Folia em Santa Cruz do Sul: apontamentos sobre como se brinca o carnaval em Santa Cruz do Sul/RS (1891-1941)

Débora Inês Vogt [1]
RESUMO: O carnaval tem inspirado inúmeras pesquisas. No entanto, a historiografia associa a existência da festa de comemoração dos Dias Gordos ao contexto espacial urbano, ou seja, nega sua existência no meio rural. Contudo, a partir das práticas de história oral através de entrevistas realizadas com moradores que viveram e/ou conviveram no perímetro rural da cidade de Santa Cruz do Sul, na primeira metade do século XX, verificou-se indícios e apontamentos da existência de uma festa – Schrapfest –, no período que antecede a Quaresma. Em determinadas áreas, observou-se um controle religioso exercido através da figura do padre. Sobressaíram-se, porém, características no que concerne aos aspectos familiares, a fartura em alimentos e a folia/alegria, garantida pela música e dança do grupo. As entrevistas também revelaram uma dinâmica festiva bastante peculiar, com diferenças significativas entre as construções do meio urbano e rural.

PALAVRAS-CHAVE: festa; sociabilidade; meio rural


INTRODUÇÃO

O trabalho aqui apresentado tem por objeto de pesquisa as diferentes formas de se fazer Carnaval em Santa Cruz do Sul/RS na primeira metade do século XX. A partir de entrevistas com octogenários do meio rural e urbano desta cidade, busca-se recompor o cenário do Carnaval e sua dinâmica festiva bem como a identificação de elementos constitutivos da memória social dos agentes sociais. Neste sentido, foi possível observar a existência de construções da memória diferenciadas entre os agentes sociais diretamente associadas ao espaço geográfico que estavam condicionadas, isto é, os moradores das áreas urbana e rural do município apontam para diferenças significativas da forma e função da festa.

Assim, a festa percebida enquanto representação de uma dinâmica social objetiva interpretar dimensões particulares das sociedades nas quais as celebrações se reproduziram.


Neste contexto, o carnaval tem inspirado inúmeras pesquisas. Para tanto: A festa, dita assim no singular, foi freqüentemente tomada por historiadores com um tipo de ocasião dotado de funções e formas comuns em qualquer sociedade – eternos rituais de inversão, momentos universais de suspensão de conflitos e regras, ou de fusão de diferenças em uma única torrente burlesca, ou satírica, cujas mudanças só podiam ser observadas na longuíssima duração. (...) Lugar quase sagrado da tradição e permanência, onde velhos deuses fazem sua constante aparição, a festa constitui, nesta ótica, uma espécie de repositório da continuidade para o qual muitas imagens, metáforas e exercícios morfológicos continuam sendo empreendidos. (CUNHA, 2001: 11). Entretanto, o objetivo destes apontamentos referentes a memória dos homens e mulheres que se divertiam coletivamente no pretérito nas festas carnavalescas estão ligados a diferença muito mais que a continuidade e a semelhança.

Após uma pequena incursão na produção historiográfica sobre o carnaval no Brasil (item 2), buscar-se-á apontar indícios das formas que germinou a festa na sociedade santacruzense (item 3). A partir destes elementos torna-se mais visível as diferenças na festa que antecede a Quaresma entre os habitantes da área urbana e rural de Santa Cruz do Sul/RS (item 4).


Portanto, este trabalho está inserido no que historiograficamente é denominado História Social da Cultura. Isto é, através das práticas culturais buscar-se-á entender a dinâmica sócio-econômica que movimentava a sociedade santa-cruzense entre 1891 e 1941.

Assim, o interesse não encontra-se focado na forma como: (...) homens e mulheres que se divertiam coletivamente no passado, buscam antes perseguir dimensões particulares das sociedades nas quais as celebrações se produziram. Enfatizando a diferença mais que a continuidade, estas análises perseguem os sujeitos que, inocentes em relação a este nosso olhar curioso e perscrutador, tratavam de aproveitar os folguedos de seu tempo. (...) Através delas, poderá espiar uma rica miríade de práticas, linguagens e costumes, desvendar disputas em torno de seus limites e legitimidade, ou da atribuição de significados, e sentir as tensões latentes sob as formas lúdicas. Apurando o ouvido, será capaz de captar manifestações de dor, revolta, alegria presente nos dias de festa como nos dias comuns, e testemunhar reconciliações e desentendimentos que, para o historiador, têm sempre um gosto único inconfundível. (CUNHA, 2002: 11-2)


O CARNAVAL NA HISTORIOGRAFIA

O carnaval tem inspirado estudos em diversos campos disciplinares, não só no Brasil como também em diversos países do mundo. A bibliografia do tema, portanto, é extensa e envolve reflexões interdisciplinares, tais como: literatura, história, antropologia, sociologia, música, artes plásticas. Embora analisada por vieses tão diversificados, a festa carnavalesca tem se mostrado um objeto inesgotável.

