Vozes Carnavalescas: construções identitárias através das escritas de si.

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar as “escritas de si” produzidas pela Sociedade Carnavalescas Os Venezianos, através de seus programas para o carnaval em Porto Alegre, a fim de identificar as construções identitárias que foram elaboradas por meio destes documentos.
Palavras-chave: identidade; rivalidades; escritas de si; carnaval; sociedades carnavalescas;

Abstract: This article aims to analyze the " itself written " produced by Os Venezianos, through its programs for the carnival in Porto Alegre, in order to identify the identity constructions that were developed through these documents.
Keywords: identity; rivalries; itself written; carnival, carnival societies;

Dia 3 de março de 1873, cidade de Porto Alegre: eis que nasce a Sociedade Carnavalesca Os Venezianos. Junto com ela, dois dias antes, surgira a Sociedade Esmeralda Porto-alegrense. Ambas almejavam adotar uma prática carnavalesca diferente da que era feita até então: o desfile de jovens em carros abertos e bailes fechados – aos moldes de Veneza e do Rio de Janeiro – ao invés do entrudo, brincadeira ibérica que objetivava molhar e sujar o adversário.
Às vésperas do carnaval, as sociedades publicavam nos jornais de maior circulação da capital seus programas de comemorações do festejo, anunciando à população o que, em que datas e como eles seriam feitos. Antes dessas informações, eles faziam sempre um pronunciamento, uma espécie de carta, com data, destinatário e remetente. Entendemos, portanto, que - apesar de não ser uma escrita íntima - esses documentos têm qualidades da escrita epistolar, e que assim, podem ser percebidos como uma escrita de si. Segundo Gomes (2004, p.19), "tal como outras práticas da escrita de si, a correspondência constitui, simultaneamente, o sujeito e o seu texto. Mas, diferentemente das demais, a correspondência tem um destinatário específico com quem vai estabelecer relações. [...] Escrever cartas é assim ‘dar-se a ver’, é mostrar-se ao destinatário, que está ao mesmo tempo sendo ‘visto’ pelo remetente, o que permite um tête-á- tête, uma forma de presença (física, inclusive) muito especial".
Ao fazerem esse pronunciamento, através de seus programas, esses carnavalescos davam-se a ver à sociedade, fazendo uma escrita auto-referencial e, assim, construindo suas identidades, pois “a escrita de si é, ao mesmo tempo, constitutiva da identidade de seu autor e do texto, que se criam, simultaneamente, através dessa modalidade de ‘produção do eu’” (Ibid, p.16).
Michael Pollak (1992, p.205) define identidade como “a imagem que a pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também para ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros”. Neste sentido, há um elemento de maior importância, o outro, pois a “construção de identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio de negociação direta com os outros” (Ibid, p.206). Neste mesmo sentido, salienta Mendes (2002, p. 504) que “o indivíduo forma sua identidade não da reprodução pelo idêntico oriunda da socialização familiar, do grupo de amigos, etc., mas sim do ruído social, dos conflitos entre diferentes agentes e lugares de socialização”. Assim, a construção identitária se dá a partir do embate com a diferença, com o outro, estabelecendo distinções e atributos que afastam e/ou aproximam.  Para Pesavento (1999, p.109), “a diferença é um dado posto pelo real”, sendo preciso levar em consideração todo o “processo de construção dessa diferença, quando entendemos que os homens, ao longo da história sempre inventaram a realidade, ou seja, atribuíram significados ao mundo, guiando o olhar, a percepção, a avaliação e o julgamento, dando a ver diferenças subjetivas e sociais” (Ibid, p.110).
Este artigo tem como objetivo verificar como a Sociedade Carnavalesca Os Venezianos deu-se a ver, mostrando suas visões de mundo e maneiras de entendê-lo, construindo sua identidade, sua imagem de si, para si e para o outro, mas também em oposição ao outro, ou seja, à sua co-irmã – a sociedade Esmeralda. Apesar de serem ambas sociedades carnavalescas – e por isso terem objetivos em comum, tais como eliminar o entrudo, instituir um carnaval (aos seus olhares) civilizado, levando Porto Alegre rumo ao progresso – Os Venezianos e a Esmeralda tinham marcas que as diferenciavam, características peculiares que assinalavam suas distinções enquanto coletividades que brincavam o carnaval. Como essas marcas, essas diferenças e até mesmo as similitudes, apareceram em suas falas, em suas escritas de si?
