expressar disputas simbólicas em torno do poder, bem como sentidos e significados para as relações entre homens e mulheres, por volta do último quartel do século XIX. De que forma se estabeleceram padrões de comportamento para as mulheres no carnaval e como elas se posicionaram diante de tais imposições.
Porto Alegre, ao que tudo indica, desde o início de sua formação, celebrava o carnaval (FRANCO, 1998, p.100) [1]. Festejado na forma do entrudo, essa festa fazia parte dos hábitos da população desde os primeiros anos da colonização (FERREIRA, 1970, p.11). Entretanto, diferentemente de outras regiões do país, nas quais o entrudo abrangia uma gama mais variada de troças e jogos, em Porto Alegre, o que encontrei foi predominantemente “uma brincadeira na qual os foliões atiravam entre si os limões de cheiro, água das seringas e até farinha” (KRAWCZYK 1992, p. 16), onde os passantes eram, muitas vezes “pegos de surpresa e obrigados a resignar-se com as roupas molhadas ou sujas pelos brincalhões” (Ibid, p.16). O objetivo era mesmo molhar e sujar o adversário.
Evidenciei em Porto Alegre uma expressiva participação feminina no jogo de entrudo, tanto de mulheres da elite, quanto das classes populares. O escritor Antônio Álvares Pereira Coruja, em Antigualhas: Reminiscências de Porto Alegre (1996, p.21), relembra o relato de um antigo morador da cidade. Segundo ele:
Quem se quisesse transportar ao antigo entrudo de Porto Alegre havia de lembrar-se que na rua Nova, em casa das Ângelas e Perpétuas, havia nas três tardes de entrudo um perfeito bazar de banheiras, gamelas, bacias, alguidares, seringas, copos, canecas e canjirões, a não deixar impunes os transeuntes; que no Alto da Bronze além de tudo isso ainda havia o vermelhão, o polvilho e os pós de sapatos; e que a moçada de Porto Alegre saía a pé ou a cavalo com a competente cestinha de limões de cheiro ao braço, acompanhados de criados com os respectivos suplementos, a molharem aqui e acolá as descuidadas (ou não descuidadas) que se achavam às janelas. (...).
 Percebe-se que as moças de conhecidas famílias participavam e gostavam da brincadeira, tendo um arsenal de utensílios para participarem do entrudo. Além disso, ficavam em suas janelas à espera de rapazes para que pudessem jogá-lo.
O viajante inglês Jonh Luccock, que esteve por esses pagos no início do século XIX, também presenciou a efervescência feminina com o jogo nos carnavais que aqui passou, chegando a afirmar que “ficar de tocaia nas janelas e ensopar passantes distraídos era um dos prazeres prediletos das donzelas da terra, ainda mais se as vítimas fossem estrangeiro” (FERREIRA, 1970, p. 10).
O jogo do entrudo era tão popular que dele participavam tanto membros da elite porto-alegrense, quanto os pertencentes às camadas populares. Maria Antônia, meretriz, de 29 anos, residente do famoso Beco do Fanha, no carnaval de 1872 se envolvera em uma confusão. Ela teria saído para ir “à casa de uma moça sua conhecida a fim de jogar o entrudo”. Quando voltava para casa afirmou ter sido atingida por limões de cheiro, que a fizeram cair e com isso teria se ferido, “batendo com o rosto em uma laje que fica do lado de dentro” de casa. O pardo Jorge, um escravo de Dona Thereza Emília de Lima, com 32 anos de idade, que exercia o ofício de alfaiate, foi acusado de agredi-la. Segundo Maria Antônia, contudo, ele teria aparecido em sua residência “por ocasião de principiar com o jogo do entrudo” e nenhum mal lhe fez tendo somente a repreendido em função de sua queda (Secretaria de Polícia. Maço 67. 03 de fevereiro de 1872. Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul). Embora tal relato nos deixe perceber questões que vão muito além da festa, ele nos mostra o quanto o costume de jogar o entrudo estava presente no seio da população porto-alegrense.
