O carnaval através dos processos-crime: ácidos e facadas nos festejos momescos no final do Império

O presente artigo tem como objetivo analisar as relações sociais durante o carnaval em Porto Alegre através da análise de dois processos-crime encontrados no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). Nos referidos processos, buscaremos avaliar as relações entre os discursos que visavam ordenar as festas carnavalesca na tentativa de atribuir novos lugares e condições para o comportamento feminino durante tais festejos e as práticas e condutas femininas que, por vezes, se adaptavam a tais regramentos e, em outras ocasiões, burlavam tais orientações e observar, sobretudo, os relacionamentos e solidariedades existentes entre os membros das principais sociedades carnavalescas da capital: Esmeralda, Venezianos e Germânia.

Palavras-chave: processos-crime, carnaval, mulheres, solidariedades.

Porto Alegre, meados da década de 70 do século XIX. Introduz-se na cidade uma nova forma de se brincar o carnaval: os préstitos e bailes promovidos pelas sociedades carnavalescas. Essa nova festa veio em combate ao entrudo, que passara a ser atacado de rude, grosseiro e não condizente com os ares que essa urbs deveria ter As sociedades, por sua vez, promoveriam um carnaval chiq, elegante e sofisticado, segundo os jornalistas da época. Assim, o nascimento da sociedade Esmeralda Porto-alegrense, em 1° de março de 1873, e da Sociedade Carnavalesca Os Venezianos dois dias depois, representava “o início de uma reforma de costumes que colocaria Porto Alegre à altura da Corte e das demais cidades civilizadas do mundo”[1], uma vez que a reunião desses homens para a consecução dessas sociedades tinha como objetivo máximo a eliminação do entrudo como forma de comemoração carnavalesca. Com o estabelecimento dessa nova prática, Porto Alegre passaria a ter o “Carnaval”, pois, segundo Lazzari, para a maioria dos cronistas locais o carnaval das sociedades representava todos os valores positivos, enquanto o entrudo era a representação de todos os males[2], que eles vinham reafirmando desde 1870, após ter a Ex-marquesa de Monte Alegre, mulher do então Presidente da Província Antônio da Costa Silva e Pinto, reintroduzido os hábitos entrudescos na cidade[3].  
Este artigo tem como objetivo analisar as relações sociais durante o período dos festejos carnavalescos em Porto Alegre através da análise de dois processos-crime encontrados no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS). No primeiro, buscamos analisar as relações entre os discursos que visavam ordenar as festas carnavalescas na tentativa de atribuir novos lugares e condições para o comportamento feminino durante tais festejos e as práticas e condutas femininas, que, por vezes se adaptavam a tais regramentos e, em outras ocasiões, burlavam tais orientações. Nesse caso, observa-se que, quando chamadas a prestar depoimento em um processo judicial, as mulheres em questão acabaram por buscar se adaptar às expectativas socialmente produzidas em torno de suas condutas. Contrariando suas práticas sociais, seus discursos buscaram uma adequação aos ideais estabelecidos para as condutas femininas. No segundo, buscaremos observar, sobretudo, os relacionamentos e solidariedades existentes entre os membros das principais sociedades carnavalescas da capital: Esmeralda, Venezianos e Germânia, uma vez que, ao contrário dos festejos carnavalescos no Rio de Janeiro, em Porto Alegre tais festas possuíam um caráter mais familiar, permitindo a participação de esposas, filhas, sobrinhas, enfim, das chamadas “mulheres de família”.
Esse novo carnaval, proposto por esmeraldinos e venezianos, veio também com outros objetivos: pretendia-se uma moralização e re-adequação da participação das mulheres nos festejos dedicados a Momo. De uma presença ativa nas brincadeiras das molhadelas, na qual elas se entregavam com todo ardor, passariam à passividade. Ao invés da proximidade, principalmente corporal, oferecida pela brincadeira tradicional; o distanciamento do préstito: agora os rapazes das sociedades desfilariam nos carros enquanto as mulheres assistiriam, aplaudiriam e lhes jogariam flores ao invés do temido limão. 