Em 1875, Os Venezianos e a Esmeralda, em seus passeios burlescos, distribuíram versos (chamados de puffs) à população enquanto desfilavam. Através da análise desses puffs podemos perceber algumas diferenças entre as duas sociedades, tanto no que se refere à linguagem quanto no tocante à forma como se dirigiam às mulheres[1]. O recitativo oferecido pelos venezianos, intitulado Profissão de Fé pedia às castas donzelas da terra, às belas deidades, aos anjos na forma, às lindas estrelas que lhes dessem flores, sorrisos e um olhar de amor, pois:

Eles são todos galhofeiros entes,
castos, bondosos e gentis até...
Se são devotos, santarrões e crentes,
é bem que ouçais... “Profissão de Fé”!
Eles não crêem no poder do papa,
nem nos padrecos – jesuítas vis
nem nesses homens de cumprida capa
que em tudo metem colossal nariz! 
Eles não crêem nas lamúrias tolas
dessas beatas que passando vãoe que nos olhos a esfregar cebolas
fazem repuxos de alargar o chão!
Eles não crêem nas visões dantescas
nem nas corujas de grasnar feroz;
nem nas imensas pastorais, tão frescas,
nem na mais negra excomunhão atroz!
Mas eles crêem nos olhares puros
de vós, ó virgem de brilhante alvor,
nesses cabelos divinais, escuros,
onde se enreda apaixonado amor...
Crêem no colo que alabastro imita,
nesses contornos palpitando assim...
Crêem nos laços da serosa fita
e nesses lábios de eternal rubim!... 
Crêem nas falas namoradas, meigas,
que se interrompem num tremor gentil...
Não é mais doce os farfalhar das veigas
nem harpa eoleia na amplidão de anil...
(A Reforma, 11 de fevereiro de 1875).
Venezianos, ao confessarem publicamente em que acreditavam, conclamavam as filhas da terra a darem para eles flores, sorrisos e um olhar de amor. Para convencê-las de que eram merecedores desse pedido eles afirmavam serem todos brincalhões, inocentes e cavalheiros até. Descriam, entretanto, de tudo que era relativo à igreja: padres, pastoral, excomunhão, declarando-se anti-jesuítas, anti-religiosos e condenando o poder e a influência dessa instituição em demais assuntos que não fossem os religiosos. Acreditavam, todavia, nos olhares, nos cabelos, nos colos, nos laços, nos lábios e nas falas namoradas das boas filhas porto-alegrenses.
Com essas referências podemos acreditar que a Sociedade Carnavalesca Os Venezianos estivesse vinculada ao Partido Liberal, pois este pregava que não deveria haver uma interferência da igreja em assuntos laicos, gerando uma separação entre Estado e Igreja. Esse anticlericalismo[2], contudo, foi também defendido por muitos intelectuais rio-grandenses de diferentes posições políticas e com forte presença nos jornais leigos da capital (PICCOLO,1974, p.81), não sendo algo exclusivo dos liberais[3]. Ao traçarmos a trajetória de alguns membros das sociedades pudemos observar que a política não era um fator decisivo para essas associações, existindo tanto liberais, quanto conservadores e republicanos em ambas. Entretanto, algumas vezes, disputas pessoais e políticas podiam mostrar suas faces através do carnaval e, naquele momento, criar uma certa afinidade partidária entre as sociedades. Em 1883, por exemplo, houve uma forte querela envolvendo Ramiro Barcelos e Miguel de Werna (presidente da Venezianos e da Esmeralda, respectivamente), que apresentaram carros alegóricos ridicularizando  um ao outro. Ambos haviam disputado recentemente uma vaga na Assembléia Provincial - um pelo partido republicano, outro pelo conservador - e as contendas políticas acabaram sendo transpostas para o universo carnavalesco (LAZZARI, 2001, p.124).
Sua mensagem era destinada ás belas deidades e aos anjos na forma, com um conteúdo irônico e jocoso e num tom galanteador, eles faziam elogios às mulheres e criticavam aos conservadores e à Igreja, mostrando que acreditavam nas filhas da terra que se entregassem a esse novo festejo, mas não criam em nada que se referisse àquela instituição.
