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| O propagandista, 1929, p.16. |
Na década de 1920, o carnaval de Porto Alegre era animado por uma profusão de clubes, blocos e ranchos carnavalescos: Gaúchos Carnavalescos, Rei da Pândega, Tesouras, Batutas, Exagerados, Sentenciados, entre tantos outros. Espalhados pelos “quatro cantos” da cidade, destacavam-se, no 4° distrito — região operária e industrial —, dois blocos que conquistavam foliões e folionas: o Passa Fome Anda Gordo e os Vampiros.
O primeiro adotava o branco e o preto como cores oficiais e desfrutava de “grande apoio do povo, tendo seu escudo em exibição nas boas vitrinas do comércio de então”. Já os Vampiros, identificados pelo verde e rosa, contavam igualmente com uma “imensa multidão de simpatizantes, que, por sua vez, faziam gala publicamente do seu emblema representativo” (Sanhudo, 1979, p. 272).
Essas agremiações participavam de concursos que avaliavam fantasias, músicas e composições, desenvolvendo entre si uma rivalidade intensa. Ary Veiga Sanhudo, em Porto Alegre: crônicas da minha cidade, narra um suposto enfrentamento que teria transformado a atual Av. Presidente Roosevelt em verdadeiro campo de batalha durante o carnaval de 1925:
[...] precisamente numa das noites gordas das alegrias de Momo, quando os dois concorrentes disputavam a preferência da festa e a hegemonia da sociedade local, se defrontaram em plena Avenida Eduardo, revestidos da mais apurada paramentação ... e ... não houve como evitar ... pois a coisa pegou fogo e, em vez de passeata carnavalesca, transformaram o leito da rua em campo da mais monumental batalha que o 4° distrito tem ideia!Felizmente a luta foi quase à base de instrumentos musicais e sopapos.Houve muita cabeça quebrada e muito mais fantasias rasgadas!Se alguns safaram-se em traje de Adão, é quase certo que não foram notados, porque, na hora do pega, até o povo tomou o seu bloco de preferência para brigar ... Dizem que apesar de tudo foi uma bela noitada!” (Sanhudo, 1979, p. 272).
A festa carnavalesca, assim, teria cedido lugar a uma arena de luta, na qual até os instrumentos viraram armas improvisadas. Segundo o cronista, o episódio foi tão violento que os dois blocos jamais voltaram a se organizar.
No entanto, é justamente nesse ponto que surge a dúvida. Os registros jornalísticos indicam a continuidade das atividades dessas agremiações ao menos até a década de 1930. Vejamos os fatos.
Os Vampiros já aparecem nas festividades de Porto Alegre desde o carnaval de 1920, quando promoveram um baile no salão Umberto I (A Federação, 10 jan. 1920, p. 3). Já o Passa Fome Anda Gordo registra em seu estatuto o dia 5 de março de 1925 como data de fundação — apenas nove dias após o carnaval e, portanto, depois do suposto enfrentamento (A Federação, 22 mar. 1928, p. 5).
É importante notar que a obra de Sanhudo foi publicada em 1961. Após quase dois anos escrevendo crônicas para a Folha da Tarde, o autor passou a se dedicar ao estudo da “vida da cidade de Porto Alegre” (Sanhudo, 1979, p. 9), a fim de reunir memórias e episódios em livro. Considerando o intervalo de tempo entre os acontecimentos e sua publicação, é possível que suas reminiscências tenham embaralhado datas e que o episódio narrado não tenha ocorrido em 1925, mas em anos posteriores.
Um indício nesse sentido aparece em 1932, quando A Federação registrava que o Passa Fome Anda Gordo era o único bloco organizado do 4° distrito que sairia às ruas naquele carnaval:
Tendo a responsabilidade de representante de São João nos festejos carnavalescos populares, o cordão preto e branco realiza diariamente puxados ensaios de estudantina e coros em sua sede à rua São Pedro, sob a direção do conhecido professor Octavio Dutra (A Federação, 19 jan. 1932, p. 6).
Sob a regência de Octavio Dutra — importante nome da música popular do Rio Grande do Sul e ex-ensaiador dos Vampiros —, o bloco ensaiava para apresentações nos teatros Thalia e Baltimore. Naquele ano, lançou uma música que parece provocar diretamente seus antigos rivais, ausentes do carnaval. O coro encerrava com gargalhadas debochadas:
Pois conosco ninguém se arranja... quá, quá, quá, quá, quá, quá,isso pra nós é canja... (A Federação, 20 jan. 1932, p. 6).
A letra sugere que os Vampiros já não disputavam espaço, e o Passa Fome se afirmava como vencedor das “pelejas ideais dos carnavais”. Essa postura pode indicar que a batalha descrita por Sanhudo de fato ocorreu, mas em momento posterior ao que o cronista recordava. Afinal, segundo ele, ainda havia “velhos foliões nesse distrito que podem exibir saudosos galos, no alto da cabeça, como troféus daquela noite memorável, em que, reluzentes clarinetes e boas flautas funcionaram como formidáveis tacapes no entrevero da mais primitiva guerra burlesca” (Sanhudo, 1979, p. 272).
Referências
SANHUDO, Ary Veiga. Porto Alegre: crônicas da minha cidade. Porto Alegre, Escola Superior de Teologia, Instituto Estadual do Livro; Caxias do Sul, Universidade de Caxias do Sul, 1979.