Para Careli,  entre os anos de 1850 e 1900, em Porto Alegre, “reinterava-se  a crise de costumes e a crise moral como explicativa dos mais diferentes problemas”[4], não sendo, portanto, “fortuita a insistência na qual incorriam os ‘homens do jornal’ no quesito ‘virtude’ como instrumento de combate à imoralidade  e ao ócio, que na visão desses, punham em risco a acumulação viabilizada pelo trabalho para a concretização de uma sociedade civilizada e ordenada”[5]. Para o alcance de uma sociedade moderna era necessário o “desenvolvimento de condições morais e sociais adequadas àquela concepção de progresso que [os intelectuais] buscavam implementar”[6]. Assim, era preciso se ter um novo carnaval: o entrudo era considerado uma brincadeira licenciosa, que proporcionava a perda do controle dos pais e também da prudência sobre o comportamento feminino, pois durante o festejo haveria o perigo dos “abraços traiçoeiros que começam na porta da rua e iam terminar mesmo nas barbas dos senhores pais de família”[7]. A referida autora também afirma que “o comportamento sexual referente ao gênero feminino no século XIX era associado – por grande parte da imprensa escrita – a uma existência virtuosa a ser canalizada ao longo da vida para o fim maior a que estava destinada a mulher: o casamento e a maternidade”[8]. Ao participarem desse temido jogo, as mulheres não estariam praticando uma existência tão virtuosa assim, podendo prejudicar o objetivo máximo dela, o casamento.
            Segundo Pedro, a partir de 1850, nas cidades do Sul, durante a formação das elites nos centros urbanos, foram freqüentes as imagens idealizadas das mulheres e de seus papéis familiares. Essas elites que se formaram, é que “iriam promover os jornais[9] responsáveis pela divulgação de modelos de comportamento, especialmente para as mulheres”[10], como por exemplo, os comportamentos que se esperavam delas durante os festejos carnavalescos.
Todavia, se os jornais nos mostram registros produzidos predominantemente por homens – que elaboravam imagens idealizadas para as mulheres e divulgavam sua nova tarefa durante o carnaval – conseguimos a partir de processos-crime buscar indícios, vozes femininas. Nesses processos elas são chamadas à justiça para testemunharem sobre eventos dos quais fizeram parte e é neste momento que suas vozes emergem em meio a depoimentos, inquéritos e testemunhos e podemos saber um pouco das versões femininas, mesmo que coagidas pela justiça, em uma situação um tanto quanto constrangedora.
Não devemos, entretanto, acreditar que através dos processos criminais descobriremos o que realmente aconteceu. Isso, contudo, não impede que eles possam ser ricos registros das práticas e representações dos agentes sociais envolvidos na questão, abrindo um leque de possibilidade para compreender tanto a eles, quanto a sociedade a que pertenciam. Para Chalhoub,

ler processos criminais não significa partir em busca ´do que realmente se passou` porque esta seria uma expectativa inocente – da mesma forma como é pura inocência objetar à utilização dos processos criminais porque eles ´mentem`. O importante é estar atento às ´coisas` que se repetem sistematicamente: versões que se reproduzem muita vezes, aspectos que ficam mal escondidos, mentiras ou contradições que aparecem com freqüência.[11]

Assim, vemos que, muitas vezes, o discurso que atribuía às mulheres um comportamento caracterizado pela passividade e moral acabava encontrando eco nas próprias práticas sociais femininas, como veremos no caso a seguir:

a)      HONORATA
O primeiro processo refere-se a um homicídio ocorrido durante um baile público carnavalesco realizado no dia 5 de fevereiro de 1882, no Theatro de Variedades. Significativo nesse processo é o fato de que, através dele, podemos chegar a uma voz feminina que nos elucida diversos elementos sobre a participação das mulheres nos bailes. Deve-se considerar que – como discutimos brevemente na introdução desse trabalho – quando chamadas para testemunhar perante a justiça, as pessoas estão coagidas, não é um registro voluntário e livre, mas sim um registro diante de uma autoridade. Tal processo, portanto, resultou de uma briga entre cadetes e paisanos, no referido baile, aonde Marçal Nunes Garcia é acusado de ferir gravemente a Honório dos Santos, que acabou falecendo. O conflito, de acordo com depoimentos contidos no processo-crime sobre o ocorrido, teria sido em função de uma moça[12].