 Já a Esmeralda, nesse mesmo ano, deu um Sermão (esse era o título do puff) às mulheres, afirmando que elas não estavam se portando de modo adequado, deixando-se levar por modismos, baboseiras e asneiras.Dirigindo sua fala às leitoras e aos pais de família, ela lembrava que 
Nos tempos antigos, de eterna lembrança,
Passavam contentes os nossos avós,
Sem mil baboseiras que vêm-nos da França,
Pomadas, essências, anquinhas e pós...
As donzelas eram lindas
Sem ter luxo e ostentação
E nas faces não traziam
Pó de arroz e vermelhão...
Nos tempos passados, de capa e rabicho,
Ninguém nos cabelos usa punhais...
Sabiam vestir-se com todo o capricho,
Sem esses aspectos, asneiras e que tais...
Hoje tudo é diferente,
Tudo novo e nada bom:
Velhas, moças, lindas, feias,
Todas querem ser do tom...
As mocas de agora, de faces pintadas
Risonhas, coradas, sorrindo de amor,
São meigos anjinhos, papudos, formosos,
Gentis, preguiçosos, e...faz-me o favor!...
Quase todos esses lábios
São vermelhos de carmim,
Essas faces delicadas,
Salpicadas de nanquim...
As moças de agora são todas disformes,
Com trouxas enormes pendentes atrás.
Andando nos rua se julgam faceiras!
Parecem leiteiras trazendo jacás!...
Guerra aos “pufts” indecentes,
E às anquinhas que os são mais!
Refleti neste conselho,
Que é de um velho, mães e pais!
Já vês, ó leitora
Foi breve o sermão.
Palavras ao vento
Soltadas em vão.
Pregar num deserto,
Somente um João...
(A Reforma, 11 de fevereiro de 1875)
Com um conteúdo conservador e um tom moralizante, a Esmeralda refletia uma nostalgia aos tempos antigos, através de críticas aos modismos femininos: excesso de maquiagem (lábios vermelhos, faces coradas), uso de anquinhas (espécie de suporte, armação de arame ou almofadas usadas para realçar os quadris e dar mais roda às saias), que as deixariam a antonímia do belo, grotescas e mais feias do que as donzelas de outrora que nenhum desses artifícios utilizavam.
Como salientamos, esse novo carnaval veio em combate ao entrudo. Entre os motivos dessa “troca” é que essa brincadeira permitia um maior contato corporal entre seus participantes propiciando oportunidades para liberações sexuais, especialmente entre o belo sexo. Segundo relato de um cronista do início do século XIX, John Luccok, este era desde longa data o maior entusiasta com a brincadeira das molhadelas (LUCCOK apud FERREIRA, 1970, p. 10). Por isso era preciso atraí-las para essa nova modalidade de festejar o carnaval. Tanto Os Venezianos, quanto a Esmeralda, nesse ano, chamam a atenção das mulheres, dirigindo seus discursos a elas. Porém, enquanto um é cortejador, lisonjeiro e elogioso, o outro é conservador e de censura.  Os venezianos enchiam o belo sexo de galanteios e confetes ao contrário dos esmeraldinos que se esmeravam em criticá-las.

Programa Carnavalesco dos Venezianos - Carnaval 1880

A “era carnavalesca”, como era denominada essa nova prática de render louvores a Momo, estava inserida na lógica da modernidade. O entrudo era percebido como o grande inimigo da civilização, uma antiga e bárbara tradição, feia nódoa para cidade; enquanto o carnaval das sociedades passou a representar o progresso e a civilização. A transformação deveria ser total, substituindo aquele por este: a revolução deveria ser levada a cabo pelos filhos da Esmeralda e da Veneza, permitindo a Porto Alegre, assim, ingressar no rol das cidades mais adiantadas e civilizadas do mundo. Novamente com um linguajar irônico, em 1880, os Venezianos, vêem conclamar o povo e os cidadãos à revolução. Iniciam dizendo: "Povo!!! Cidadãos!!! A revolução é um direito conferido ao povo pelas leis da natureza! – A tirania, por qualquer forma que seja exercida, deve ser derrocada, pois ela não tem razão de ser!... Nós, os Venezianos vimos incitar-vos à revolução! – O nosso sangue ardente, as nossas tradições belicosas, não nos permitem que assistamos impassíveis ao quadro aterrador de vossa humilhação Povo! Reivindicai os vossos direitos e a pátria agradecida vos há de fazer justiça, inscrevendo os vossos nomes em letras de ouro nas taboas imorredouras da história. Viva a Revolução! Abaixo a tirania!" (Mercantil, 06 de fevereiro de 1880, p.2.).