A grande, e retomada, fonte no estudo das percepções do carnaval têm sido Paris. Felipe Ferreira (2005) trabalha com a conformação da festa carnavalesca em três diferentes cidades: as francesas, Paris e Nice e a brasileira, Rio de Janeiro. O período não poderia ser mais instigante. Inventando carnavais conduz o leitor ao cenário do final do século XIX e início do século XX deixando claro o quanto as transformações nos centros urbanos serão perceptíveis no festejo carnavalesco. Ou seja, “cidade em transformação, carnavais em formação”.

Portanto, a proposta de Ferreira é a de mostrar o quanto o espaço urbano está articulado com o carnaval, isto é, o autor pretende uma “análise da definição processual de lugares carnavalescos na cidade” (2001: 11). Além disso, serão discutidas as imbricadas relações que a burguesia enquanto pertence ao mundo citadino. Assim: (...) o Carnaval é parte crucial de redefinições e disputas simbólicas pela ocupação urbana, revelando a um só tempo novas formas civilizatórias e processos de reorganização social. A conformação dos “lugares” carnavalescos expressa diferentes estratégias de poder e prestígio das respectivas burguesias citadinas, que agem, digamos assim, com um olho no mundo e outro em sua própria cidade e sociedade. (CAVALCANTI, 2001: 11-2)

Conforme Ferreira, “a festa carnavalesca da Paris do rei Luís-Filipe era uma espécie de tomada do poder da burguesia, que buscava, com esta comemoração transbordante, marcar seu espaço na cidade que iniciava, então, um ciclo de grandes transformações” (2005: 187).

Na tentativa de impor a sua reinvenção da festa, a burguesia parisiense, busca dar contornos milenares a história da festa. Cabe ressaltar, que a cronologia da festa carnavalesca criada pela burguesia parisiense do século XIX irá buscar seus referenciais na sociedade da Antigüidade Clássica, ou seja, Roma. Tal fato exemplifica a formação de novas concepções de cultura e vida social que se constroem neste período.

Embora busque-se em Roma as referências do carnaval burguês, o calendário cristão continua a ser muito respeitado. Isto é, apesar da reformulação a festa continua a ser realizada no período que antecede a Quaresma, período de penitência e jejum aos cristãos. Assim: (...) pode-se dizer que, em nossos dias, o Carnaval está morto, porque a Quaresma, sua maior antagonista está morta. Em nossa sociedade de bem-estar, desapareceu a diferença entre tempo cotidiano e tempo festivo – com seus rituais de roupas e alimentos melhores, de celebração coral de um evento que envolve e dá coesão. A diferença que existe para nós é entre tempo ocupado e tempo livre – livre de trabalho. (FURGONI, [1940] 2007: 74)

Mas, quem era essa burguesia parisiense e porque o interesse em reinventar o modo de se fazer Carnaval? Esse segmento social estava fortemente ligado a uma outra revolução: do mundo do trabalho. Adeptos da industrialização, e da criação de uma nova disciplina do trabalho, que se reflete na sociedade, este grupo social via-se interessado em criar do que se pode denominar fenômenos solidários de disciplinarização do operariado – escola, exército, entre outras.

Entre as palavras-chave desta nova disciplina está a ordem. E o qual o objetivo então? Dar ordem ao que estava bagunçado, com a imposição da hierarquização através da festa.

A resignificação do Carnaval brasileiro, datado da Segunda metade do século XIX, tem por inspiração o Carnaval europeu. Sob os pressupostos de ordem e civilidade, a elite brasileira buscou inserir uma nova concepção de festa carnavalesca alicerçada em uma visão de civilidade.