Apesar de sua popularidade, com o passar do tempo o entrudo passou a ser visto com “maus olhos”: em 1847, através do código de posturas municipais, a brincadeira foi proibida e multas foram estipuladas para quem desobedecesse (Livro de Registros de Posturas Municipais de 1829 a 1888.4 dez 1829. Porto Alegre, Typ. Do Comercio, 1847). Os jornais passaram a fazer campanhas contra o jogo, ressaltando os prejuízos físicos e morais que a brincadeira trazia. Entre os argumentos mais utilizados pela imprensa porto-alegrense para condenar as práticas do entrudo estava o que atribuía ao jogo um caráter de ameaça à saúde pública, utilizando as recentes epidemias[2] ocorridas na capital como forma de amedrontar os foliões e dissuadi-los de entrudar. O jornal A Reforma argumentava que:
Ainda menos conveniente se pode dizer que é este jogo para as damas, pois não se dão bem com água fria, e mais de uma donzela robusta e viçosa tem deixado de ver o carnaval seguinte por haver sido arrebatada pela tísica, provocadas pelas águas aromáticas do limão (A Reforma, 15 de fevereiro de 1871).
O tifo, a tísica, e a febre eram lembrados com o intuito de amedrontar aos foliões, sobretudo o público feminino. Beatriz Weber (1992, p.8) pontua que “os discursos sobre higiene nesse período fundamentavam uma determinada concepção das relações sociais, definiam um procedimento de ordenação das mesmas que combinava saúde física com moral, sendo esta a dimensão da noção de progresso”. É isso o que vemos no carnaval: a tentativa de controle e ordenação das práticas carnavalescas através de um discurso sanitário, incutindo no imaginário social a noção de que esse era uma brincadeira rude e atrasada, sendo as protagonistas dessa brincadeira (as mulheres) as principais destinatárias dessas recomendações.
A crítica ao entrudo se intensificou a partir de 1870, quando o antigo jogo ganhou novo fôlego. A imprensa da capital atribuiu esse ressurgimento a mulher do Presidente da Província, Antônio da Costa Pinto e Silva, que ao jogá-lo reintroduzira a brincadeira na cidade. Segundo o jornal A Reforma:
Alguns anos havia que este jogo bárbaro caíra em desuso, quando a célebre ex-marquesa de Monte Alegre, mulher do atual Sátrapa de São Paulo, que já foi desta Satrapia do Rio Grande, o pôs novamente em moda. Que esta renovação do pás
sado fosse obra da ex-marquesa nada há que admirar, pois é muito conhecida pelo seu ardente temperamento e extraordinário calor;
Não é, porém digno das humanas filhas do Rio Grande, num tempo em que o tifo, a febre e a tísica dizimam a população, ensopar d’água os que transitam nas ruas banhados em suor? (A Reforma, 15 de fevereiro de 1871).
A ex-marquesa de Monte Alegre, provavelmente Maria Isabel de Souza Alvim, foi a segunda esposa do Marquês de Monte Alegre, José da Costa Carvalho. Casou-se com ele em São Paulo, em 1839 (VIDIGAL, 1999, p.94). O Marquês de Monte Alegre morreu em 1860, tendo ela casado novamente com Antonio da Costa Silva e Pinto, então presidente da Província do Rio Grande, no carnaval de 1869[3]. Denota-se que o jornalista não se refere a Maria Isabel por seu nome ou por sua condição de “primeira dama”. Ele a denomina de ex-marquesa, evidenciando que um dia fora marquesa e hoje não era mais, tendo se casado novamente com o então presidente da Província. Seria uma referência ao seu “ardente temperamento e extraordinário calor”?[4]
            A mulher do ex-presidente da Província, Antônio da Costa Pinto e Silva, era uma mulher vinda de fora, de São Paulo, logo com um comportamento que não era, para o jornal, condizente com o das filhas do Rio Grande. Aquela tinha uma conduta a ser recriminada, e essas não deveriam seguir seu exemplo, não se deixando levar por esse bárbaro jogo.