Utilizando-se de chamamentos que se reportavam para um imaginário épico rio-grandense (o nosso sangue ardente, as nossas tradições belicosas) os venezianos impeliam o povo a aderirem à revolução. Touraine (1998, p.70) afirma que a modernidade ocidental passou a ser vista como sendo uma revolução que todos os povos deviam seguir, pois dentro de uma visão teleológica da história, onde o tempo tem uma finalidade a ser atingida, a idéia de revolução está muito presente: “o historicismo e sua expressão prática, a ação revolucionária, mobilizam as massas, em nome da nação e da história, contra as minorias que bloqueiam a modernização para defender seus interesses e privilégios”. Os revolucionários venezianos, portanto, dentro da perspectiva da modernidade, desse ideário de civilização, vêem incitar o povo à revolução, contra a tirania, que "é exercida sobre nós por maneiras muito variadas; não é o governo, que nos obriga a pagar imposto do vintém, o nosso único tirano! – Não, mil vezes, não! Perguntai aos rapazes da época o que os incomoda mais, se o mau estado de nossas finanças ou o maldito credor, em sua múltipla forma, que o obriga, muitas vezes, a deixar de passar por certa rua, onde o espera a namorada? Perguntai à matrona respeitável, quem lhe perturba mais a tranqüilidade da alma, do que o seu reumatismo ou a sua enxaqueca? "E vós, formosas deidades, que sois e tendes sido em todas as épocas a encarnação da candura e da bondade, dizei-nos com sinceridade se durante o ano inteiro não vos atrofiou o coração a idéia de que vosso primo, vosso escolhido do peito, vos tinha atraiçoado? Oh! É horrível o predomínio da tirania!!! Nós, os Venezianos, tomamos a peito a vossa salvação." (Mercantil, 06 de fevereiro de 1880, p.2.).
A idéia da construção de uma sociedade melhor no futuro estava presente no discurso dos venezianos, fazendo com que tivessem a convicção de que eles deveriam lutar para realizar a transformação de sua cidade. Vemos, assim, esses carnavalescos se intitulando os revolucionários, os defensores da liberdade, que tomariam a peito a salvação do povo, o que demonstra que esse espírito da modernidade permeava pelo menos uma parcela da sociedade, fazendo com que os jovens que criaram as sociedades carnavalescas tivessem a pretensão de se transformarem em sujeitos de sua história, ou seja, de pensarem que poderiam, através de sua própria ação organizada, conquistar melhorias e transformar a sociedade em que viviam, pois “ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, auto-transformação e transformação das coisas ao redor...” (BERMAN, 1986, p.15). Essa revolução deveria ser feita para atingir um único inimigo, a tirania – que era comparada aos males e inconvenientes do cotidiano, como o cobrador, o reumatismo e a decepção. E não era uma revolução como as outras e sim uma transformação de costumes que traria a solução de todos os problemas enfrentados no dia-a-dia da cidade. Por isso eles pediam que: "Rapazes! Esquecei o credor desalmado que vos tem mandado á porta tantas vezes o tipo do cobrador Teixeira. Matronas respeitáveis! Ponde de parte o vosso reumatismo, a vossa enxaqueca e vinde rejuvenescer ao clarão dos grandes princípios que se abrigam nos corações dos Venezianos. Deidades formosas! Mitigai as dores que vos aniquilam, enxugai as lágrimas que vos banham as faces e vinde pressurosas tomar parte nas manifestações ruidosas que vos oferecemos. Políticos! Abandonai por momentos a vossa inglória tarefa de censurar o governo quando não satisfaz as vossas ambições e beijar-lhe as plantas quando vos contempla na fatia do orçamento. Médicos, advogados, artistas, enfim vós todos que sentis dentro do peito palpitar a fibra patriótica, e que tendes vivido durante o ano que findou a atormentar a humanidade! Vinde, acudi ao apelo, que em nome dos princípios gigantescos do século XIX, vos fazem os Venezianos!!! Á revolução!! Á revolução!!! Mas não é a revolução armada, que precisa cevar-se no sangue dos nossos irmãos. Não, a nossa revolução é outra. – Nosso inimigo são o pesar e a tristeza, estejam aonde estiverem. Nossa revolução dura só três dias, mas os resultados são muito mais benéficos do que os das outras que duram anos. Cidadãos! – Possui-vos de entusiasmo e acompanhai os Venezianos em sua propaganda. - -Viva a Revolução! Viva a Folia! Viva o Carnaval!."(Mercantil, 06 de fevereiro de 1880, p.2.).
