Gargântua e Pantagruel no Carnaval de Porto Alegre

Na postagem anterior vimos a troca de insultos e a zombaria que ocorrera no carnaval de Porto Alegre, em 1883, em função dos desentendimentos políticos entre Miguel de Werna e Ramiro Barcelos, presidentes das sociedades carnavalescas Esmeralda e Venezianos, respectivamente, que acabaram por protagonizar um verdadeiro charivari.

Contudo, as provocações do “redator bochechudo e pançudo” (como Werna foi chamado pelos venezianos) à agremiação “co-irmã” parecem ter começado antes mesmo se de iniciar o carnaval. Satirizando a crise financeira pela qual passava a Venezianos, Miguel de Werna publicou em seu jornal a seguinte charge:

Fonte: O Século, Porto Alegre, 28/01/1883.

Fazendo alusão às obras de François Rabelais, o periódico do presidente da Esmeralda (que também enfrentava problemas financeiros, como o mesmo iria declarar), debochava da “alegria dos cadáveres dos ‘Venezianos’ ao verem anunciado o espetáculo dos ditos. Mas como alegria em casa de pobre dura pouco, eles terão de chorar, por que há cada gargantuá ...” (O Século, Porto Alegre, 28/01/1883, p.4).

Nascido na França, em 1494, Rabelais foi um grande nome da literatura renascentista, ficando muito conhecido em função de sua pentalogia de romances, sendo os dois primeiro intitulados Pantagruel (1532) e Gargântua (1534). Permeadas por linguagem satírica e humor escatológico, as obras contam a história do gigante Gargântua e de seu filho, Pantagruel, que se dedicavam a experenciar os prazeres da vida, repleta de comida, bebida e sexo. Trazendo o universo da cultura cômica popular, elas expressaram a metamorfose do espírito público do carnaval, convertido para a forma literária em carnavalesco (Bakhtin, 1987). Nesse sentido, a referência rabelaisiana contribuía para o tom zombeteiro da charge e não deixava de ser mais uma forma de provocação aos venezianos. 

Respondendo à troça esmeraldina, dois dias depois, a agremiação publicava seu “programa dos festejos para o ano X da era carnavalesca”, no qual destacava a “imensa dificuldade que se apresentaram este ano para a realização de suas festas”, mas que havia resolvido “não deixar passar desapercebida a grande época em que todos os povos do mundo rendem seu tributo ao impagável, ao incomensurabilíssimo deus Momo”, apesar de sua influência ainda não ter eletrizado “os corações empedernidos de um grande número de ilustres concidadãos nossos, os quais, conquanto reconheçam serem as festas carnavalescas as mais brilhantes que se fazem entre nós, contudo não deixam de ser apologistas do sistema da comodidade, entendendo que é melhor ver de graça do que cair com o ferro, e que já nos fazem grande favor chamando-nos de tolos”. Salientando que “nunca tiveram a veleidade de ofuscar a sua co-irmã com ouropeis de grandeza”, o programa carnavalesco respondia à critica esmeraldina que dias antes havia sido feita sob as mesmas palavras e era assassinado pelo secretário Pantagruel (Mercantil, Porto Alegre, 30/01/1883, p.3).

Filho do gigante Gargântua, Pantagruel era um “grande boa-vida, alegre e glutão, destacando-se desde a infância por sua força descomunal, superada apenas por seu apetite”. No folclore bretão, Pantagruel também era o nome de um demônio, “cuja atividade preferida era a de jogar sal na boca dos bêbados adormecidos, para alterá-los e fazê-los beber ainda mais” (Grande Enciclopédia Larousse Cultural, 1999, p.4417). Além de responder à troça esmeraldina, é possível que o pseudônimo também tenha sido escolhido com o objetivo de implicar com o presidente da referida agremiação, haja vista o soneto que seria distribuído no desfile dos venezianos em que Werna era chamado de redator “beberraça”, que “só se inspira nos copos de cachaça!” (O Século, Porto Alegre, 11/02/1883). O fato é que, aludindo à obra de Rabelais, o jornal O Século não só zombava dos venezianos ao afirmar que naquela sociedade carnavalesca havia “cada Gargantuá”, numa referência ao pai de Pantagruel, como também fazia um trocadilho Gargântua/Gargantuá, que nessa mudança de tonicidade silábica remetia para a onomatopeia do choro (buá), bem como Gargantuá/garganta, procurando acusar os venezianos de alardeadores e faladores. No âmbito das expressões regionais do Rio Grande do Sul, acusar alguém de “garganta” significa chamar este de “fanfarrão” ou “mentiroso” (NUNES; NUNES, 1984). Acentuando a demasiada alegria dos venezianos, que comemoravam a realização dos festejos naquele ano, o jornal O Século não só ironizava a crise financeira pela qual passava a agremiação, como avisava que tal júbilo (e sobrevivência) não duraria muito tempo.