Segundo José Pires Soares, amigo da vítima, Honorata – uma escrava do Dr. Barcellos – teria se dirigido a Honório e dito a ele que a próxima marca seria sua. Verifica-se, pois, que os bailes públicos, diferentemente dos bailes das sociedades carnavalescas – dos quais só participavam os sócios – eram freqüentados pelas classes menos abastadas, incluindo-se os escravos que podiam participar da folia. Apesar de Castro afirmar, conforme as Posturas Municipais da Câmara de Porto Alegre, de 1847, que “nos locais de diversão pública, não eram permitidos negros escravizados, a jogar, a conversar, a comer, a tanger ou a bailar” [13], na prática isso não se verifica, tendo Honorata, escrava do Dr. Barcellos, ido participar de um baile público em homenagem a Momo.
Nisso, chegara o cadete Fontoura e convidara a moça para dançar, tendo esta se recusado. Iniciada a música, Honório se levantou, puxando Honorata para bailar. Fontoura a proíbe, colocando-se à frente dos dois, dirigindo palavras agressivas a Honório. O cadete é retirado pelo alferes Godinho do recinto, mas outros companheiros dele entram e apontam para a vítima dizendo: é aquele ali! A confusão inicia e Honório é ferido gravemente, sendo o cadete Marçal Nunes Garcia acusado do crime. O caso fica mais instigante quando vemos o relato de Honorata. Segundo ela Honório é que a teria tirado para dançar e que, após a marca, ele a convidara para tomar uma cerveja, o que ela recusara.
Já o cadete Fontoura, em seu depoimento, afirma que o conflito se deu porque “Honório estava pronto para dançar com ela uma marca que já havia prometido dançar com ele respondente, e que instando com o falecido para ceder-lhe o par e este respondendo-lhe mal originou-se então a questão”[14].
O que realmente aconteceu não sabemos (nem mesmo as investigações na época chegaram a uma conclusão, tendo o réu sido absolvido por falta de provas, apesar de uma testemunha ter dito que o viu empunhando uma adaga coberta de sangue), mas o que nos interessa são os diferentes pontos de vista sobre o ocorrido e a postura de seus atores.
Quando Soares afirma que Honorata dirigiu-se a Honório para convidá-lo a dançar, nos coloca diante de uma situação na qual ela parece estar transgredindo as condutas socialmente atribuídas às mulheres, que seriam marcadas pelo recato e pela passividade, uma vez que o protagonismo ficava a cargo dos homens. Todavia, ao prestar seu depoimento e negar tal versão, alegando que teria sido convidada por Honório, talvez a mesma estivesse buscando se adequar a esses modelos de comportamento difundidos não só entre a elite como também entre as classes menos favorecidas, pois, possivelmente, a visibilidade do ocorrido poderia acarretar prejuízos à sua imagem de conduta moral em seu meio. Tal atitude, de negação de seu comportamento, talvez tenha se dado, porque “nas classes populares a honra não é uma condição moral herdada pela destacada posição social dos genitores, mas sim é definida pelas ações e intenções social e cotidianamente verificáveis”[15]. Ao assumir sua postura Honorata estaria se declarando não tão virtuosa assim, colocando em risco sua honra e moral e não se enquadrando no modelo de boa mulher.
Além do mais, de acordo com Careli, “uma mulher que por sua beleza fosse alvo de disputa masculina representava o perigo da presença de duelos, brigas... que ameaçavam a normalidade social almejada, bem como davam um poder à mulher que não era compatível com os limites a ela socialmente atribuídos”[16]. Talvez por isso, Honorata negasse sua postura de iniciativa, pois sobre ela já pesaria, indiretamente, a culpa pelo assassinato; aos nossos olhos, no entanto, ela não só teria rompido com essas fronteiras de comportamento destinado às mulheres pela iniciativa de convidar Honório para dançar, como também o fez por, ao causar a disputa entre os homens e exercer um poder sobre eles, não praticando o ideal de passividade disseminado, mesmo que – em termos de discurso – ela negasse essa pretensa autonomia.
No desenrolar do caso, foram inquiridas duas testemunhas no processo: Amália e Maria Leopoldina, ambas amigas do acusado, que foram com ele para o baile. As moças, ao serem inquiridas sobre seus ofícios, declararam-se profissionais de serviço doméstico. Marçal Nunes Garcia, no entanto, ao ser questionado o porquê dele ter dado uma adaga a Amália para esta guardar, afirmou ser perigoso não ter armas em tais casas, nos levando a acreditar que a profissão das moças não era a de serviços domésticos e sim de prostituta.