É interessante notar que esse programa da Venezianos foi assinado com o pseudônimo de Dr. Ox e que eles faziam um chamamento às “matronas respeitáveis” para que fossem “rejuvenescer ao clarão dos grandes princípios que se abrigam nos corações dos Venezianos”. Dr. Ox é um personagem do livro de mesmo nome, de Júlio Verne, publicado na França em 1872. No livro, o personagem provoca deliberadamente uma grande perturbação na cidade ao lançar uma quantidade maior de oxigênio na atmosfera através das lâmpadas de gás, acarretando o rejuvenescimento da população. Ao assinar o programa com tal pseudônimo, o autor procurava, justamente, enfatizar o poder rejuvenescedor do carnaval, sua capacidade de devolver a jovialidade às pessoas através de seus festejos e comemorações.
Assim como os venezianos incitavam a uma revolução em nome do progresso, os esmeraldinos, igualmente, em nome do progresso e da civilização, se apresentam perante o Povo porto-alegrense para "testemunhar os seus sentimentos de gratidão pela maneira condigna com que tem sido sempre recebida na folias do deus – Momo. Sequiosa pelas demonstrações de apreço com que pretende alegrar os entusiastas pelas festanças carnavalescas, mas modesta e esquiva aos ruidosos aplausos da multidão, a Esmeralda aparece no rumor e vai-vem d’essas ilusões do mundo, como a dama formosa e garrida a deslizar como uma sombra na chusma de seus galanteadores e admiradores. A espanhola insinuante, a francesa coquete, a fascinante filha do Oriente, a circassiana célebre, podem deslumbrar os míseros mortais com os atrativos e encantos de que dispõem; mas os Esmeraldinos estão certos que nenhum poder humano é capaz de arrancar-lhes as simpatias que têm angariado entre o belo sexo d’esta cidade. Falando em damas, é a voz, gentis porto-alegrenses, a quem particularmente nos dirigimos, enviando as nossas mais respeitosas saudações, os nossos mais afetuosos cumprimentos. Belas e donosas filhas do Guaíba, rainhas dominadoras desta opulenta capital, que simboliza a sentinela do Império do Brasil, deidades em par deste torrão abençoado, que surge como fada encantada do seio das águas; é a vós a quem devemos todas as prosperidades que temos colhido em nossa peregrinação carnavalesca, pois que de vossa animação e entusiasmo por esses folguedos que o século e a democracia acalentam na vertiginosa carreira do progresso e da civilização, havemos criado alento para não soçobrar no meio da carreira. (Mercantil, 07 de fevereiro de 1880, p.2.).
Os esmeraldinos dirigiam sua fala às damas e gentis porto-alegrenses, enviando as suas “mais respeitosas saudações” e os “mais afetuosos cumprimentos”. Agora as mulheres, ao invés de criticadas, eram elogiadas e congratuladas por lhes darem a animação para não desistirem da trilha do progresso e da civilização, representada nas festas carnavalescas. E continuavam pedindo sua colaboração... "Ninfas Porto-Alegrenses, auxiliai-nos ainda com vosso poderoso arrimo para avançarmos mais um passo na estrada do futuro, para que não fique incompleta a obra grandiosa que levamos por diante. Façamos guerra e guerra de morte ás antipáticas bisnagas, que são um sarcasmo pungente á nossa civilização, um insulto atroz lançado aos gozos e delicias das folias do deus – Momo. As bisnagas fazem reviver o entrudo são filhas espúrias desse entretenimento estúpido e brutal, que o século das luzes não pode suportar ante o progresso que fez medar por toda parte. Abaixo, pois, as bisnagas. Os Esmeraldinos convictos de que, resplandecente ou não, aparatoso ou simples o seu festim será recebido com a mesma satisfação dos anos anteriores, tem a honra de apresentar o seguinte". (Mercantil, 07 de fevereiro de 1880, p.2.).
