Entendido enquanto manifestação coletiva que tinha a finalidade de execrar indivíduos que apresentavam comportamentos condenáveis, ameaçando as normas familiar e comunitária, o charivari era uma prática comum na Europa, até pelo menos o século XIX (MACEDO, 2005), e fazia parte também da práxis carnavalesca. Caracterizado pela festa na rua e por muita zombaria, durante o carnaval era usual a entonação de canções para difamação pública ou o desfile da vítima do charivari montada de costas num asno, por exemplo.
Em Porto Alegre, o caso mais notório que assemelhou-se a esse tipo de manifestação ocorreu no carnaval de 1883, quando o jornalista Miguel de Werna (presidente da Esmeralda) e o médico Ramiro Barcelos (presidente da Venezianos) promoveram uma verdadeira balbúrdia, com a troca de insultos e provocações mútuas.
No desfile apresentado pela Esmeralda, um dos carros de críticas trazia o “O Monstro Mitológico”, fazendo alusão ao presidente veneziano, que era representado por um animal de três caras. Em contrapartida, Os Venezianos desfilaram com um urso branco numa carroça e que foi apresentado como sendo Miguel de Werna. Segundo Aquiles Porto Alegre (1994, p.127), Ramiro Barcelos teria alugado o animal de um grupo de ciganos que havia chegado à cidade e no passeio burlesco dos venezianos o apresentado “como moço fidalgo, chapéu de copa alta e alegre gravata, com enorme laço, como usava então o Miguel Werna”. Do carro de críticas também foram distribuídos panfletos com o seguinte soneto:
AO REDATOR BOCHECHUDO E PANÇUDO(Desonra do Século)Ninguém te sabe ver como eu te vejo!(Visconde Da Pedra Branca)Contemplai, neste urso, meus senhores,um fidalgo aspirante a deputado!Viveu pelas tavernas mal criadoe quis ir figurar entre doutores!!!Por causa de ridículos furores,esteve na cadeia engaiolado!E por ter uns brilhantes rapinado,causou ao velho pai terríveis dores.A todos abocanha este animal!Já tem levado pau que não é graça;porém nunca se cansa em fazer mal!Indecente, imoral e beberraça,redator que envergonha a Capital,só se inspira nos copos de cachaça! (O Século, Porto Alegre, 11/02/1883).
Membro de uma família ligada à aristocracia imperial, Miguel de Werna era filho de Ernesto Frederico de Werna Bilstein e Maria do Carmo de Castro Canto e Melo (filha de João de Castro e Melo, o 2º Visconde de Castro, irmão da marquesa de Santos). Monarquista ferrenho, foi filiado ao Partido Conservador e dedicou-se ao jornalismo (FRANCO, 1998). De acordo com Aquiles Porto Alegre (1994, p. 126), ele era um dos homens mais belos que conhecera, vestindo-se “sempre ao rigor da moda, roupa fina e justa ao corpo, como uma luva, gravatas vistosas, com enormes laços abertos sobre o peito”. Estudante do Colégio Gomes, embora inteligente, não levava os estudos a sério, “ia à escola quando queria, e o pai, que morria de amores pelo filho, não o contrariava em coisa alguma, e deixava o rapaz fazer o que lhe vinha à cabeça”. Foi só quando homem e precisando de “ocupação, para ganhar a vida” que ele teria fundado seu jornal (FRANCO, 1998, 312). Redator chefe do periódico crítico, literário e noticioso A Atualidade (1867), um dos dirigentes do semanário O Charivari (1877-78), em 1880 ele fundou O Século, que circulou até 1893. De edição semanal, era um jornal ilustrado que costumava publicar anedotas maliciosas e escandalosas para as famílias da burguesia local, dedicando-se a criticar os costumes da cidade. Segundo Aquiles Porto Alegre (1994, p.126), “o Século só era publicado aos domingos, e deixou nome na imprensa da nossa terra, pela graça, pelo espírito e por muitas cousas que dizia sem recato, cruas demais ...”. Diante disso, o caráter mordaz do periódico de Werna era criticado pelos venezianos que o caracterizavam como “indecente, imoral e beberraça”.