Mas por que teriam elas omitido seus verdadeiros ofícios? Segundo Arend, “durante o século XIX, a elite procurava ‘regulamentar’ as práticas sexuais da população segundo os seus padrões. Através do discurso e da prática médica, da atuação do judiciário, do discurso higienista da imprensa, [de novas práticas para se brincar o carnaval], etc essa elite difundia a idéia do ‘sexo dentro da legalidade do matrimônio’, ou junto das relações ‘estáveis’”[17]. Ao haverem elas preterido seu real ofício, Amália e Maria Leopoldina, nos dão a idéia de terem introjetado alguns desses valores difundidos pela elite em relação à sexualidade.
Segundo Careli, tal negação era recorrente nos inquéritos e processos-crime, sendo escasso o número de meretrizes neles[18]. Moreira explica esse fato dizendo que: “primeiro, muitas dessas profissionais, deviam assumir a categoria de ‘serviços domésticos’ negando suas atividades como ‘mulheres de má nota’. Além disso, as próprias autoridades, num período em que a moralização pelo trabalho’ já vinha sendo pregada para sanar a causa da maioria dos crimes, negava-se a dar o status de profissão a tais práticas, preferindo qualificações genéricas como ‘serviço doméstico’, ‘sem trabalho’, etc..[19]
Honorata, Amália e Maria Leopoldina, mulheres cujas ocupações as colocavam em lugares considerados inferiores na disposição dos espaços sociais – a primeira escrava e as demais, possivelmente, meretrizes – são exemplos de que mesmo entre as camadas populares os emblemas e sinais produzidos pela elite se proliferavam, uma vez que em seus discursos, as três procuraram se adequar às expectativas sociais em relação aos comportamentos femininos. Honorata, ao negar sua conduta durante o baile, e Amália e Maria Leopoldina, ao esconderem suas reais profissões, procuraram reproduzir os comportamentos esperados, atestando virtude moral e honradez. Careli, ao investigar inquéritos policiais, processos criminais e crônicas jornalísticas, buscando a caracterização da virtude, expõe “a forma como determinados comportamentos veiculados como ideais, característicos de um dado grupo social, não ficavam restritos ao mesmo, sendo de formas diversas incorporados por indivíduos alheios a ele”[20], como no caso das moças em questão.
Em suas práticas – de autonomia e iniciativa de comportamento em um espaço público e de utilização do sexo fora do casamento, como fonte de renda – Honorata, Amália e Maria Leopoldina transgrediram as condutas que seriam esperadas das mulheres; entretanto, em suas falas, procuraram se adequar aos modelos pré-estabelecidos, aos ideais culturais masculinos em vigor.
“Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”[21], afirmava Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo. Essa construção, feita pela família, pela escola, pela Igreja, estava também sendo promovida pelo carnaval em Porto Alegre no último quartel do século XIX. Ao estipularem novos lugares e comportamentos tidos como adequados para as foliãs, os homens das sociedades carnavalescas estavam contribuindo para uma construção social do que era “ser mulher” e, acima de tudo, ser mulher distinta. Essa construção, embora fosse destinada a uma certa parcela da sociedade era, muitas vezes, apropriadas por outras, que acabavam tendo esses parâmetros como norte, pelo menos quando inquiridas a responder sobre ações.

b)     IRMÃOS GERTUM

Em meados da década de 1880, as tradicionais sociedades carnavalescas da capital – Esmeralda e Venezianos – encontravam-se em uma grave crise. Tanto é que, em 1885, esta deixa de apresentar seus préstitos e realizar seus bailes. Todavia, o modelo de carnaval por elas defendido fora um sucesso, dando origem a novas sociedades como a Germânia, a Floresta Aurora , a Congos entre outras.