As ninfas de Porto Alegre eram chamadas a cooperar no avanço ao futuro, ao progresso, através da morte do entrudo, pois o século das luzes não o podia mais suportar. Vemos, que a tradição – que segundo Santos (1998, p.22) era identificada com os modos de ser do passado, enraizados nos hábitos e costumes – refletida no entrudo, passara a ser considerada algo inconveniente, grosseira, selvagem, sem civilização. Por conseguinte, deveria ser trocada pela nova forma de se brincar o carnaval – o desfile de ilustres em carros decorados – que representaria o avanço tecnológico e fundamentalmente, comportamental dos habitantes da cidade de Porto Alegre rumo ao progresso.
Em 1882 os Venezianos, anunciavam aos Festeiros e ridentes habitantes desta heróica terra, que "está chegando o dia de nosso reinado!Chega o Carnaval! A velhice volta à mocidade e esta à loucura; mas à loucura pelo prazer, pela alegria e a festa!...Com o nosso poder tudo temos conquistado na senda do progresso. Tudo! Tratados de paz com diversas nações estrangeiras, abolição de diversas instituições nocivas a moralidade pública, criação de diversos estabelecimentos de utilidade publica, mandamos lavar o sol para brilhar mais nas nossas festas, e regular o serviço da linha de bondes para a lua, a fim de poder qualquer cidadão transportar para lá a sua jovem raptada, sem susto de que o facão matrimoniar-se, como sucede cá por baixo!... E quem fez tudo isto, não tem podido abolir a perniciosa bisnaga, fonte de quanta constipação, pneumonia e tifo, há, que flagela e dissipa a humanidade!... E o que mais horroriza, é ver que esta plêiade de epidemias dimana de delicadas e alvas mãozinhas que parecem fadadas para derramarem consolações sobre a humanidade sofredora!!!... Apesar da indiferença, do publico e a falta dos seus favores, os Venezianos existem, como a Fênix; porém menos tardos que ela, revivem de ano em ano, e ei-los ainda esta ano a apresentar-vos o programa das suas festas" (Jornal do Commercio, 18 de fevereiro de 1882, p.2).
Como filhos do progresso e tal qual a Fênix[4], os rebentos da Veneza, de forma jocosa, listavam suas conquistas na senda do progresso, mas confessavam que, apesar de terem conquistado melhorias para o desenvolvimento da cidade, não tinham conseguido extirpar a terrível bisnaga, e acima de tudo, que esta se encontrava sempre na ativa por causa das delicadas e alvas (brancas) mãozinhas das boas moças da terra. Dessa forma, eles criticavam as mulheres por insistirem no jogo do entrudo, as responsabilizando e já apontando para a crise dessa sociedade. Mostravam também a faceta elitista desse carnaval, sendo os apelos dirigidos para as “filhas das boas famílias”, de brancas mãozinhas. e já. Mais uma vez, referem-se ao poder de liberação e rejuvenescimento do carnaval, que permite às pessoas entrarem no utópico reino dos prazeres e possibilita que os velhos voltem a ser moços e aproveitem apaixonadamente a festa.
Já a Esmeralda, por sua vez, em uma linguagem requintada, criticava sua congênere por culpar o entrudo como causa de sua crise: "Cidadãos! Do alto pináculo desta tribuna joco-séria e em nome do parlamento Esmeraldino, eu venho, qual moderno Mirabeau, refocilar-me nas incongruências da palavra convincente e retumbante. Ouvi-me, cidadãos: não quero com frases hiperbólicas pregar-vos uma moral chata, que anda por aí a tirar-nos o chapéu a cada instante. Tão pouco não desejo cacetar-vos os castos ouvidos com idéias do tempo dos balandráos, nem relembrar aqui as carcomidas tradições de nossos avoengos, não. Meu intuito é outro. Sou do presente e realista ás deveras, tendo ojeriza á pindaíba, que entisica as algibeiras dos caiporas com absolutismo indomável [..]". (Jornal do Commercio, 19 de fevereiro de 1882, p.1).
Esmeraldinos pareciam estar exprobrando a proclamação de sua companheira e rival veneziana. Afirmavam que do mais alto lugar, mais até que das colunas venezianas, vêm divertir-se com as incoerências das palavras que andam por aí ressoando, usando de frases de efeito para pregarem uma moral chata. Não queriam incomodar com idéias de antigamente, nem com tradições de nossos antepassados. Seu objetivo era outro: gostavam era do presente e tinham repulsa pela quebradeira que se abatia sobre o bolso de infelizes com uma tirania sem controle. Dessa forma, esmeraldinos repreendiam o comportamento dos venezianos de quererem colocar a culpa de sua falência no gosto de antigas tradições, como por exemplo o entrudo, não admitindo que a bancarrota de sua sociedade se deu pela falta de dinheiro e não pelo gosto feminino às bisnagas, como insinuavam em seu programa.
