Pandemias e o Carnaval de Porto Alegre


Esse ano não tem carnaval! A principal festa do calendário brasileiro terá que esperar! A fim de celebrar a vida, não celebremos o carnaval!

Embora lamentemos, 2021 não será inédito nesse quesito! Na segunda metade do século XIX, uma epidemia de cólera assolou Porto Alegre e também fez com que a população deixasse de comemorar os dias consagrados a Momo,  através do jogo de entrudo.

Forma como o carnaval chegou ao Brasil, o entrudo era um conjunto de brincadeiras realizadas nos três dias que precediam a entrada na quaresma. Entre elas havia o arremesso de limão de cheiro, água de bacias e baldes, farinha e tudo o mais que pudesse molhar e sujar o adversário. Embora fosse muito praticado desde a fundação da cidade, há certo tempo vinha sendo contestado.

Com o objetivo de organizar a vida urbana e definir as regras de convivência, em 1829 foi elaborado o Código de Posturas Municipais de Porto Alegre. E três anos depois, os termos de vereança já adotavam, para ser incluído no referido código, “um artigo proibindo o Entrudo aprovado na Câmara Municipal da Capital do Império” e enviavam “Editais ao Juiz de Paz da Cidade e Freguesias do Termo ordenando que se faça cumprir a nova Postura que proíbe o Entrudo” (PORTO ALEGRE, 1994):

Fica proibido o jogo do Entrudo dentro do Município: qualquer pessoa que o jogar incorrerá na pena de dois mil reis á doze, e não tendo com que satisfazer, sofrerá de [dois] a oito dias de prisão: sendo escravo sofrerá oito dias de Cadeia, caso seu senhor o não mande castigar no Calabouço com cem açoites, devendo uns e outros infratores ser conduzidos pelas Rondas Policiais á presença dos Juízes de Paz para os julgarem á vista das partes, e testemunhas, que presenciarem a infração. As laranjas d’entrudo, que forem encontradas pelas Ruas, ou estradas serão inutilizadas pelos Encarregados das Rondas. Aos Fiscais com seus Guardas também fica pertencendo a execução desta Postura (PORTO ALEGRE, 2013).

Em 1834, o Conselho Geral da Província, organismo deliberativo que antecedeu a Assembleia Legislativa provincial, recebeu o Edital de 1832, contendo as razões da proibição do jogo no município e aprovou a referida postura. Desta forma, no ano seguinte, os termos de vereança já tomavam providências para proibir o jogo do Entrudo na cidade (PORTO ALEGRE, 1994).

Contudo, mesmo com a proibição, a brincadeira das molhadelas continuava a ser largamente praticada. Nem mesmo durante a Revolução Farroupilha (1835-1845), com a cidade sitiada, entre 1836 e 1839, a população não deixou de brincá-la (FLORES, 1996, p.195). O jornal Chronica de Porto Alegre, em fevereiro de 1852, registrava que "à tarde principiou o jogo entrudal a desenvolver-se, mas como todas as coisas, principiou pelo mais miúdo: não houve rapazinho imberbe que não saísse à rua armado de guerra, quero dizer, com o seu tabuleiro de limões. E do que eu gosto: ver esses franguinhos, que mal mostram nas carinhas rosadas a penugem de uma barba vindoura, atirando limões às senhoras mais respeitáveis: alguns levam sofríveis carões, pois lhes dão com as janelas na cara, mas eles são filósofos, caminham para diante seguidos de seus tabuleiros, e com um ar marcial, que parece vai dizendo: cuidado comigo, lá vai um jogador de entrudo".

Provavelmente em consequência do cerco da cidade, do aumento da população, devido a presença de tropas durante a Revolução Farroupilha, e do comércio com a área colonial - que não foram acompanhadas, imediatamente, de condições urbanas ideais para enfrentar uma maior concentração populacional - ameaças de epidemias foram frequentes na cidade na década de 1850 (WEBER, 1992). A cólera, por exemplo, atingiu Porto Alegre entre o final de 1855 e o início de 1856, e foi uma das maiores tragédias na saúde da cidade. Segundo estimativas, cerca de 10% da população, ou 1.700 pessoas, faleceram em dois meses vítimas da doença (BALESTRO, 2017). Pandemia do século XIX, a cólera teve na Índia seu lugar de origem. Atingindo vários países da Europa - como Itália, França e Inglaterra, chegou primeiro à América do Norte e, a partir de 1850, alcançaria a América do Sul. A bordo da galera Deffensor, a moléstia chegou ao Brasil em 1855, aportando na cidade de Belém do Pará. E, em menos de um ano, se espalharia pelo restante do país, alcançando o extremo-sul do Império antes mesmo de terminar o ano.

Reformador de costumes, o medo da cólera foi capaz de fazer com que a população porto-alegrense, a partir de 1856, deixasse de jogar o entrudo. O jornal O Guayba, em 1857, noticiava que o limão havia desaparecido, cessando os batizados públicos. Em seu lugar as máscaras, “ainda em pequeno número, mas sempre assaz para indicar as futuras alegrias, lembrando-se que a criança virá a crescer”.

Durante vários anos o entrudo não foi praticado e quando a velha brincadeira parecia estar extinta eis que - para o infortúnio de alguns e alegrias de outros - haveria de ressurgir: “jogou-se muito o entrudo que desde 1855 estava abolido, tanto que já não eram suficientes os limões, serviam bacias, jarros, canjirões, copos e canecas grandes, seringas que levavam uma medida d’água”, noticiava o jornal Arcadia em 1869.

Nem o cólera haveria de enterrá-lo para sempre!

REFERÊNCIAS
PORTO ALEGRE, Prefeitura Municipal. Secretaria Municipal da Cultura. Coordenação da Memória Cultural. Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho. Catálogo das Atas da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, v. 7, Porto Alegre, 1994.
PORTO ALEGRE (RS). Secretaria Municipal da Cultura. Livro de registro das posturas municipaes de 1829 até 1888. Porto Alegre: Editora da Cidade : Letra & Vida, 2013.
BALESTRO, Ernesto Pereira. Crenças, Tradições e Disputas: a epidemia de cólera de 1855. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017.
WEBER, Beatriz. Códigos de Posturas e Regulamentação do Convívio Social em Porto Alegre no Século XIX. Porto Alegre: UFRGS, Dissertação de Mestrado, 1992.