O episódio analisado a seguir ocorreu no ano em que a Sociedade Germânia realizou seu préstito de maior sucesso, tendo recebido muitos elogios por parte da imprensa. Apesar do êxito que obteve a Germânia nesse ano, um acontecimento gerou bastante polêmica na ocasião de um baile desta sociedade: foi a utilização de limões de cera contendo ácido sulfúrico sobre uma multidão que se aglomerava defronte ao salão dessa agremiação para assistir ao baile, provocando queimaduras em diversas pessoas e causando danos a roupas e chapéus. Entre os atingidos estavam Lúcio dos Santos Lara, Inácio Rodrigues Vellinho, Adolpho Cardoso, Adolpho Acosta, João Theobaldo Jaeger, entre outros[22]. Entre os feridos, encontrava-se, ainda,  o caixeiro dos Srs. Varncke (Warncke) e Dorken[23]
            A imprensa local definiu tal ato com expressões como “procedimento infame”[24], “péssima brincadeira”[25] e “perversidade”[26], narrando o episódio do seguinte modo:
Na noite de sábado, por ocasião do baile da sociedade Germânia, deu-se um fato inteiramente anormal entre nós e digno da mais severa reprovação.
É o caso que dos telhados de casas fronteiras foram atiradas sobre o povo reunido na rua limões cheios de ácido sulfúrico, cujo conteúdo queimou muitas pessoas, estragou muita roupa e só por um acaso não produziu desastres maiores, como sejam a perda de vista, etc, o que era muito possível.
É uma infâmia sem nome, um gravíssimo crime que aí foi praticado e esperamos da energia da polícia que os criminosos sejam descobertos e punidos, o que nos parece fácil porque não se lida com ácido sulfúrico sem que fiquem vestígios nas mãos e no domicílio. Esperamos enérgicas providências da polícia[27].

            Os acusados de tal cometimento foram os irmãos Hugo e Emílio Gertum, que se encontravam na residência de Alberto Deistel – enquanto este achava-se no baile, juntamente com sua esposa, Frederica Deistel – na rua dos Andradas a fim de assistirem ao baile da Germânia. Segundo depoimento de Frederica Deistel, os dois não podiam ir ao baile pois não eram sócios daquela sociedade, o que demonstra o caráter fechado destes festejos[28]. Como o povo achava-se à frente da janela, impedindo sua visão, ambos teriam atirado os limões com ácido a fim de fazerem com que a multidão se dispersasse. “D’essa diversão brutal resultou ficarem queimadas muitas pessoas – homens, senhoras, crianças, entre estas uma que, segundo nos consta, perdeu a vista”[29]. Após verificar que os limões eram arremessados do sótão da casa de Alberto Deistel[30], “indignado, o povo arremessou-se em massa e em grito sobre a casa querendo apedrejá-la e arrombá-la”[31]. Após uma altercação entre os acusados e o povo – que queria penetrar na casa – o tumulto encerrou com a chegada dos proprietários da residência e da polícia – que tomou nota do nome dois acusados e só. Tal fato resultou na abertura de um processo contra os irmãos Hugo e Emílio Gertum, filhos de Joseph Gertum, proprietário de uma grande casa de moda e instrumentos musicais na Rua da Praia[32].
            Reagindo às acusações e às notas publicadas pela imprensa – especialmente pelo Mercantil – os irmãos Gertrum fizeram publicar uma nota intitulada “os Irmãos Gertum ao público” na sessão livre do periódico A Federação na qual buscaram atestar sua inocência alegando terem “honrosos precedentes de que se orgulham” e que uma testemunha, o Sr. Augusto Gomes, os teria visto fora da casa do Sr. Deistel enquanto o jogo dos limões continuava[33]. Tal nota contradiz diversas testemunhas que, ao longo do processo, afirmaram terem visto Hugo e Emílio Gertum lançarem limões de água forte sobre a população que assistia o baile. Contradiz, também, pelo fato de que, quando a polícia chegou ao local, ambos permaneciam dentro da residência do sr. Deistel.
A despeito disto, juntamente com essa carta assinada pelos irmãos Hugo e Emílio Gertrum, foram publicadas nesse periódico cartas de Herculano dos Santos, Cristiano Kraemer[34] e de Augusto Gomes da Silva referendando o comportamento de ambos[35]. Augusto Gomes da Silva afirmara, inclusive, estar na companhia dos irmãos Gertum enquanto os limões eram jogados. Tais cartas resultaram de uma conversa durante um baile no Club Commercial, durante a qual Adolpho Cardoso – um dos que acusara os irmãos Gertum pelo delito em questão – teria sido interpelado por Kraemer e Herculano sobre os motivos pelos quais os teria acusado. O mesmo afirmara não tê-los visto arremessar os limões, mas dito que estes haviam sido arremessados do sótão da casa na qual ambos se encontravam e como não havia outras pessoas com eles – somente a empregada Hammel – eles, provavelmente, teriam sido os autores.
