Há 90 anos, nós, brasileiras, obtivemos uma conquista muito importante na luta pela igualdade entre homens e mulheres: o direito ao voto!
Através do Decreto 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, Getúlio Vargas regulamentava o Código Eleitoral, estabelecendo como eleitor o "cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo", sem outras restrições, mas com a ressalva do voto ser facultativo para as mulheres. Em 1934, a nova constituição consolidava nosso direito. Podíamos votar e ser votadas!
Essa conquista, porém, não veio sem luta. Precedida de anos de um intenso debate/combate do movimento feminista, a possibilidade de uma igualdade política despertava críticas e, até mesmo, o pavor já nas primeiras décadas no século XX. Em 1908, O Malho - revista ilustrada que circulou no Rio de Janeiro e se caracterizava pela sátira política - publicava uma charge alertando aos brasileiros o perigo da má sorte trazida pelas sufragistas.
Uma sufragista: - Viva o voto feminino! Abaixo a impotência dos homens para o serviço da polícia!Outra: - Yes! Mim vai escreve um artigo aconselhando todas as mulheres do mundo a acompanhar nosso programa!Inglês: - Cuidado, Srs. brasileiros! Vocês já andam tão caiporas que devem evitar mais esse caiporismo!...
é sempre o assunto do dia o terror que elas causam e que parece ter subido ao paroxismo. Não há desatino concebível a quem não tenham recorrido para obrigar o parlamento britânico a conceder o direito britânico do votes for women! A bomba, o fogo incendiário, o veneno, tudo tem sido arma política para a histeria sufragética (A Federação, 25/07/ 1913, p.4).
O incômodo com o avanço do movimento feminista e a luta pelas igualdade de direitos entre homens e mulheres também chegou ao reinado de Momo. Com a crença de que pelo riso se corrigem os costumes - Castigat ridendo mores - e de que o carnaval "não é somente a exibição de carros artísticos, caríssimos e alegóricos, ele deve atingir diretamente os domínios do riso e verberar, por entre gargalhadas estridentes os desmandos dos homens públicos e as ilegalidades legalizadas", o jornal pelotense A Opinião Pública elogiava o préstito do Clube Carnavalesco Diamantinos, que trouxe uma "charge representando um grupo de mulheres exaltadas, furibundas, gritando pela igualdade de direitos civis, enquanto os pobres maridos se entregavam aos pobres labores domésticos. São as indefiníveis belezas do feminismo, com todo os seus entusiasmos", satirizava o jornal (A Opinião Púbica, 2/03/1911).
Já em Porto Alegre, no carnaval de 1916, O Exemplo - primeiro jornal da imprensa negra gaúcha - informava que desfilando pela rua dos Andradas, no centro da capital, fizeram sucesso diversos cordões e grupos carnavalescos, entre eles o Cordão das Sufragistas (O Exemplo,12/03/1916, p. 1). Dois anos depois, A Federação também noticiava que: "composto de alguns rapazes, apareceu anteontem, tomando parte no carnaval , o Grupo das Sufragistas. Este grupo que apareceu com muito espírito deu uma nota alegre no atual carnaval" (A Federação, 18/02/1918, p.8).
Interpretado como um momento propício para se dar vazão aos seus desejos mais profundos, adequado à crítica social e à inversão temporária de poder, no que tange ao movimento feminista e à luta sufragista, o carnaval acabou por reforçar as hierarquia dominantes do masculino, trazendo para a sátira aquilo que consideravam um conduta imprópria de algumas mulheres, ora vista como motivo de preocupação, ora como de graça e piada. Esse foi o caso de Leolinda Daltro, uma das primeiras mulheres a lutar pelo voto feminino no Brasil ao fundar o Partido Republicano Feminino, em 1910. Em fevereiro de 1917, todas as três sociedades carnavalescas – Democráticos, Tenentes do Diabo e Fenianos – que desfilaram no Rio de Janeiro, capital federal, fizeram alguma apologia ou ao voto feminino ou à pessoa da professora Leolinda. O Fenianos, por exemplo, apresentou no seu desfile um carro denominado “O Voto Feminino”, que fazia “uma espirituosa alusão à conhecida professora, useira e veseira na catequese dos bororós, que, pela boca de um endiabrado rapaz, procura fazer valer os direitos das saias” (A Epoca, 21/02/1917, p.5). Também o Democráticos levou um “carro crítica” intitulado: “Professora D’Altro lá com ela” que jocosamente era assim descrito pelo próprio grupo:
Não a conhecem? Ora, não há quem desconheça o feminino tipo criticado. Seu nome é barulhento e, por isso mesmo, da berlinda não sai. Quando sucede que nos poucos dias de uma semana não fale na professora d’altro lá com ela, é contar como certo que, no oitavo dia, vai aparecer um pratinho de sensação. Desde que me entendo (o Arlequim tem já 30 anos), ‘isto’ tem sido assim. (O Paiz, 20/02/1917, p.8).