Aliada a resignificação das festas que antecedem a Quaresma, o governo republicano brasileiro inicia um combate as tradições culturais afro-brasileiras. Os batuques e os candomblés são colocados na ilegalidade. Além disso, “o entrudo, comemoração pública na qual os negros participavam como coadjuvantes, nas festas de momo ou na condição de alvo das brincadeiras de água-de-cheiro, começa a perder adeptos na elite, que passa a freqüentar os bailes de salão, com sepertina e confete, à moda veneziana” (PRIORE, 2001: 273).

Assim, as mudanças promovidas pela elite tinham um claro objetivo de desafricanizar o país, buscando a europeização e, consequentemente, civilização da população. No entanto, as inovações elitistas acabaram sendo assimiladas pelas camadas populares, tornando-se componente fundamental da cultura brasileira contemporânea.

Em Carnaval brasileiro (1992), Maria Isaura Pereira de Queiróz apresenta um olhar panorâmico sobre as diferentes dimensões da festa carnavalesca (entrudo, carnaval burguês, carnaval popular) no Brasil. O estudo que trabalha com a organização e inserção da festa na sociedade brasileira é enriquecido pela memória da autora que participa da festa. No trecho abaixo podemos perceber o quanto esse processo de tentativa de civilização pela elite brasileira acaba por ter uma resolução diversa da pretendida.

No fim dos anos 30, o corso da avenida Paulista foi se tornando cada vez mais“misturado”; em muitos dos carros, havia gente que, pela maneira de se vestir e comportar, contrariava as regras da “nossa” classe social. A “promiscuidade” se tornava intolerável e as famílias da camada superior se retiravam pouco a pouco das ruas, deixando para o “povo” a celebração carnavalesca de desfiles. (...) A evasão das camadas superiores foi extinguido o corso, foi diminuindo a expressão do desfile das sociedades carnavalescas. O Carnaval “de rua” da burguesia apagou-se totalmente. (QUEIROZ, 1992: 18-9)

Outro importante trabalho da historiografia sobre o carnaval foi publicado em 1980 por Roberto Da Matta. Na obra o autor nos oferece uma análise sociológica das ritualizações do Carnaval, da parada militar e das procissões religiosas no contexto brasileiro: Essas três semanas festivas sugerem um “triângulo ritual brasileiro”, muito significativo, sobretudo nas suas implicações políticas, uma vez que temos festas devotadas à vertente mais institucionalizada do Estado Nacional (suas Forças Armadas), festas controladas pela Igreja (outra corporação crítica na formação da sociedade brasileira) e, finalmente, as festas carnavalescas consagradas à vertente mais desorganizada da sociedade civil, ou melhor, da sociedade civil enquanto povo ou massa. Observemos, então, que – no melhor estilo da sociedade holística, tradicional e hierarquizada – cada momento festivo e extraordinário remete a um grupo ou categoria social que tem seu lugar garantido, vale dizer, sua hora e vez no quadro da vida social nacional. Teríamos então um ciclo de festividades que vão do povo ao Estado, passando pela Igreja, numa forma organizatória típica de um sistema muito preocupado com o “cada qual no seu lugar” e o “cada macaco no seu galho”. (1980: 41-2)

Da Matta, dialeticamente, aborda ainda a simbolização e ritualização dos espaços da casa e da rua, inserindo a inversão da festa carnavalesca brasileira neste contexto. Para tal, cita a frase de Paulo Rigger, no romance País do Carnaval de Jorge Amado: “Só me senti brasileiro duas vezes. Uma, no Carnaval, quando sambei na rua. Outra, quando surrei Julie, depois que ela me traiu” (AMADO apud DA MATTA, 1980: 69). Ou seja, o processo de identificação de Paulo como o ser brasileiro é abordado a partir de dois domínios: rua (onde ele sambou e com uma mulata) e a casa (onde a amante francesa foi surrada). Assim, observa-se o imaginário construído em torno destes dois espaços em nossa cultura. A rua é o local do descontrole, da massificação, enquanto a casa representa controle e autoritarismo: (...) a categoria rua indica basicamente o mundo, com seus imprevistos, acidentes e paixões, ao passo que a casa remete a um universo controlado, onde as coisas estão no seu devido lugar. Por outro lado, a rua implica movimento, novidade, ação ao passo que a casa subentende harmonia e calma: local de calor (como revela a palavra de origem latina lar, utilizada em português para casa) e afeto. E mais, na rua se trabalha, em casa descansa-se. Assim, os grupos sociais que ocupam a casa são radicalmente diversos daqueles do mundo da rua. Na casa, temos associação regidas e formadas pelo parentesco e relações de sangue; na rua, as relações têm um caráter indelével de escolha, ou implicam essa possibilidade. (DA MATTA1980: 70). Mais onde está a inversão na frase de Rigger? Assim, explica Da Matta, “de fato, o lugar da amante é na rua, não em casa. E o lugar de cantar e sambar sobretudo quando se é de classe alta, é uma casa ou um clube, nunca a rua” (DA MATTA, 1980: 74). Ou seja, o Carnaval é o período do ano em que a sociedade brasileira se permite o pecado – numa alusão à dança, ao sexo e à alegria; ligações que são possíveis somente durante este período.

