“Procura-se um lugar para o sambódromo”: a luta por espaço para os desfiles do Carnaval de Porto Alegre nos anos 1990-2000

Carnaval Porto Alegre 2022. Carnaval Enfoco, Japa Fotografia.

Em 1999, a manchete repercutia a dúvida que pairava entre a comunidade carnavalesca: após cerca de dez anos de espera, o Sambódromo de Porto Alegre ainda não tinha um local definido. E a matéria do jornal Zero Hora complementava: “depois de uma década de impasses e polêmicas, a capital gaúcha continua sem uma pista de eventos permanente”. Foi apenas em 2004 a inauguração do Complexo Cultural do Porto Seco, na zona norte da cidade, local onde até hoje acontecem os desfiles.

Entre a inauguração de uma pedra fundamental da chamada Pista de Eventos na Avenida Augusto de Carvalho, pelo prefeito Alceu Colares (PDT), em 1988, até a inauguração do Complexo Cultural do Porto Seco passaram-se mais de dez anos, alguns projetos foram abandonados e muitos empecilhos criados à instalação de um local com estrutura apropriada para os desfiles de Carnaval das escolas de samba. O Porto Seco hoje conta com barracões para montagem de alegorias logo ao lado da pista, o que foi uma conquista da comunidade carnavalesca – e é um diferencial de Porto Alegre em relação a outras cidades. Mas até hoje esse Complexo Cultural destinado aos desfiles não conta com uma estrutura fixa, permanente, de arquibancadas – que junto com os barracões eram uma das principais reivindicações dos carnavalescos. E por que o Porto Seco? O que fez com que se deslocasse a realização do Carnaval das escolas de samba da região central de Porto Alegre para o extremo norte da cidade, numa área a princípio destinada a transportadoras de cargas, entrada e saída de mercadorias via rodoviária?

O final da década de 1980 foi marcado pela evolução nas produções das escolas de samba de Porto Alegre, com grandes desfiles e público cada vez mais numeroso, que a avenida Augusto de Carvalho já não comportava. Um espaço maior e com estrutura permanente, que não precisasse ser montada e desmontada todos os anos, era importante pra manter a qualidade do Carnaval. Nesse momento cresce no debate público a reivindicação pela Pista de Eventos, que iria acolher o Carnaval, além de possibilitar a realização de oficinas e atividades culturais ao longo do restante do ano, e também outros desfiles, como da Independência, em 7 de setembro, e da Revolta dos Farrapos, em 20 de setembro.

A reivindicação pela Pista de Eventos partira das organizações carnavalescas, de escolas de samba e da AECPARS (Associação das Entidades Carnavalescas do Rio Grande do Sul), e encontrara apoio em instâncias do Poder Público. Após a primeira proposta da Pista de Eventos na própria avenida Augusto de Carvalho, posteriormente abandonada, a partir de 1994 pelo menos outros três projetos de locais foram sugeridos.

O primeiro foi feito pela gestão de Tarso Genro (PT), em 1994: uma pista no interior do Parque da Harmonia, ideia que suscitou reações do Movimento Tradicionalista Gaúcho, de ambientalistas e de autoridades da administração federal com sedes próximas (como Ministério da Fazenda, IBGE, Ministério da Agricultura e Justiça Federal), que consideravam incompatível a Pista de Eventos com o Centro Administrativo Federal. A obra traria prejuízo à segurança dos prédios, das pessoas e também o livre acesso aos serviços – argumento que não aparecia em relação ao Acampamento Farroupilha, que ocupava o parque durante todo o mês de setembro. Essa primeira proposta foi avaliada por uma Comissão Especial na Câmara de Vereadores e rejeitada em função de supostas inconsistências no projeto, e a partir desse momento o debate público em torno da Pista de Eventos/Sambódromo só cresceu.

Em 1997 na gestão de Raul Pont (PT) na prefeitura, foi indicado um novo local para a construção: uma área entre o Parque Marinha do Brasil e o Estádio Beira-Rio, no bairro Menino Deus, que encontrou ainda mais forte mobilização contrária por vizinhos através da Associação de Moradores do Menino Deus. Entre os argumentos, diziam que a construção da Pista de Eventos traria problemas como violência, barulho, perturbação da ordem. “Não somos contrários ao Carnaval, mas as batucadas irão acabar com o nosso sossego”, disse um morador ao jornal Correio do Povo (Correio do Povo, 21 de setembro de 1997).

A mesma rejeição não se viu, por exemplo, com a construção do Anfiteatro Pôr-do-sol, na mesma época e em local próximo, e que também previa aglomerações e som alto. Tanto em colunas de jornais, quanto em manifestações oficiais, os grupos opositores não se diziam abertamente contrários ao Carnaval, mas não queriam a Pista de Eventos perto de suas casas ou locais de trabalho. Os argumentos utilizados giravam em torno de uma representação do Carnaval como uma festa que causava desordem e ameaçava a segurança, explicitamente racistas com a população que mais mobiliza o Carnaval das escolas de samba na cidade. Já à comunidade carnavalesca o espaço concedido nos jornais e nos âmbitos decisórios era pequeno, embora fossem os principais interessados na decisão. O conflito com a Associação de Moradores do Menino Deus chegou à Justiça, que embargou o início das obras, previstas para o início de 1998.

Enquanto se aguardava a decisão oficial da Justiça, novas propostas foram feitas e as discussões voltaram a se acirrar em 2001, quando nova Comissão Especial foi constituída na Câmara de Vereadores. Em 2002, após mais um enfrentamento com Associação de Moradores – dessa vez do bairro Humaitá, nova possibilidade de instalação da Pista de Eventos – o Conselho Municipal do Desenvolvimento Urbano e Ambiental (CMDUA) se reuniu e decidiu pela localização da Pista de Eventos no Porto Seco, rejeitando as opções do bairro Humaitá e da Restinga, que também estavam em disputa. Parte dos carnavalescos presentes na ocasião protestou, pois esperavam que vencesse o Humaitá – uma área de mais fácil acesso para escolas em diferentes partes da cidade.

Dois anos após a decisão, no Carnaval de 2004 foi inaugurado o Complexo Cultural do Porto Seco, com a expectativa de que abrigaria oficinas que possibilitariam trabalho e geração de renda por todo o ano, não apenas no Carnaval. A promessa de um espaço vivo, com boa estrutura e de uso contínuo por diversos grupos sociais compensaria a distância do centro. Quase vinte anos depois, as arquibancadas ainda precisam ser montadas e desmontadas todo ano, os desfiles vêm sendo afastados do feriado de Carnaval e a cada ano diminui o investimento público nos desfiles das escolas de samba de Porto Alegre.

A pandemia atingiu duramente o calendário carnavalesco e as restrições sanitárias dificultaram o que já não era fácil. Mas a cultura do Carnaval persiste, as escolas resistem se reinventando e re-existindo através de ações dentro das comunidades, rodas de samba, shows, ensaios e todos os preparativos para o próximo Carnaval. Os sambas-enredo decorados, os instrumentos afinados. Depois de dois anos, os desfiles voltaram a acontecer em maio de 2022 no Porto Seco.

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Laura Galli é historiadora e mestra em História pela UFRGS com pesquisa em história social do carnaval. É professora de Ensino Fundamental e atua como produtora cultural voltada para a educação. Busca entrelaçar a cultura, a história e a educação, especialmente nas temáticas da memória e história da cidade, do carnaval e das políticas públicas para a cultura.

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