Na Mira Romântica do Entrudo



Quem entruda seu amô
É sinal de intimidade;
Iaiá, entrude o ioiô,
Para lhe ter amizade

É de Iaiá, é de Ioiô,
Quem qué entruda seu amô!...
Melo Morais Filho.
Festas e tradições Populares no Brasil.

O jogo do entrudo foi a forma como o carnaval chegou ao Brasil. Envolvendo uma série de brincadeiras praticadas nos dias que antecediam a entrada da Quaresma, era comum o arremesso de limões ou laranjinhas de cheiro nos adversários. Além das pilhérias e zombarias, características da brincadeira carnavalesca, o entrudo também tinha um caráter romântico e de exercício da sexualidade. O escritor Aquiles Porto Alegre, um dos precursores da crônica moderna na literatura gaúcha, em suas memórias sobre o carnaval, lembrava o encantamento dos porto-alegrenses com as brincadeiras do entrudo:

Não há na verdade brinquedo comparável, que espalhe a loucura, como o entrudo com água.
É um delírio e quem neles se metia, matrona ou moçoila, ancião ou mocetão, não escapava, nunca, a um mergulho no tanque.
O limão de cheiro então era um encanto e um pretexto para muitas coisas.
Grupos havia que formavam guerrilhas e era um apedrejamento de limões às vezes raivoso e com verdadeiras intenções hostis.
Mas, também, quanto moço poeta, quanto namorado maldoso, quanto D. João disfarçado não se servia do limão de cheiro para em declaração de amor espremendo-o com a intenção maliciosa, no colo ebúrneo, decotado, tentador de sua Dulcinéia encantadora?(PORTO ALEGRE, 1994, p. 87).

Permeado por declarações amorosas, muitas repletas de intenções maliciosas, o entrudo servia paro o encontro dos pares, nem sempre tão fácil em dias comuns. A liberdade carnavalesca, a subversão das regras do cotidiano, a oportunidade de experienciar o mundo em excesso, faziam da brincadeira uma excelente ocasião para os encontros amorosos, despertando o fascínio de alguns, mas aversão em outros. Desjanais, pseudônimo de Joaquim Antônio Vasques, na coluna Folhetim, publicada no jornal A Reforma, em 1873, fazia um apelo aos leitores, sobretudo, às leitoras, para que se acabasse com o entrudo. Discorrendo a respeito do moderno carnaval, com seus bailes, fantasias e préstitos, buscava convencer seu público leitor dos malefícios do "bárbaro entrudo" e a necessidade de sua substituição. Contudo, também admitia que a velha brincadeira tinha lá seus encantos:

[....] É força confessá-lo, para que as leitoras não me fiquem todas querendo mal. Eu já não quero falar nessa liberdade de que nos apossamos de entrar por qualquer casa alheia, e ir até o quintal para molhar as sinhás, as velhas e as meninas, até que nos deitem n'alguma gamela, cedendo à força de frágeis mãozinhas que nos seguram e nos roçam.
O brinquedo tem outros mil atrativos, e dá lugar a episódios burlescos, aconchegos ternos, a que empreguemos com toda a sem cerimônia um dos nossos cinco sentidos, coisa que nos é inteiramente proibida nos tempos comuns.
Se o entrudo não passasse de um bombardeio das laranjinhas de cheiro, e mesmo de uma boa porção de pó de arroz, seria suportável; mas qual, ficamos todos doidos e entregamo-nos com furor aos excessos da folia (A Reforma, Porto Alegre, 23 de fevereiro de 1873, p.1)
A licenciosidade presente na brincadeira era uma possibilidade de burla da vigilância sempre atenta sobre a conduta feminina. Permitindo contatos corporais e o libertar de uma sexualidade reprimida, talvez por isso encantasse o público feminino, que dele tomava parte ativamente. Munidas às sacadas, na espreita de rapazes para arremessarem seu limão de cheiro, ou às ruas para se regozijarem com a brincadeira, tanto mulheres da elite, quanto das classes populares eram protagonistas no jogo das molhadelas. Reafirmando seu direito de participar ativamente da festa, elas assumiam uma postura de liderança e de libertação das normativas sociais que pregavam o recato e o pudor como virtudes femininas, estabelecendo uma tensão nas relações de poder que permeiam a construção dos gêneros. 

Um dos a constatar esse protagonismo das mulheres foi o viajante francês Jean Ferdinand Denis, que ao visitar o Brasil, nas primeiras décadas do século XIX, surpreendeu-se com a conduta das "raparigas brasileiras", que "naturalmente melancólicas" e vivendo retiradas, durante o entrudo mudavam completamente seu caráter, esquecendo de "sua gravidade e natural acanhamento para ao folguedo se darem” (apud DEL PRIORE, 2009). Outro viajante a observar a audaz presença das mulheres nas brincadeiras de entrudo foi o clérigo inglês Robert Walsh (1830, p.380), que nos relatos de sua viagem ao Brasil, entre os anos de 1828 e 1829, demonstrava um certo estranhamento, pois eram “as garotas brasileiras naturalmente pensativas e retraídas; mas nesta estação elas mudam seu caráter, e sua seriedade e timidez são por três dias, perdidos em alegria inextinguível”.

Buscando extrair o prazer que encontro dos corpos lhes proporcionava, foi assim que muitos relacionamentos amorosos tiveram início em dias de entrudo, não sendo fortuito o alerta da charge do jornal O Século: Olho vivo, pais de família, olho vivo!


Referências

DEL PRIORE, Mary. História do Amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012.
PORTO ALEGRE, Aquiles. História Popular de Porto Alegre. Porto Alegre, EU/Porto Alegre, 1994.
WALSH, Robert. Notices of Brazil in 1828 and 1829. London: F. Westley and A. H. Davis, 1830.



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