Nota-se o emprego de epítetos nada elogiosos para descrever a figura de Daltro, palavras com carga altamente negativa são empregadas, tais como: mulher barulhenta, mulher-homem, entre outros, como se pode acompanhar no enredo do carro, cuja letra foi publicada na mesma edição do jornal O Paiz:
A professora d’altro lá com ela,Afamada por muitas aventuras,Um homem de vontade se revela,Fazendo diabruras...Funda uma escola aqui, outra acolá,Sai-se daqui e vai para os sertões,Sendo deveras, mesmo, d’alto lá,Nas manifestações.Trouxe do seio da floresta um dia,Uns semi-nus e tristes botocudos,Que morreram coitados da mania,De colossais estudos.De vez em quando vai ao presidente,Uma qualquer historia recitar;E, p’ra mulher pleteia, altivamente,Direito de votar.Mas há que nisto tudo um mal lhe veja,Quem lhe atribua a triste sorte à zinha,De ir acabar na porta de uma igreja,A conversar sozinha. (idem).
A passagem desse carro provocou muita hilaridade entre os que estavam reunidos para ver o desfile, tal como se observa neste relato, publicado em outro jornal: "Uma, outra crítica, depois do entusiasmo da multidão, ante a alegoria que passara, veio despertar o riso geral. Era a crítica espirituosa em que uma conhecida professora, ‘d’alto com ela’, é posta em foco. Este engraçadíssimo carro crítico era acompanhado de um regular guarda de honra, em estilo caricato" (A Época, 21 /02/1917, p.5).
Já a sociedade carnavalesca Tenentes do Diabo apareceu levando uma canção que destacava:
‘o voto feminino’– o eterno problema do Brasil, do sul ao norte.O ingente trabalho de eleições, votar é difícil.E se o sexo barbado foge às urnas,que se dê lugar ao voto feminino.A Dona Daltro, professora antiga.De tico-tico, p’ras gentis meninas.Formou partido, que um ideal abriga!–Elas votarem... serem masculinas.E d’alto assunto esta questão agora.O Brasil espera solução fadada:–É ver seu povo, na suprema hora.Pegando firme na mais rija espada (A Epoca, 21/02/1917, p.5).
O periódico Gazeta de Notícias, em matéria de capa, também salientou o desfile das sociedades carnavalescas na Avenida Rio Branco, e assim comentou a passagem do carro do Fenianos:
o 12º carro crítico “o voto feminino’ no qual expunha a curiosidade popular o desejo das senhoras em exercer, como o sexo forte, o direito do voto. A professora Leolinda Daltro, como iniciadora dessa ideia entre nós, foi alvo de grande crítica, mas crítica delicada, sutil, sem qualquer escabrosidade (Gazeta de Notícias, 21/02/1917, p.1).
Segundo o jornal, o melhor carro sobre o tema foi o de outra agremiação, assim descrito pela Gazeta de Notícias (21/02/1917, p.1): “Voto Feminino, com a d. Deolinda Daltro a gritar, não era mau, mas todos fizeram o mesmo e sem duvida o mais bem defendido era o dos democráticos”. Apesar do que propagou a Gazeta de Notícias de que a crítica feita a Daltro foi “delicada, sutil, sem qualquer escabrosidade”, não é o que nos parece ao analisar as letras dos enredos apresentados. Afinal, todas as descrições deram um destaque negativo à figura de Daltro e dos seus pedidos de sufrágio para as mulheres. Ainda que satírica, essa referência carnavalesca denota um reconhecimento da luta de Leolinda Daltro e demonstra que o voto feminino estava em voga na sociedade brasileira da época.
"Barulhentas", "exaltadas", "loucas" e "enraivecidas", essas mulheres abriram caminho para que hoje possamos celebrar e lutar por mais mulheres na política!! Que nossa voz seja reconhecida!!!
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Caroline Leal é professora e historiadora. Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2013), desenvolve pesquisas a respeito do Carnaval de Porto Alegre.
Mônica Karawejczyk é historiadora, doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi bolsista do Programa de Pesquisadores Residentes da Fundação da Biblioteca Nacional, entre 2013 e 2014. Pesquisa sobre o movimento sufragista no Brasil e o papel das associações femininas no período. Atualmente é bolsista Pnpd Capes na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
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