Tendo como objetivo expor ao seu público leitor, de forma ácida, questões que considera pertinente, a caricatura é um "desenho que pelo traço, pela seleção criteriosa de detalhes, acentua ou revela certos aspectos ridículos de uma pessoa ou fato” (FONSECA, 1999, p.17). À vista disso, é provável que Ramiro Barcelos, presidente da Venezianos, fosse o retratado no centro da imagem. Dias após o desfile (e as trocas de ofensas) daquele ano, Werna publicaria em seu jornal a seguinte caracterização de Ramiro Barcelos:

Não estou nas tuas condições, que és um raquítico, um lombriga de... de pobre, um fragmento de animal, um desses jumentos que se tornam apreciados apenas pelo tamanho das orelhas, duas vezes maiores do que o corpo. Em físico ridículo ninguém te passa a perna, e com uma circunstância a mais: tens mamilos nos olhos, quando os outros apenas os tem... muito encobertos (O Século, Porto Alegre, 11/02/1883).

Magro, comprido, de orelhas grandes, tal qual o personagem central da alegoria veneziana... Mas além dessa correspondência também é possível sugestionar certa semelhança entre a caricatura de Ramiro Barcelos e a representação do gigante Gargântua, feita pelo ilustrador francês Gustave Doré, de 1873. Vejamos:

Fonte: Œuvres de Rabelais. Paris: Garnier Freres, 1873.

Se houve essa intencionalidade no traço por ora não foi possível averiguar, mas no que tange aos demais indivíduos presentes na imagem, suponho que fossem o restante da diretoria da agremiação, composta pelo vice-presidente, Olímpio da Cunha Brochado; pelo 1º secretário, Cristiano Kraemer; pelo 2º secretário, Pedro de Araújo Viana e pelo tesoureiro, Damião Passos. É importante destacar que a autoria da arte, provavelmente, pertencia ao pintor português Araújo Guerra, responsável pelas ilustrações d'O Século, entre os anos de 1881 e 1883. Exímio caricaturista, ele também desenhou e preparou os carros da Esmeralda daquele carnaval, como salientava o jornal Mercantil: “o carro da rainha e outro que se seguia, estavam preparados com muito gosto, trabalho devido ao pincel do estimado cidadão Sr. Guerra, que mostrou mais uma vez o quanto é hábil nas artes” (MercantilPorto Alegre, 07/02/1883, p.2).

E não é que o prenúncio de Werna em pouco tempo de fato se concretizaria?! Durando a alegria veneziana por apenas mais um ano de carnaval, a partir de 1885 a sociedade carnavalesca deixava de comparecer às festas de Momo, fato esse que não iria passar desapercebido pelas páginas d’O Século:

A pobre Veneaziana
Morreu de morte macaca
Não teve no funeral
Nem um dobre de matraca.

Como morre a tiririca,
Assim morreu a Veneza.
Não teve na hora extema
Nem vela de sebo acesa.

Morreu por falta de orvalho
A pobre Veneziana.
Tanta fome! E não lhe deram
Nem um cacho de bananas...

Coitada! Pobre Veneza!
Morreu de fome, mortinha.
Miava, miava tanto,
Que era ver uma gatinha.

Nem sequer um salafrário
Salvou-te, oh! Pobe Veneza.
No grande mar dos calotes,
Te foste de perna tesa...(apud Ferreira, 1970, p.77-78).

O que Werna não sabia é que, assim como os esmeraldinos, a alegria veneziana haveria de ressurgir no início da próxima centúria. Mas isso já é assunto para uma próxima história, não é mesmo?!


Referências

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. HUCITEC; Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1987.
FERREIRA, Athos Damasceno. O Carnaval pôrto-alegrense no século XIX. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1970.
FONSECA, Joaquim da. Caricatura: a imagem gráfica do humor. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999.
Grande Enciclopédia Larousse Cultural, Nova Cultural Ltda, 1999, p.4417
NUNES, Zeno; NUMES, Rui. Dicionário de Regionalismo do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1984.