Desta forma, a crítica feita à prática do entrudo corresponde a uma imposição de certos modelos culturais relacionados ao comportamento feminino, condenando a licenciosidade que caracterizaria essa brincadeira e afirmando não ser essa uma conduta adequada às boas damas. Contudo, esses ideais culturais acabavam sendo contrariados pelas práticas sociais dos agentes uma vez que, pelo menos algumas mulheres (como no caso a ex-marquesa), não se submetiam a eles e continuavam a entrudar[5].
Destaca-se assim, entre os argumentos mais utilizados para se condenar a prática do entrudo, a questão sanitária e a moral. Desjanais, articulista do jornal A Reforma, em uma publicação no Domingo Gordo do carnaval de 1873, salientava os prejuízos que esse jogo trazia para a população.
Um mês antes da Quinquaségima é preciso andar de olho vivo, e atender bem para quem está na janela; porque um pequeno descuido fazem de um homem um pinto. É um horror! Engomar-se a gente para uma visita de cerimônia e, ao dobrar uma esquina, descarregam-lhe uma dúzia de limões! Ir um homem muito sério, meditando mui filosoficamente sobre casos graves da vida, e receber em cheio uma bacia d’água! Andar curtindo os efeitos de uma constipação, atarefado no seu labor diário, suando em bicas, e ver-se repentinamente molhado, e bem molhado! Nem nos bondes já se pode andar. Esperam os carros, e, das janelas, delicadas mãozinhas tiroteiam os passageiros! Ora, melhor fora que não nos tivessem trazido este velho, de quem já havíamos esquecido; e que nos deixassem mesmo sem Carnaval. Há outros numerosos inconvenientes que poderiam ser apontados, porque o Entrudo traz sempre prejuízos físicos e morais. Há brigas domésticas, brigas públicas, dão-se más respostas, recebem-se descomposturas, quebra-se um perna, esfola-se o nariz, - o diabo, enfim!(A Reforma, 23 de fevereiro de 1873).
            Desjenais ressaltava as doenças, os machucados, as brigas públicas e domésticas, todos os incômodos causados pela antiga brincadeira. Além disso, destacava a licenciosidade presente no jogo, pois – segundo ele – “se o Entrudo não passasse do bombardeio das laranjinhas de cheiro e mesmo de alguma boa porção de pós-de-arroz, seria suportável. Mas qual! Ficamos todos doidos, e entregamo-nos com furor aos excessos da folia” (A Reforma, 23 de fevereiro de 1873).
          E esse era o outro principal argumento utilizado para se acabar com a brincadeira: a maior liberdade sexual – sobretudo do público feminino – nos dias de carnaval. Achylles Porto Alegre (1994, p. 87)[6], em suas memórias sobre o carnaval, ressaltava que o entrudo era pretexto para muitas outras coisas: além das guerras de limões; declarações amorosas e intenções maliciosas. Vejamos:
        Não há na verdade brinquedo comparável, que espalhe a loucura, como o entrudo com água.
        É um delírio e quem neles se metia matrona ou moçoila, ancião ou mocetão, não escapava, nunca, a um mergulho no tanque.
        O limão de cheiro então era um encanto e um pretexto para muitas coisas.
        Grupos havia que formavam guerrilhas e era um apedrejamento de limões às vezes raivoso e com verdadeiras intenções hostis.
        Mas, também, quanto moço poeta, quanto namorado maldoso, quanto D. João disfarçado não se servia do limão de cheiro para em declaração de amor espremendo-o com a intenção maliciosa, no colo ebúrneo, decotado, tentador de sua Dulcinéia encantadora?
A idéia de burla de alguns aspectos moralizantes fica, do mesmo modo, evidente nas palavras de outro jornalista do A Reforma – Xicolomã. Segundo ele, o entrudo entrava “protegido pelas sombras, no lar das famílias, é verdade; surpreende a virgem adormecida; expande-se em leviandades; rompe os liames da cortesia; é indiscreto por franco; dá ao belo sexo o delírio das bacantes” (A Reforma, 18 de fevereiro de 1875). Observa-se, portanto, essa ideia de uma certa liberdade sexual feminina – mesmo que furtiva – proporcionada pela brincadeira. O entrudo daria lugar a leviandades e contatos corporais indiscretos, mesmo que sinceros.