O carnaval, durante a segunda metade do século XIX, difundiu-se do Rio de Janeiro para as principais cidades brasileiras. No Rio Grande do Sul, as cidades centenárias de Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre se destacam nas festas de momo. As primeiras estão ligadas a um modelo sócio-econômico latifundiário, escravista e de exportação de charque. A última se verá mais associada a presença de imigrantes europeus e de consolidação de um espaço urbano.

Neste sentido, o trabalho desenvolvido por Lazzari busca esclarecer as motivações que levaram as elites porto-alegrenses a reinventar um carnaval veneziano nos limites meridionais do Brasil. O retrato que se forma pode ser considerado como representação da forma de apropriação de um símbolo de identidade nacional na sociedade sul-rio-grandense.: Popularizado por Grandes Sociedades Carnavalescas e celebrado por intelectuais da Corte como símbolo de civilização que viria substituir costumes antigos e “atrasados” como o entrudo, tinha poder de sedução sobre as províncias onde seu significado era adaptado às particularidades culturais e políticas locais. As sociedades carnavalescas Esmeralda e Venezianos foram fundadas em Porto Alegre no ano de 1873, sob inspiração do carnaval da Corte carioca e de cidades européias e na expectativa de criar uma alternativa mais “civilizada” ao velho jogo do entrudo para a cidade. Desde essa época, passaram a marcar presença com uma festa de bailes de gala e préstitos fantasiados conduzindo carros alegóricos pelas ruas da cidade, reunindo um conjunto selecionado de famílias (...) Além de possuírem uma organização mais eventual e efêmera, também eram peculiaridades destas sociedades porto-alegrenses a sua composição estritamente familiar e baseada em critérios de distinção social, enquanto no Rio de Janeiro tornaram-se associações estritamente masculinas e boêmias. (LAZZARI, 2001: 208-9).

No entanto, as sociedades carnavalescas porto-alegrenses não teriam longevidade. A sociedade Venezianos alcançaria dez anos de vida enquanto a sociedade Esmeralda seria decomposta no ano de 1891. Embora não tendo um histórico relativamente longo de formação dessas sociedades carnavalescas, a imprensa porto-alegrense do final do século XIX evidencia um sentimento de saudade em relação as festividades promovidas pelas extintas sociedades: O que predominavam nas páginas dos jornais, durante aqueles anos de fim de século, era um sentimento de frustração diante do carnaval, uma idéia de decadência e degeneração do sentido original da festa e uma saudade de um passado idealizado, de uma tradição desaparecida. Essa Idade de Ouro, paraíso perdido de Momo, eram os tempos gloriosos de duas sociedades carnavalescas, a Esmeralda e os Venezianos, que teriam reunido o “escol” social da capital. Sem elas, era como se não existisse um carnaval digno de nome. Era em torno delas que, naquele momento, construíram-se uma imagem idealizada para a festa e uma memória positiva para os seus feitos do passado, em oposição direta aos valores “degenerados” do carnaval das ruas. (LAZZARI, 2001: 208).

Quem eram esses degenerados? Na visão da mídia jornalística porto-alegrense, eles eram “os indivíduos mascarados e grupos diversos que saíram às ruas até adiantada hora da noite, perambulavam pela cidade os sempiternos pulhas, os sujos de todos os anos” (LAZZARI, 2001: 206). Ou seja: Os jornais manifestavam um preconceito socialmente compartilhado, pois tais indivíduos e grupos não costumavam ser considerados dignos de nota, a não ser em comentários de aberta desaprovação, quando então eram tratados como uma versão degenerada e espúria dos antigos modos de brincar o carnaval. Na sua condição de exceção, estas breves notas foram transcritas para oferecer ao leitor uma tênue imagem do carnaval diversificado que efetivamente era visto e que muitos não desejavam ver, por ocasião das festas carnavalescas, e contra o qual se levantavam os defensores de um outro carnaval, um modelo único que deveria ser portador de um significado preestabelecido, considerado culturalmente superior e unívoco. (LAZZARI, 2001: 207).

