Centenário da Independência do Brasil e o Carnaval em Porto Alegre

Grito do Ypiranga "Independencia ou morte", 19__.
Acervo: Biblioteca Nacional

A efeméride do bicentenário da Independência do Brasil, neste setembro de 2022, vem sendo marcada por uma série de ações que buscam revisitar esse fato histórico. Desde aquelas de cunho analítico, que procuram discutir os 200 anos da independência em prol da construção de uma sociedade mais justa e igualitária, até mesmo a espetacularização em torno do coração de D. Pedro I, posto para exibição pública no último mês. 

Há cem anos, por ocasião do centenário da emancipação política, parece não ter sido muito diferente e diversas festividades foram promovidas no país. No Rio de Janeiro, então capital federal, no 7 de setembro inaugurou-se a Exposição Internacional Comemorativa do Centenário da Independência do Brasil. Reunindo diversos países, a exposição buscava mostrar ao mundo o progresso e a civilização da nação brasileira. Em São Paulo, às margens do Riacho Ipiranga, ergueu-se o Monumento do Ipiranga, encomendado pela elite paulista para demonstrar a importância da cidade na separação entre Brasil e Portugal (MONTEIRO, 2017); enquanto no Rio Grande do Sul, se organizou um evento esportivo, sediado na capital, chamado de Jogos Olímpicos (VICARI; SILVA, 2014).

Com tamanha agitação, é claro que a data também não passaria desapercebida pelo Carnaval em Porto Alegre. Ainda em fevereiro, quando dos desfiles das sociedades carnavalescas, a Filhos do Inferno, sob a presidência de Rodolpho Peixoto, apresentou em seu 4º carro alegórico uma homenagem à Independência do Brasil. De acordo com o jornal A Federação (23/02/1922, p.2), o carro chefe,

núcleo de morros e do "Pão de Açúcar" raia o sol luminoso, anunciando a aurora de 1922. Circundam esses morros, 11 conchas de madrepérolas, figurando em cada uma duas senhoritas em belos toilettes cor de pérola, representando cada uma um dos estados brasileiros da seguinte forma:
Amazonas - Alice Valdez;
Pará - Rosalina Sant'Ana;
Maranhão - Albertina Casagrande; 
Ceará - Stella Soares; 
Rio Grande do Norte - Rita Leite; 
Pernanbuco - Pinto Pereira; 
Alagoas - Alzira Carvalho; 
Sergipe - Almerinda Ávila; 
Espírito Santo - Osvaldina Carneiro Castro; 
Bahia - Osvaldina Xavier; 
Rio de Janeiro - Iracema Lisboa; 
São Paulo - Clementina Bastos; 
Minas Gerais - Marieta Ferrari; 
Mato Grosso - Amelia Rodrigues; 
Paraná - Amelia Bastos; 
Santa catarina - Olga Casto; 
Rio Grande do Sul - Santinha Soares; 
Piauí - Maria Andrade; 
Paraíba - Iracy Lisboa; 
Goiás - Christina Medaglia; 
Distrito Federal - Thereza Medaglia; 
Acre - Angelica Castro.
No primeiro plano, sobre os respectivos morros, há uma grande concha e aí ereta, impávida está a majestosa figura da República, representada pela senhorita Octacília Teixeira da Costa.

Por meio da descrição do jornal, observa-se que a sociedade carnavalesca celebrava o centenário da independência dando evidência à República brasileira e às "filhas da terra". De acordo com José Murilo de Carvalho (1990, p.81), a figura feminina foi um dos elementos mais marcantes do imaginário francês na representação da República. No caso brasileiro, contudo, a representação positiva da República como mulher foi um fracasso. A exceção ficou a cargo dos positivistas, mas "entre eles o uso da alegoria feminina se baseava em um sistema de interpretação do mundo do qual a república era apenas parte, embora importante".  Ainda que não tenhamos maiores referências a respeito da referida agremiação, é necessário destacar que o carnaval de Porto Alegre, do início do século XX, sofreu uma forte influência positivista. Diversos associados de outras agremiações carnavalescas eram membros do Partido Republicano Riograndense (PRR), imbuído desse ideário. (LEAL, 2013). À vista disso, constatamos que, além da Filhos do Inferno, a sociedade Filhos das Ondas, em seu 8º carro alegórico, também prestava sua homenagem ao centenário. Mas, desta vez, dedicava-se à municipalidade, aclamando a figura do intendente dr. José Montaury de Aguiar Leitão (A Federação, 27/02/1922). Montaury foi intendente de Porto Alegre, pelo PRR, por mais de duas década. Primeiro a ser eleito por voto direto, em 1896, foi ainda reeleito por mais seis vezes, governando até 1924 (BAKOS, 1996).

O entusiamo por conta da comemoração dos cem anos de independência dos país era tamanho que até a Venezianos, sociedade carnavalesca pioneira em Porto Alegre, extinta há alguns anos, pretendia fazer um desfile em sua comemoração. Segundo o jornal A Federação (04/03/1922, p.4), "um grupo de entusiastas desta velha e popular sociedade carnavalesca, resolveu tomar a si o encargo de reerguê-la". Chegaram a anunciar a eleição de sua diretoria e tinham como objetivo apresentarem-se em público, no dia 7 de setembro, com um grande préstito, somente carros alegóricos alusivos à Independência do Brasil, assim como os esquadrões. 