Durante o entrudo havia o perigo dos “abraços traiçoeiros que começam na porta da rua e iam terminar mesmo nas barbas dos senhores pais de família” (A Reforma, 14 de fevereiro de 1875). Desta forma, o carnaval despertava uma preocupação familiar e social sobre o comportamento feminino. Careli (1997, p.40) afirma que “o comportamento sexual referente ao gênero feminino no século XIX era associado – por grande parte da imprensa escrita – a uma existência virtuosa a ser canalizada ao longo da vida para o fim maior a que estava destinada a mulher: o casamento e a maternidade”.
Ao participarem deste temido jogo as mulheres não estariam praticando uma existência assim tão virtuosa, podendo prejudicar seu objetivo máximo, o casamento. Além disso, como ressalta D’Incao (2000, p.236), a vigilância sobre a conduta feminina “sempre foi a garantia do sistema de casamento por aliança política e econômica”. Dessa forma, entre as classes mais abastadas era “normal” essa preocupação com a burla que o entrudo proporcionava, pois podia estragar o “objetivo supremo” de toda mulher e fazer com que alianças fossem perdidas por causa da brincadeira. Mas essa não era uma preocupação somente entre a elite, existia também uma vigilância familiar de populares sobre a conduta de suas filhas. Isso se deveu, segundo Arend (199, p.88) a “expectativa de populares de ascensão social via casamento [...]. Atitudes que pudessem comprometer uma futura união deviam ser evitadas”.
Assim, a prudência “era o comportamento que mais se aproximava da virtude pregada. Caberia orientar as moças a zelar por ela, mantendo sua honra e vergonha” (CARELI, 1997, p. 39). Como vimos, o entrudo proporcionava a perda deste controle dos pais e também da prudência. Assim, “os padrões de controle do comportamento feminino objetivavam não só submetê-las à autoridade familiar, para que os ensinamentos virtuosos fossem ministrados, como também impedir seu contato com outras formas de conduta ou pensamento que viessem a corrompê-la e afastá-la do seu caminho” (CARELI, 1997, p. 277), como por exemplo, as correrias e agarramentos da velha brincadeira das molhadelas.
Podemos aqui fazer uma interpretação do carnaval a partir da noção de culturas de classe, como “manifestações de uma tradição, de culturas tradicionais e, em grande medida, manifestações de rebeldia e resistência à dominação social” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p.147). Desta forma, ele é interpretado como um dado da cultura popular, que resiste e estabelece a crítica ao universo da cultura erudita ou da cultura hegemônica. Espaço em que dominados criam interstícios, carnavalizando os símbolos e conceitos dos dominantes. Durante as brincadeiras de entrudo, através da sexualidade, as mulheres resistiam à dominação social vivenciando práticas e significações do mundo dos dominantes.
Ao analisar os festejos carnavalescos na cidade do Rio de Janeiro, na virada dos séculos XIX a XX, Rachel Sohiet (2000, p.105) verificou que as senhoras e senhoritas de boas famílias esperavam o ano inteiro para, no dia de carnaval, poderem usar uma fantasia de cocottes, denominação atribuída às prostitutas de luxo, em sua maioria francesas. Segundo ela a sexualidade feminina seria marcada por um “anseio presente na maioria das mulheres, o de se fazerem sentir como um elemento de sedução”. A autora justifica essa atitude pelo fato de que “apesar da repressão sexual que recaía sobre as mulheres, buscando nelas incutir o estereotipo da frigidez feminina, das exigências de virgindade e de sobriedade de conduta, confirma-se o pressuposto de Freud de que a sexualidade, o ingrediente mais poderoso da constituição humana, não pode tão facilmente ser descartado” (Ibid., p.105). Desta forma, podemos também empregar tal interpretação para entender o porquê do sucesso do entrudo entre o sexo feminino: era um dos únicos momentos em que as senhoritas podiam exercer sua sexualidade de forma mais declarada. As mulheres estariam assim “procurando festejar o corpo e extrair o prazer que ele é capaz de proporcionar, ao invés de permanecer numa atitude passiva, conforme lhes era apregoado”(Ibid., p.107).