                                                              *   *   *
Ao longo deste artigo, observamos que venezianos e esmeraldinos, a despeito de constituírem-se ambas em sociedades carnavalescas com fins semelhantes, possuíam identidades que as diferenciavam e distinguiam entre si, com características peculiares, semelhanças e diferenças, proximidades e rivalidades. Entre as semelhanças encontradas em meio a ambas, pode-se destacar neste curto espaço que tanto Venezianos quanto a Esmeralda inseriam a implantação do novo tipo de carnaval por elas proposto como mais um passo na senda do progresso e da modernidade, capaz de levar a capital mais próxima das grandes metrópoles. Assim, os venezianos propunham a realização de uma revolução no carnaval, uma vez que “com o nosso poder tudo temos conquistado na senda do progresso. Tudo!”. Do mesmo modo, os esmeraldinos afirmavam que “em nossa peregrinação carnavalesca, pois que de vossa animação e entusiasmo por esses folguedos que o século e a democracia acalentam na vertiginosa carreira do progresso e da civilização”.
Outro ponto de aproximação entre as duas tradicionais sociedades carnavalescas porto-alegrenses era o combate ao entrudo. Em seus programas, ambas conclamavam a população a auxilia-los a extirpar tal costume de nossa cidade. Venezianos, que afirmavam muito terem colaborado para o progresso dos festejos carnavalescos, queixavam-se de não terem “podido abolir a perniciosa bisnaga, fonte de quanta constipação, pneumonia e tifo, há, que flagela e dissipa a humanidade!”. E afirmavam, ainda, que “o que mais horroriza, é ver que esta plêiade de epidemias dimana de delicadas e alvas mãozinhas que parecem fadadas para derramarem consolações sobre a humanidade sofredora!!” atribuindo a continuidade do entrudo ao sexo feminino. Esmeraldinos e venezianos, no que concerne ao combate ao entrudo, transformavam-se em aliados uma vez que os primeiros conclamavam seus simpatizantes para que “façamos guerra e guerra de morte ás antipáticas bisnagas, que são um sarcasmo pungente à nossa civilização, um insulto atroz lançado aos gozos e delícias das folias do deus-Momo” e, para justificar tal perseguição, apelavam ao progresso, argumentando que as bisnagas “fazem reviver o entrudo, são filhas espúrias desse entretenimento estúpido e brutal, que o século das luzes não pode suportar ante o progresso que fez medar por toda parte. Abaixo, pois, as bisnagas”.
Contudo, como observado anteriormente, essas sociedades possuíam características próprias, marcas distintivas que lhe conferiam uma identidade particular em relação à sua congênere e que levava a que os foliões escolhessem uma e não a outra – assim como, hoje em dia, existem colorados e gremistas, por exemplo. Deste modo, os venezianos mostravam-se, sempre, de modo mais ousado, com uma linguagem irônica e sarcástica, buscando atrair as simpatias do belo sexo. Assim, eles afirmavam ser “galhofeiros entes, castos, bondosos e gentis até”, capazes de, até mesmo, “regular o serviço da linha de bondes para a lua, a fim de poder qualquer cidadão transportar para lá a sua jovem raptada, sem susto de que o facão matrimoniar-se, como sucede cá por baixo!”. Ao dirigirem-se às mulheres, o faziam de modo galanteador, a fim de conquistar olhares enamorados. Acreditavam, pois, nas “falas namoradas, meigas, que se interrompem num tremor gentil”.
Sem falsa modéstia, afirmavam que “nós, os Venezianos, tomamos a peito a vossa salvação”. Eram eles revolucionários que fariam uma revolução nos costumes da capital, mas ressalvavam que “nossa revolução dura só três dias, mas os resultados são muito mais benéficos do que os das outras que duram anos”.