Ao que tudo indica, os venezianos não conseguiram executar aquilo que haviam planejado. Contudo, com a chegada do mês de setembro, outras agremiações carnavalescas promoveram uma série de festividades em alusão à data. O Clube Carnavalesco Rei da Pândega, por exemplo, comemorou a passagem do Centenário fazendo uma excursão a Viamão e cumprindo agenda com variadas atividades; enquanto a Sociedade Carnavalesca Paladinos realizou um baile a fim de celebrar a data:

Às 22 horas deu entrada no salão a soberana senhorita Milda Rosa, que foi recebida entre alas pela assistência e ao som de clarins, sendo conduzida pelo presidente ao trono. Por essa ocasião foi executado pela orquestra o hino da sociedade.
Em seguida, deu início a festa uma polanaise, marcada pelo presidente, sr. Antônio Cardoso.
À meia noite fez uma alocução o orador oficial da sociedade, sendo então aclamada a nova soberana, senhorita Jandyra Bidart.
No palco do salão foi levantada uma alegoria em homenagem à independência (A Federação, 11/09/1922, p.1).

A tradicional Sociedade Carnavalesca Esmeralda - que junto aos venezianos introduziu um novo modo de celebrar o carnaval em Porto Alegre, promovendo desfiles de carros alegóricos e bailes aos seus associados - organizou um "festival comemorativo do primeiro Centenário da Independência do Brasil e, simultaneamente, de recepção oficial da nova rainha daquela distinta sociedade, senhorita Alba Pinto Ribeiro". Realizado nos "vastos salões da Turner-Bund" (que em 1942 passaria a se chamar Sociedade de Ginástica de Porto Alegre, 1867 - SOGIPA), o evento teve como intérprete, o presidente honorário,  Benjamin Flores:

[...]que, ao terminar sua vibrante alocução, e entre aplausos e vivas à Esmeralda e à rainha, convidou a gentil patrícia a desvendar o busto de José Bonifácio.
Ao cair a bandeira da pátria, que ocultava o vigoroso semblante do patriarca, toda a assistência pro-rompeu em calorosos vivas ao Brasil, seguindo-se a execução dos hinos Nacional e da Independência, cantados por numerosos grupos de senhoritas e cavalheiros 
(A Federação, 11/09/1922, p.1).
José Bonifácio teve forte atuação junto a D. Pedro I na decisão de romper com os antigos laços que nos uniam à Portugal e ficou conhecido como Patriarca da Independência por causa de "sua ação na construção do país, comandando o reconhecimento da autoridade do governo no território" (CALDEIRA, 2002, p.9). De braço direito do imperador, a persona non grata após divergências na Assembleia Constituinte de 1823, acabou sendo banido do país. Embora tenha havido uma reconciliação, quando da abdicação de D. Pedro I e de sua nomeação como tutor do futuro D. Pedro II, Bonifácio foi demitido pelo governo da Regência, retirando-se de vez da vida política.

Segundo José Lúcio Nascimento Júnior (2016), a partir de 1889, com o advento da República, o passado foi utilizado como estratégia de legitimação e solidificação do novo regime. Relegando ao esquecimento as ações de D. Pedro I, "as personalidades a serem tratadas como importantes na Independência passariam a ser renegociadas, sendo a figura de José Bonifácio uma das que emergiam junto à de D. Pedro na Independência". Nesse sentido, passado pouco mais de três décadas da mudança de regime, observa-se que as comemorações do centenário da independência promovidas pelas agremiações carnavalescas em Porto Alegre buscavam celebrar a data desassociada da imagem de um Brasil monarquista. Em nenhuma celebração houve uma referência à D. Pedro I, por exemplo.

Fosse através da figura feminina representando a República; das homenagens ao intendente municipal, José Montaury, eminente figura PRR; ou do busto do patriarca da Independência, José Bonifácio, a conquista da emancipação política era assentada na imagem republicana. Através do carnaval se mobilizava o passado, exprimindo-se crenças e ideias a fim de justificar os projetos políticos então em voga para a nação brasileira naqueles idos dos mil e novecentos.

E neste 2022, quais usos políticos se tem feito do passado? 

Referência
BAKOS, Margaret. Porto Alegre e seus eternos intendentes. Porto Alegre: Edipucrs, 1996.
CALDEIRA, Jorge. José Bonifácio de Andrada e Silva. Col. Formadores do Brasil. São Paulo: Editora 34, 2002.
CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: o imaginário da república do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
LEAL, Caroline. Festas carnavalescas da elite de Porto Alegre: Evas e Marias nas redes do podes (1906-1914). Tese (Doutorado em História), Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.
MONTEIRO, Michelli.  São Paulo na disputa pelo passado: o monumento à Independência de Ettore Ximenes como lugar de memória. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.
NASCIMENTO JÚNIOR, José Lúcio. Memória e Esquecimento: o Centenário de Independência do Brasil, 1922. XVII Encontro de História da ANPUH-Rio, 2016, UFFRJ. Anais...Nova Iguaçu, 2016, p.1-9.
VICARDI, P.; SILVA, C. Manifestações esportivas nas comemorações do centenário da Independência do Brasil (1822-1922) no Rio Grande do Sul. Pensar a Prática, Goiânia, v. 17, n. 2, p. 485-502, jan./mar. 2014.