O carnaval – na forma do entrudo – era, portanto, um momento em que se expressavam as disputas em torno do poder que constituem o gênero[7]. De acordo com Pierre Bourdieu, (2004, p.13) as mulheres, desde o nascimento, por serem mulheres, são tratadas como objetos cuja função é manter o capital simbólico – especialmente a honra – em poder dos homens. Assim, desde o nascimento, introjetamos construções culturais que evidenciam inúmeras desigualdades e hierarquias, produzindo significados e testemunhando práticas de diferentes gradações.
Ao jogarem o entrudo, as mulheres quebravam com esse ordenamento social. Além de colocarem em risco a honra masculina (de pais, de irmãos), se entregando às correrias e agarramentos entrudescos, através de sua sexualidade desconstruíam hierarquias impostas no cotidiano. Rachel Sohiet,(1998, p. 180) analisando o riso como forma de subversão e resistência dos subalternos, verificou que “as mulheres, vivendo outra modalidade de opressão, utilizavam-se igualmente da festa carnavalesca para entrar no reino do prazer, em sua variada significação, empregando-a como alavanca para a sua liberação”. Parodiando a referida autora, poderia afirmar que o entrudo era uma arma eficaz contra a hierarquização e a opressão das subalternas. 
De tal disputa surgiu em Porto Alegre uma nova prática carnavalesca.  Adotada a partir de 1873, objetivava eliminar o entrudo. Era o carnaval veneziano. Inspirado na corte carioca passaria a ter os homens como protagonistas do carnaval e modificava a participação das mulheres na festa, promovendo uma readequação das condições e dos lugares socialmente desejáveis a elas.
Lembram-se de Desjanais, aquele articulista que criticou o entrudo?! Nesse mesmo artigo, ele pedia aos rapazes de Porto Alegre que não deixassem os moços de outras cidades os ultrapassarem em gosto e elegância, pois tanto em Rio Grande quanto em Pelotas já se teria criado sociedades carnavalescas, ou como o mesmo dizia, “já há Carnaval”: “trabalhemos, portanto, para acabar com o Entrudo. Olhem: no Rio Grande e Pelotas já há Carnaval. E é até vergonhosos para a mocidade porto-alegrense ter deixado a rapaziada daquelas sociedades pôr-lhes o pé na frente” (A Reforma, 23 de fevereiro de 1873).
Além de uma forma de moralização do carnaval, a mudança para as sociedades carnavalescas e a intenção de extinção do entrudo pode ser explicada como uma tentativa de manutenção do habitus sexuado, que visava manter as mulheres “em suas ideias, percepções, práticas ou ações, dentro dos padrões de comportamento e de auto compreensão atribuídos pelo processo de socialização do sistema de dominação” (BUTELLI, 2008, p. 135). Elas sairiam do protagonismo que apresentavam nos jogos das molhadelas para tornarem-se coadjuvantes das festas venezianas, pois agora deveriam assistir ao desfile dos rapazes, aplaudi-los e jogar-lhes flores, como bem nos mostra o relato sobre o carnaval de 1875, que esteve animadíssimo, tendo Esmeralda e Venezianos disputado a supremacia e deste combate “deu em resultado ficar o campo juncado de ... flores, tal foi o empenho das moças em jogar-lhes lindos buquês” (FERREIRA, 1970, p.39).
Como se pode observar, as formas de participação feminina no carnaval de Porto Alegre expressavam uma disputa simbólica em torno do poder – seriam as mulheres protagonistas ou coadjuvantes da festa? Assumiriam elas uma postura de passividade, de meras espectadoras do carnaval veneziano? Ou reivindicariam, através de ações, uma postura mais ativa, lugares e condições nos quais pudessem realmente usufruir as benesses dos festejos momescos? Permaneceriam fieis ao costumes entrudescos?