O periódico A Lente – de Araújo Guerra – também se manifestou sobre o caso do ácido sulfúrico. Apesar de recriminar o fato e de requerer providências por parte da polícia, também tratou de inocentar os irmãos Gertum – “moços incapazes de praticar tal barbaridade” – e as duas famílias envolvidas no caso, “duas respeitáveis famílias que, certamente, não têm a menor culpabilidade pelo fato”[36]. A respeito dos antecedentes dos acusados – apesar de Augusto Gomes da Silva referendar o comportamento de ambos e de Araújo Guerra afirmar que seriam moços incapazes de praticar tal delito – um artigo publicado no jornal A Federação afirma que os envolvidos no caso “têm precedentes que fazem crer sem dificuldades que são capazes de tais atos de perversão moral”[37]
Nesse episódio, podemos observar, portanto, uma rede de contatos entre os participantes das três maiores sociedades carnavalescas de Porto Alegre: Venezianos, Esmeralda e Germânia. O estudo e análise de redes sociais permitem evidenciar que os “indivíduos, dotados de recursos e capacidades propositivas, organizam suas ações nos próprios espaços políticos em função de socializações e mobilizações suscitadas pelo próprio desenvolvimento das redes”[38]. Ele torna-se, assim, um “meio para realizar uma análise estrutural cujo objetivo é mostrar em que a forma da rede é explicativa dos fenômenos analisados”[39] e, através disto, apreender os efeitos produzidos pelas redes, que podem ser “percebidos fora de seu espaço, nas interações com o Estado, a sociedade ou outras instituições representativas”[40].
O caso em questão ocorreu durante um baile da Germânia. Contudo, em um baile do Club Commercial, Cristiano Kraemer – que fizera parte da diretoria da Venezianos – interpelara Adolpho Cardozo em defesa dos irmãos Gertum. Araújo Guerra – proprietário do jornal A Lente e membro da Esmeralda – também saíra em defesa tanto dos acusados quanto de Alberto Deistel, cuja residência fora o palco de tal delito e que era membro da Germânia.
Nas estruturas das redes sociais, percebe-se que as pessoas melhor conectadas “obtêm maiores benefícios pessoais, isto implica supor que as pessoas exitosas o são porque de uma forma ou de outra se encontram melhor posicionadas dentro de uma estrutura de intercâmbio social”[41]. Dessa forma, as redes sociais têm a potencialidade de “gerarem solidariedades e reciprocidades e, portanto, de se constituírem em recursos sociais apropriáveis pelas pessoas e coletividades que interagem em rede”[42]. Isto, por sua vez, gera o que Bourdieu denominou de capital social, pois remete para as “capacidades inscritas nas conexões sociais, que concorrem para a ação comum e para a consecução de benefícios. Tornam possível alcançar determinados fins inatingíveis por indivíduos isolados, se contassem unicamente com seus atributos pessoais, posição de classe ou status. Percebemos que existia uma rede de contatos entre os carnavalescos envolvidos no crime do ácido-sulfúrico. Os irmão Gertum, apesar de muitas testemunhas terem afirmado que os viram atirar os limões, não foram condenados por esse delito. E mais: nos discursos de personagens envolvidos com o universo carnavalesco foram inocentados, demonstrando haver uma rede de solidariedade e reciprocidade entre os agentes que interagiam na rede carnavalesca.
O periódico A Lente, conhecido por suas caricaturas e brincadeiras, publicou uma charge ironizando  o episódio do acido sulfúrico, na qual lia-se o seguinte comentário: “Por fim tivemos ainda os limões de água forte que deixavam um cidadão em colisões dificílimas. E viva o carnaval!”[43].