REPRESENTAÇÕES DO CARNAVAL EM SANTA CRUZ DO SUL/RS

Não era privilégio único das grandes cidades as festividades do carnaval. No entanto, os desfiles de rua e os bailes de máscara – modelo francês difundido no Brasil – tornaram-se populares nos centros urbanos, muitas vezes, em formação. Talvez este seja o caso santacruzense. Colônia alemã fundada em 1849, num crescente desenvolvimento econômico elevada a categoria de município em 1878 e de cidade em 1905, possui uma burguesia comercial e um funcionalismo público que figuram no que se poderia denominar elite local.


Embora não se tenha registros precisos no que concerne ao ano do primeiro desfile de Momo, as primeiras fotos – diga-se de passagem em número bastante pequeno – apontam para a primeira década do século XX. Muito provavelmente, o contato, via tratos comerciais, propiciou um intercâmbio de conceitos culturais dos quais o carnaval pode fazer parte.


Desfile de Carnaval da primeira década do século XX em Santa Cruz do Sul/RS.
Fonte: Centro de documentação da UNISC.

João Bittencourt de Menezes, em sua obra Município de Santa Cruz, aponta para a existência do que denomina folhas de carnaval, citando: Narren-Vila in Carneval (1896), Narren-Ulk (1900), Carneval-Zeitung (1903), Narren-Zeitung für das Narrenreich Vila Teresa und Umgegend (1904?), Kater Murr (1905), § 11 Carneval-Zeitung (1905). Preciosos indícios da formação de um carnaval santa-cruzense que necessitam de estudos mais consistentes. O jornal Kolonie editado em alemão gótico entre os anos de 1891 e 1941 na cidade também oferece um material de pesquisa extremamente rico.


Anúncio de Maskenball (Baile de Máscaras) em Vila Teresa, atual Vera Cruz.
Fonte: Kolonie, 20.01.1913, ano 23, n.9.

A partir de trabalhos de pesquisa no jornal e de pesquisa em fotografias do fundo Colégio Mauá que se encontra disponível no Centro de Documentação da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), pode-se identificar a formação de sociedades carnavalescas no correr da década de 1920 em Santa Cruz do Sul. Nos primeiros anos da década de 20, realizavam desfiles nas principais ruas da cidade a Sociedade Carnavalesca Os filhos do Inferno, Sociedade Carnavalesca BAM-BAM-BAM e Sociedade Carnavalesca Turunas, entidades vinculadas ao que denominamos elite local. Posteriormente, será formada a Sociedade Cultural e Benificiente União vinculada a população menos favorecida do estrato social local, ou seja, os trabalhadores em sua maioria afro-brasileiros.


Bloco Bam-Bam-Bam em desfile carnavalesco no ano de 1925,em Santa Cruz do Sul/RS. Este bloco era formado exclusivamente por homens. Fonte: Centro de documentação da UNISC.



Bloco Bam-Bam-Bam em desfile carnavalesco no ano de 1925,em Santa Cruz do Sul/RS. Este bloco era formado exclusivamente por homens. Fonte: Centro de documentação da UNISC.

A MEMÓRIA DOS OCTOGENÁRIOS SOBRE O CARNAVAL

As ligações entre memória e história sempre foram fontes de questionamentos. Assim afirma Le Goff: “a memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas” (1994: 423). Ou seja, a memória seleciona informações que considera importantes em detrimento de outras que serão esquecidas. Além disso, estas informações podem ser alteradas conforme a necessidade do indivíduo.
Acrescentando afirma que estes são alguns dos “traços e problemas da memória histórica e da memória social” (1994: 423).

Como enfatiza Le Goff, o que sobreviveu como memória coletiva de tempos passados não foi o conjunto de monumentos e documentos que existiram, mas o resultado de uma escolha efetuada pelos historiadores e pelas forças que operaram em cada época histórica.