Transpondo aos ideais culturais que estavam sendo construídos para as suas participações no carnaval, as mulheres deixaram de ser somente espectadoras para participarem ativamente desse festejo. Em 1879, por exemplo, na eleição da sociedade Esmeralda, as mulheres perfaziam a comissão de honra, responsáveis pela organização dos bailes daquela agremiação: Agueda Francelina Salgado, Alzira Margarida Masson, Florinda Chaves de Castro, Clemência Fróes, Georgina Nelson, Leopoldina Chaves (Mercantil, 03 de março de 1879). Aos poucos as mulheres ocuparam um lugar diferente do que lhes havia sido proposto quando a instauração do carnaval veneziano, participando e organizando aos bailes e aos desfiles. O jornal Mercantil, em 1880, destacava a presença das mulheres nos préstitos exibidos pela sociedade Esmeralda, pelos Venezianos e pela Germânia.
 O belo sexo, a seu turno, fez o possível para abrilhantar as festas, concorrendo com o seu contingente.
Assim é que nas três sociedades via-se elegantes grupos de gentis donzelas ricamente vestidas, dando assim graça e imponência aos préstitos (Mercantil, 11 de fevereiro de 1880).

Além não se resignarem a essa condição de passividade frente aos festejos propostos pelas sociedades carnavalescas, as mulheres permanecerem fazendo o uso da brincadeira tão condenada, resistindo a imposição de novas práticas sociais. Em seu programa para o carnaval do ano de 1882, os Venezianos enfatizavam que, a despeito de todos os esforços e feitos dessa sociedade, a permanência da “perniciosa bisnaga” e, especialmente, o fato de elas “emanarem de delicadas e alvas mãozinhas” continuavam a contaminar o carnaval.
        E quem fez tudo isto, não tem podido abolir a perniciosa bisnaga, fonte de quanta constipação, pneumonia e tifo, há, que flagela e dissipa a humanidade!...
        E o que mais horroriza, é ver que esta plêiade de epidemias dimana de delicadas e alvas mãozinhas que parecem fadadas para derramarem consolações sobre a humanidade sofredora!!!... (Jornal do Commercio, 18 de fevereiro de 1882).
Podemos, portanto, afirmar que nesse embate social – expresso através do reinado de Momo – as mulheres conseguiram reafirmar seu direito de participar ativamente do carnava:l seja através do entrudo, com seus limões e bisnagas; ou seja, conquistando um lugar no carnaval veneziano, desfilando nos préstitos das sociedades que elas também passaram a organizar. Resistindo a imposição do modelo proposto pelo carnaval veneziano e as tentativas de controle e de readequação no espaço social as mulheres continuaram a se entregar aos delírios que essa festa proporcionava.


Referência Bibliográfica
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ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Festas para que te quero: por uma historiografia do festejar. Patrimônio e Memória. UNESP – FCLAs – CEDAP, v.7, n.1, p. 134-150, jun. 2011, p. 134-150.
AREND, Sílvia. Um olhar sobre a família popular porto-alegrense (1886-1906). Porto Alegre: UFRGS, Dissertação de Mestrado, 1994.
BECKER, Gisele.Uma História Polifônica: Mulheres e Laços de Família em Porto Alegre (1858 -1908). Dissertação de mestrado, PUCRS, Porto Alegre, 2001.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
CARELI, Sandra da Silva. Texto e contexto: virtude e comportamento sexual adequado às mulheres na visão da imprensa porto-alegrense na 2ª metade do século XIX. Porto Alegre: PUCRS, 1997.
CORUJA, Antônio Álvares Pereira, Antigualhas: Reminiscências de Porto Alegre, Organizado por Sérgio da Costa Franco, 2a Ed. Porto Alegre: UE/Porto Alegre, 1996. O trecho citado faz parte de um artigo originalmente publicado em Gazeta de Porto Alegre, 13 de março de 1884.
D’INCAO, Maria Ângela. Mulher e família burguesa. In: DEL PRIORY, Mary. Historia das Mulheres no Brasil. São Paulo:Contexto, 2000.