Os Esmeraldinos, ao contrário, ao dirigirem-se ao sexo feminino o faziam de modo mais respeitoso e solene e, muitas vezes, em tom de crítica moralizadora a seus usos. Condenavam, pois, o fato de que “Hoje tudo é diferente, Tudo novo e nada bom: Velhas, moças, lindas, feias, Todas querem ser do tom” e, em tom nostálgico e conservador, louvavam o tempo  de seus “avós, sem mil baboseiras que vêm-nos da França: pomadas, essências, anquinhas e pós”. O conservadorismo dos esmeraldinos contrastava com a fala ousada e até mesmo licenciosa dos venezianos. Esmeraldinos eram mais comedidos em seus excertos e demonstravam uma postura mais “modesta e esquiva aos ruidosos aplausos da multidão”, se apresentando “como a dama formosa e garrida a deslizar como uma sombra na chusma de seus galanteadores e admiradores”. Ao dirigirem-se às damas, gentis porto-alegrenses, o faziam “enviando as nossas mais respeitosas saudações, os nossos mais afetuosos cumprimentos”. Tais programas exaltavam a participação feminina com respeito e gratidão, com uma linguagem que – como pudemos perceber ao longo do trabalho – era bastante rebuscada. Dirigiam-se, portanto, às “belas e donosas filhas do Guaíba, rainhas dominadoras desta opulenta capital, que simboliza a sentinela do Império do Brasil, deidades em par deste torrão abençoado, que surge como fada encantada do seio das águas” destacando, ainda, que “é a vós a quem devemos todas as prosperidades que temos colhido em nossa peregrinação carnavalesca”.
Desta forma, percebe-se que as sociedades carnavalescas, apesar de terem objetivos em comum, não podem ser entendidas como um todo homogêneo. Enquanto agremiações que brincavam o carnaval partilhavam características similares; contudo havia as diferenças. Venezianos e Esmeralda: duas sociedades, um novo tipo de carnaval. Ambas buscavam, cada uma a seu modo, atrair a simpatia dos foliões para seus préstitos e festejos carnavalescos. Rumo ao progresso e contra as bisnagas, estabeleciam representações e construções identitárias que, através das escritas de si, possibilitavam aos seus sócios e à população em geral reconhecê-las e reconhecerem-se como membros/simpatizantes de uma delas. Identidades e rivalidades presentes no carnaval de Porto Alegre ao cair do Império.

Referências Bibliográficas
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Cia das Letras, 1986.
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Fontes
Puff da Sociedade Os Venezianos – Profissão de Fé e da Sociedade Esmeralda – Sermão, publicados no jornal A Reforma, 11 de fevereiro de 1875.
Programa Carnavalesco da Sociedade Os Venezianos do ano de 1880 e 1882, publicado no jornal Mercantil, 06 de fevereiro de 1880, p.2 e Jornal do Commercio, 18 de fevereiro de 1882, p.2, respectivamente.
Programa Carnavalesco da Sociedade Esmeralda do ano de 1880 e 1882, publicado no jornal Mercantil, 07 de fevereiro de 1880, p.2 e Jornal do Commercio, 19 de fevereiro de 1882, p.1.


[1] Este documento é uma exceção em nosso corpo documental. Não foi um programa de carnaval, mas versos distribuídos para a população durante a exibição das sociedades. Incluiu-se aqui, pois acreditamos ser ele de grande valia nessa busca pelas escritas de si dos venezianos.
[2] O anticlericalismo é um traço característico no pensamento iluminista. “Em nome da razão e da liberdade de pensamento, durante o período iluminista, desenvolveram-se ferrenhas críticas às crenças e práticas religiosas, afirmando que a razão deve ser o único critério válido, de acordo com a própria vontade divina”. (LIMA, 2003, p.10).
[3] Note-se que alguns membros da sociedade eram intelectuais, participavam da Sociedade Partenon Literário e escreviam em jornais, como por exemplo: Hilário Ribeiro, Aquiles Porto Alegre, Cristiano Kramer, João Damasceno Vieira Fernandes.
[4] Fênix, ave que, segundo a mitologia egípcia, durava séculos e, queimada, renascia das próprias cinzas. Essa afirmação já aponta para a crise e falência que passarão as sociedades carnavalescas, tendo os venezianos feito seu último préstito e baile no ano de 1884, haja vista que os venezianos  necessitam  reviver de ano em ano, tal qual a Fênix. . Grande Enciclopédia Larousse Cultural, Nova Cultural Ltda, 1999, p.4417.

Publicação original: LEAL, Caroline P. Vozes Carnavalescas: construções identitárias através das escritas de si. Revista Litteris, v.1, n.2, maio de 2009.