E ainda, “a memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens” (LE GOFF, 1984: 477).

Pierre Nora, ao falar sobre os lugares de memória, aponta que “longe de serem sinônimos, tomamos consciência de que uma opõe-se a outra”. Entre os vários exemplos, o autor coloca que “a memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento”, enquanto que a “história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história é uma representação do passado” (NORA, 1993: 9). A partir de tais pressupostos teórico-metodológicos, aliado a teoria da história oral[2] foram entrevistas octogenários buscando associações entre memória e história das festas de carnaval no perímetro rural do município de Santa Cruz do Sul. Para tal, foram entrevistados homens e mulheres que vivem e/ou conviveram no espaço rural do município.

Até o momento foram realizadas doze entrevistas como moradores do centro urbano e das localidades de Boa Vista e Linha Paredão do município de Santa Cruz do Sul/RS. Os entrevistados foram contatados previamente, via telefone, sobre o conteúdo da entrevista. As perguntas realizadas eram abertas, ou seja, o entrevistado foi incentivado a falar sobre o carnaval e/ou as festas que antecediam o período cristão da Quaresma.

Em tais entrevistas dois pontos se destacaram: a ligação com o mundo religioso – ou seja, o da Quaresma, e a fartura em alimentos. Assim: Durante toda a Idade Média as restrições da Quaresma se fizeram acompanhar por outros rigores, além dos alimentares: penitências, abstenções das relações sexuais entre os cônjuges e de tudo aquilo que contrastasse com a idéia de purificação, com espetáculos, teatro, bailes e o uso de armas. A proibição da carne foi sempre, porém, o preceito mais fortemente ligado à idéia de Quaresma. (FURGONI, [1940] 2007: 75)

Como se verifica nas frases dos entrevistados, a seguir: “E lá no São Martinho o padre sempre dizia: Vocês podem ir segunda-feira, mas só até tal e tal hora. Aí o pessoalmexia nos relógios.” (Entrevista 1). Ou seja, a Igreja, através da figura do pároco, libera seu rebanho ao pecado. Festa profana que, portanto possui forte ligação com o calendário cristão.

O jejum, enquanto prática necessária no período que antecede a Páscoa, foi ponto mais que destacado pelos entrevistados do meio rural. “O mais divertido era o carnaval. Eu tenho até umas fotos de quando era (feito) a galinhada, eles faziam um baita cheiro, uma baita de uma panela de ferro. E tinha galinhada também lá no Alvício.” (Entrevista 1). Ou ainda, “era um panelão de comida, não ia muita gente. Era só o pessoal aqui perto, os nossos vizinhos. E nós comia todos juntos, cada um ajudava com alguma coisa.” (Entrevista 2). Toda a comunidade, que podia ser mais numerosa ou não, se envolvia nos preparativos da festa. “A minha futura sogra naqueles tempos ela sempre trabalhava junto, principalmente na cozinha de lá. A gente ia um grupo de gurizada, nós ia lá caçar. Era galinhada. Ai então a gente pegava, pedia os frangos. E fazia música e pedia um frango, arroz, qualquer coisa.” (Entrevista 1).

Nota-se, portanto, que a dinâmica da festa carnavalesca rural seguia uma dinâmica própria, diversa da urbana. Ou seja, os desfiles de rua e os bailes de máscara não se farão perceptíveis na dinâmica festiva dos moradores da área rural do município.

Cabe ressaltar que, na construção do imaginário da população rural, muitas vezes, o modelo unívoco da festa carnavalesca urbana assumia posição de “festa verdadeira”. Ou seja, como afirma a segunda entrevistada, “isso não era carnaval”. A imagem de carnaval, para ela, estava associada a um período posterior em que já havia uma distinção com o Schrapfest[3]

Exemplificando: “tinha o Schrapfest, mas isso não era carnaval. Carnaval eu só fui quando era mais velha, quando já era mãe” (Entrevista 2).