Além de mandar transcrever no jornal Mercantil o soneto que lhe fora dedicado, respondendo jocosamente às críticas, o “redator bochechudo e pançudo” também utilizou as páginas de seu jornal e retribuiu a achincalhação, dedicando uma carta “ao mui distinguido Sr. Alveitar Dom Ramirez Fuertes de las Três Caras”:
[...]Não acredito, pois, que tivessses a ideia de querer lançar-me ao ridículo. Faço-te justiça. A tua intenção foi outra, foi a de mostrar ao público o teu respeitável avô. Quanto ao dizerem que te incomodaste muito com a lembrança das três caras, não acho razoável, pois tu és o primeiro a reconhecer essa verdade. Se tu não tens três caras, Jano não tem duas! Com toda a certeza. Não houve, posso garantir, a ideia de ofensa. Nas Sociedades, como a minha, composta de moços de esmerada educação, não se ofende a ninguém. Isso é bom para gentalha como tu.Se te quisesse ofender aproveitaria à tarde em que o teu avô andou aí de bunda tremida, para fazer-te as seguintes críticas: Três Caras furtando as joias da própria esposa, na Cachoeira, para jogar em uma taverna com peões e negros cativos. [...] Três Caras aproveitando-se da entrada em uma casa de família para fazer certa senhora casada conceber por graça do Espírito Santo. [...] Três Caras levando seus filhos a visitarem uma crioula lavadeira, que é sua amásia. Três Caras muito à frescata, pondo em ordem gramatical uma oração, da qual era ele o paciente e o seu cocheiro o agente. [...] Três Caras abreviando os preciosos dias do tenente coronel J. de C. com uma dose de estriquinina. [...] Já vês, pois, que tinha pano para mangas, meu caro veterinário, para ofender-te, apresentando-te ao público em tua verdadeira nudez. Mas não quis, porque é contra os meus princípios de educação atacar aos homens e até mesmo aos coisas, como tu, em sua vida privada. E demais, para tipos como o teu há a sátira, o ridículo, que são as melhores armas. [...] (O Século, Porto Alegre, 11/02/1883).
Nascido na cidade de Cachoeira do Sul/RS, em agosto de 1851, Ramiro Fortes de Barcelos era filho de Vicente Loreto de Barcelos e Joaquina Idalina Pereira Fortes de Barcelos. Em 1873, formou-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Deputado provincial no Rio Grande do Sul (Partido Liberal), entre os anos de 1877 e 1880, ele também se dedicou ao jornalismo, sendo um dos fundadores do jornal A Federação, órgão oficial do Partido Republicano Rio-grandense (PRR), do qual também fora correligionário. Sem reconhecer a formação acadêmica de Ramiro Barcelos, a quem chamava de veterinário, Werna elencava seus supostos comportamentos, tidos como desviantes, como furto, vício em jogos, traição conjugal, homossexualidade e homicídio, o transformando numa espécie de vítima de charivari.
A fim de corroborar sua escrita, ele também publicava uma charge sobre o carnaval de 1883, na qual, em destaque no canto direito da imagem, aparece com asas de anjo, cavalgando de costas e chicoteando uma mula de três caras, que personificava Ramiro Barcelos.
Fonte: FERREIRA, Athos. O Carnaval pôrto-alegrense no século XIX. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1970. |
Marcados por críticas e chacotas entre desafetos, os desfiles das sociedades carnavalescas não deixavam de retratar as adversidades daqueles tempos. Observa-se que as disputas políticas entre monarquistas e republicanos refletiam-se no carnaval, afinal, um dos motivos da animosidade entre Werna e Barcelos era, justamente, o fato de que o primeiro “como monarquista que era, e ainda mais moço fidalgo, vivia ridicularizando os velhos republicanos, que o traziam atravessado na garganta, como uma espinha de bagre” (PORTO ALEGRE, 1994, p. 126).
Embora tenham surgido com o objetivo de trazer para Porto Alegre uma festa que fosse representante do “progresso” e da “civilização”, com seus desfiles de carros alegóricos, bailes luxuosos e opulentas fantasias, as sociedades carnavalescas – Esmeralda e Venezianos – também acabariam por recorrer aos usos de antigos carnavais.