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FRANCO, Sergio da Costa. Porto Alegre: Guia Histórico. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1998.
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PFROMM NETTO, Samuel, 1932-2012. Dicionário de Piracicabanos. São Paulo: PNA, 2013.
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SOIHET, Raquel. A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca da Belle Époque ao tempo de Vargas. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1998.
VIDIGAL, Geraldo. O Marques de Monte Alegre: o alvorecer de um estadista. São Paulo: IBRASA, 1999.
WEBER, Beatriz. Códigos de Posturas e Regulamentação do Convívio Social em Porto Alegre no Século XIX. Porto Alegre: UFRGS, Dissertação de Mestrado, 1992.

 Artigo publicado originalmente em Dimensões - Revista de História da UFES, Vitória: Núcleo de Pesquisa e Informação/Progtama de Pós-Graduação em História, 2016, número 36.



[1] Porto Alegre começou a ser ocupada ainda na primeira metade do século XVII, mas seu processo de povoamento só teria início com a chegada de casais açorianos em 1752. O pacato vilarejo passou a ser a sede da administração do governo provincial no ano de 1773, antes mesmo de ser elevado à categoria de município: isso só ocorreria por volta do início do século XIX, quando contava com uma população de 3.927 habitantes (SIMANSKY, 1998, p.41).
[2] Porto Alegre sofreu ameaças de epidemias, fazendo parte das cidades atingidas no Brasil, em 1855, pela cólera. Essas ameaças foram constantes na década de 1850, destacando-se de febre escarlatina em 1850 e 1853, provavelmente em consequência do cerco da cidade na década de 1840, do aumento da população, devido a presença de tropas durante a Revolução Farroupilha, e do comércio com a área colonial, que não foram acompanhadas, imediatamente, de condições urbanas ideais para enfrentar uma maior concentração populacional (WEBER, 1992, p.8).
[3]Exerceu mandato de 16/09/1968 a 20/05/1869 (AITA, 1996).
[4] Além disso, há o fato de que ao se casar novamente Maria Isabel perdeu o título de Marquesa de Monte Alegre, tendo ele ficado para a primeira esposa de José da Costa Carvalho, Genebra de Barros Leite (PFROMM NETTO, 2013).
[5]Gisele Becker, ao pesquisar narrativas literárias, inventários, processos de divórcio e jornais, aponta para a diversidade dos tipos femininos que circulavam em Porto Alegre. Havia “mulheres que se adequavam ao padrão desejado de retidão (a boa esposa, a boa mãe, a defensora dos filhos, a mulher que se apega as coisas simples da vida e não aos prazeres mundanos e ao luxo, a moça de boa índole, a que suporta o adultério do cônjuge), mulheres que fogem a esse estereotipo ( a adúltera, a ciumenta, a questionadora, a viúva que contrai um segundo matrimonio, a mulher que assume os negócios deixados pelo marido, as que passam a administrar  propriedades, a que não perdoa a infidelidade do marido) e, até, possivelmente mulheres que conjugam diferentes elementos desses perfis” (BECKER, 2001, p. 274).
[6]Aquiles Porto Alegre nasceu em Rio Grande em 1848 e faleceu em Porto Alegre em 1926. Foi funcionário público, jornalista, cronista, poeta. Membro da Sociedade Partenon Literário. Usava o pseudônimo de Carnioli em suas crônicas no Jornal do Comércio (FRANCO,  1998,  p.326).
[7] Compartilhamos com Joan Scott (1990, p.15) o entendimento do conceito de gênero como o saber a respeito das diferenças sexuais, “um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e [...] o primeiro modo de dar significados às relações de poder”, pois esse conhecimento funda significados sobre as diferenças corpóreas, sendo primeiro campo por meio do qual o poder é articulado. De acordo com a autora, “as mudanças na organização das relações sociais correspondem sempre a mudanças nas representações de poder, mas a direção da mudança não segue necessariamente um único sentido” (Ibid., p.14)

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