Todo mundo sabe: o samba urbano nasceu no Rio de Janeiro, nas rodas das tias baianas, e foi formalizado com "Pelo Telefone" em 1916. É o nosso patrimônio nacional. Mas e se a gente te contasse que, muito antes de o samba carioca ser oficializado, o Sul do Brasil, mais especificamente Porto Alegre, já estava fervilhando com manifestações de matriz africana que carregavam o DNA do que viria a ser o nosso ritmo?
Este post mergulha nas origens do samba em Porto Alegre para responder à pergunta: Como as tradições bantas e a cultura negra em Porto Alegre forjaram uma base musical e festiva que antecede e influencia o samba urbano?
Origens banto-africanas e a presença negra no sul
Segundo Nei Lopes e Luiz Antônio Simas (2015), o samba tem origem banto-africana, tanto na rítmica quanto no termo. Essa conexão é especialmente relevante para o contexto gaúcho: entre 1765 e 1825, cerca de 71% dos africanos escravizados que chegaram ao Rio Grande do Sul vieram da África centro-ocidental (Osório, 2004). Essa presença influenciou diretamente as práticas culturais da capital, manisfestando-se em folguedos e espaços de sociabilidade que são a verdadeira "pré-história" do samba em Porto Alegre.
Um dos primeiros registros dessa presença está no Candombe da Mãe Rita, que acontecia na região da Várzea, no antigo Beco do Firme (atual Rua Avaí, nas proximidades da Av. João Pessoa). Ali, aos domingos, negros de várias nações se reuniam com seus tambores, ganzás e marimbas para cantar, dançar. Era mais que festa: era lugar vital de resistência, religiosidade e manutenção da identidade diaspórica.
Cucumbis, reis e rainhas negras
Esses encontros também eram palco para os cucumbis — festas afro-católicas que celebravam a coroação de reis e rainhas do Congo. Com guizos nos tornozelos e trajes cerimoniais, os participantes dançavam no corpo da igreja, misturando fé, ancestralidade e arte. Era a África reinventada em solo brasileiro, sob o olhar vigilante (e muitas vezes hostil) das autoridades.
Mas nem toda repressão foi capaz de apagar essa chama. O Código de Posturas de 1863, por exemplo, permitia batuques e danças de congos em dias festivos — desde que terminassem ao pôr do sol. Um reconhecimento tímido, mas revelador da força dessas tradições.
Os Congos e o carnaval da cidade
Em 1877, surge a Sociedade Carnavalesca Os Congos, formada, possivelmente, por negros livres e libertos que desfilavam pelas ruas com seu rei e sua corte. Com músicas e danças inspiradas em sua terra de origem, eles conquistaram espaço no carnaval da elite porto-alegrense e ajudaram a moldar uma cultura festiva afro-gaúcha.
Com uma base cultural já estabelecida, o solo estava fértil para a chegada do samba. Em 1895, o jornal A Federação mencionava o termo como dança de negros. Embora fosse usado, muitas vezes, pejorativamente (sinônimo de "baile de plebe"), ele estava em circulação!
No início do século XX, ele aparece com força nos carnavais da cidade. O jornal O Exemplo, da comunidade negra, publicou em 1916 um verso a ser cantado pelo Cordão Choro na Rabada, em que o samba aparece como dança popular - "que a sinhá está a olhar" - e expressão de alegria nos pagodes da folia. Em 1917, divulgava a letra de “Pelo Telefone”, o primeiro samba registrado no Brasil.
Samba no salão e na rua
Nos anos 1920, o samba já figurava lado a lado com marchas e polcas nas programações festivas de clubes carnavalescos. Em 1921, por exemplo, a tradicional Sociedade Carnavalesca Esmeralda incluiu sambas carnavalescos em seu Chá Concerto, realizado na Confeitaria Colombo. No ano seguinte, o Clube Carnavalesco Rei da Pândega apresentou composições como “Foi ela que me deixou” e “Se eu lavo não cozinho” durante as festividades do centenário da independência, evidenciando que o ritmo já ocupava lugar de destaque no imaginário festivo da cidade.
A popularidade do samba se refletia também nas ruas. Em 1922, o Correio do Povo anunciava que mais de 40 blocos sairiam às ruas com "originais canções e sambas e suas boas orquestras", mostrando que o ritmo se espalhava pela cidade, atravessando fronteiras sociais e conquistando diferentes públicos.
O samba não chegou — ele já estava aqui
Esses registros revelam que a raiz do samba em Porto Alegre não apenas existia, mas se consolidava como uma expressão identitária afro-brasileira, entrelaçada a práticas religiosas, festivas e políticas. As tradições bantas criaram o repertório rítmico, o instrumental e o espaço de sociabilidade negro-africana. Quando essa tradição percussiva africana se fundiu com a melodia e a harmonia de ritmos europeus nas casas das "tias baianas", na Pequena África, no Rio de Janeiro, deu-se nome e forma a uma festa percussiva que também já pulsava na capital gaúcha.
O samba em Porto Alegre é, em essência, um poderoso legado de resistência cultural, que garantiu a permanência da música e da dança de matriz africana, contribuindo decisivamente para a identidade cultural do Sul do Brasil. O samba em Porto Alegre é memória viva — que vibra nos tambores, ecoa nas letras e se manifesta nos corpos que dançam.
E você, já deixou o samba atravessar sua história?
Referências
CORUJA, Antônio Alvares Pereira. Antigualhas: reminiscências de Porto Alegre. Porto Alegre, Typ. do Jornal do Comércio, 1881.
LOPES, Nei; SIMAS, Luiz Antonio. Dicionário da história social do samba. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
OSÓRIO, Helen. Escravos da Fronteira: trabalho e produção no Rio Grande do Sul, 1765-1825. XIX Jornadas de História Económica. Asociación Argentina de História Económica/Universidad Nacional Del Comahue. San Martín de los Andes, Neuquén, 2004.