Segundo a mesma entrevistada, no período em que eram realizadas tais festas, as músicas eram todas em alemão. Reforçando a idéia de uma grande musicalidade entre os habitantes da comunidade, pois era habitual que cada indivíduo tivesse habilidades seja no cantando ou tocando algum instrumento.
Claro que era em alemão, ninguém sabia falar o português. O meu irmão até sabia umas palavras mas era pouca coisa. Como a gente ia cantar em português se até hoje eu só falo em alemão? Ah, mas isso não era carnaval. No carnaval tinha assim umas músicas que eram em português. Mais ou menos uma hora e aí tocava música normal de novo. (Entrevista 2)

Nas entrevistas realizadas foram citados como locais de encontros das festividades carnavalescas os salões de: 1) Alvício Thomas, em São Martinho – atual Salão Wehner; 2) Germano Bublitz, em Entrada Sinimbu – atualmente abandonado; 3) Ertel, em Linha do Moinho – salão de madeira foi demolido a menos de 10 anos para a construção de um ginásio que se encontra administrado pelas sociedades da localidade; 4) Gehardt, em Paredão Felipe Neri – que passou pela administração das famílias Hoffmann, Kister e, atualmente, Fischer, está localizado agora do outro lado da estrada pois foi construído um campo de futebol no antigo espaço; 5) Frantz, em Linha Schwerin – atual Linha Andrade de Neves, atualmente desocupado tendo realizado festividades até a década de 70; 6) Butzge, em São Martinho – ainda em atividade.

Como informaram os entrevistados, os meios de transporte mais utilizados eram: cavalo, ônibus e muitos iam a pé. “A cavalo, porque tinha o lugar lá que podia deixar os cavalos. Uns, que eram mais perto, vinham a pé. Bastante gente ia a pé. Mas a maioria já vinha de ônibus, com esse ônibus aberto, eles vinham de Monte Alverne.” (Entrevista 1).

Referindo-se aos bailes realizados no salão de bailes de propriedade de Alvício Thomas. O meio de transporte também eram um meio de distinção social na comunidade: “Como era aqui pertinho, tinha uns que tinham mais dinheiro e iam de cavalo, mas a gente sempre foi a pé” (Entrevista 2).



CONSIDERAÇÕES FINAIS

As entrevistas revelaram uma dinâmica festiva bastante peculiar, com diferenças entre o meio urbano e rural. No meio rural será característico o envolvimento da comunidade familiar onde as atividades eram divididas pelo gênero – as mulheres na cozinha e os homens se encarregando de recolher donativos. Nota-se que o isolamento geográfico, imposto pela falta de vias de acesso em bom estado e ainda pelos meios de transporte (carroças de boi, cavalos e burros), contribui para a manutenção de uma cultura festiva peculiar. Além disso, destaca-se ainda a participação efetiva da Igreja, representada na figura do pároco, nas comunidades mais próximas aos centros religiosos.

Este modelo diferenciado percebido na descrição do Schrapfest pode ser exemplificador da influência das tradições culturais que imigrantes e seus descendentes trazem na travessia para o Novo Mundo. Como afirma Queiroz: (...) na Europa, a festa carnavalesca (...) apresentou diferenças de uma região para a outra, ou de um povoado para outro. Esta característica separa o Carnaval europeu e hispano-americano do Carnaval brasileiro: no Brasil, por toda parte as atividades festivas seguiram o mesmo esquema; as mesmas práticas tenderam a se realizar. (1992: 11)

Assim, a associação do Carnaval enquanto prática urbana adotada pela historiografia nacional deveria ser relativizada. Apesar de não terem sido encontrados vestígios de festas nos períodos e espaços geográficos estudados até o momento, isto não quer dizer que os mesmos não existem. E é neste sentido, que este trabalho pretende apontar indícios de uma dinâmica festiva carnavalesca no meio rural de Santa Cruz do Sul, na primeira metade do século XX.

Entretanto, com a abertura e o maior contato das comunidades rurais com a cidade mudam-se alguns hábitos e novas percepções de carnaval são construídas. Ou seja, é somente quando os moradores da área rural se dão conta de um outro carnaval – marcado pelos bailes de salão e desfiles – modelo unívoco, de ordem e civilidade, que percebem que sua festa não o é, ou melhor, que eles acreditam não o ser.



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[1] Graduanda em História pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC sob a orientação do Prof. Dr. Silvio Marcus de Souza Corrêa
[2] Sobre o assunto ver AMADO, Janaína, FERREIRA, Marieta de Moraes (org). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996.
[3] Espécie de sarau onde a população da comunidade se reunia para comer e beber que acontecia no período que antecede a Quaresma.

Artigo publicado em Spartacus – Revista Eletrônica dos Discentes de História - UNISC