            No ano seguinte, um caixeiro de José Gertum – pai dos irmãos Hugo, Emílio e Fernando – de nome Plínio foi ferido com duas facadas por um homem de nacionalidade italiana que, ao passar pelo estabelecimento comercial do Sr. Gertum na rua dos Andradas, foi “bisnagado” por algumas pessoas que por ali brincavam. Não tendo gostado da brincadeira, o indivíduo entrou na loja e, acusando o caixeiro Plínio de tê-lo molhado, desferiu-lhe duas facadas nas costas, prostando-o sem vida ao solo. Coincidentemente – ou não – tal evento ocorreu na loja dos pais dos moços que, no ano anterior, foram o centro da polêmica dos limões de cera com ácido sulfúrico.
            Vimos, portanto, o quanto a utilização de processos-crime podem ser ricas fontes para a produção histórica. Por meio deles podemos adentrar em universos que através de outras documentações nos ficariam silenciadas. Conseguimos ouvir as vozes de Honorata, Amália e Maria Leopoldina, mulheres comuns que, usualmente, ficariam à margem da História. Aqui, contudo, essas mulheres puderam ser percebidas: evidenciamos que elas, muitas vezes, transpuseram as fronteiras estipuladas para as mulheres; em outras, no entanto, tentaram se adequar aos ideais culturais divulgados.
            No caso dos irmãos Gertum, as redes de contatos entre os carnavalescos porto-alegrenses ficaram nítidas, demonstrando haver nesse meio redes sociais que articuladas possibilitavam o alcance para os indivíduos de determinado fim, no caso a absolvição dos Gertum, que isolados seria impossível, mesmo sendo eles filhos de uma “boa família” porto-alegrense.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ARAND, Sílvia. Um olhar sobre a família popular porto-alegrense (1886-1906). Porto Alegre: UFRGS, Dissertação de Mestrado, 1994.
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo I: a experiência vivida. V. 2. São Paulo: Difel, 1967, p.9.
CARELI, Sandra.Texto e contexto: Virtude e Comportamento Sexual Adequado às Mulheres na Visão da Imprensa Porto-Alegrense da Segunda Metade do Século XIX.  Porto Alegre: Dissertação de Mestrado, UFRGS, 1997.
CASTRO, Carmem Lúcia. Ferro de Brasa, Tacho de Cobre, Puxados úmidos: cotidiano das mulheres escravizadas em Porto Alegre (século XIX). Porto Alegre: Dissertação de mestrado/PUCRS, 1994.
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque.  São Paulo: Brasiliense, 1986.
GANS, Magda. Presença teuta em Porto Alegre no século XIX (1850 – 1889). Porto Alegre: Editora da UFRGS/ANPUH/RS, 2004.
LAZZARI, Alexandre. Coisas para o povo não fazer: carnaval em Porto Alegre (1870-1915). Campinas: Editora da Unicamp/Cecult, 2001.
MANESCHY, Maria Cristina Maneschy; KLOVDAHL,Alden. Redes de associações de grupos camponeses na Amazônia Oriental (Brasil): fontes de capital social? REDES- Revista hispana para el análisis de redes sociales, Vol. 12, N. 4, Junio 2007,disponible em http://revista-redes.rediris.es.
MARTELETO, Maria Regina. Análise de redes sociais – aplicação nos estudos de transferência da informação. Ci. Inf., Brasília, v. 30, n. 1, p. 71-81, jan./abr. 2001.
PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe. Florianópolis: Ed da UFSC, 1994.
VELÁSQUEZ, AlejandrO; MARÍN, Luís Rey. El valor agregado de las redes sociales: propuesta metodológica para el análisis del capital social. REDES- Revista hispana para el análisis de redes sociales Vol.13, N.5, Diciembre 2007, disponible em http://revista-redes.rediris.es.
WEBER, Beatriz. Códigos de Posturas e Regulamentação do Convívio Social em Porto Alegre no Século XIX. Porto Alegre:UFRGS, Dissertação de Mestrado, 1992.

FONTES:
A Federação.
A Lente.
A Reforma.
Jornal do Commercio.
O Século.
Processo –crime n.2846, maço 175, Arquivo Público
Processo-crime nº1449, maço 55, Júri-Sumário, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul.
 “Os limões de ácido sulfúrico e seus arremessadores”. Exposição sobre o sumário crime por queixa de Lúcio dos Santos Lara, Ignácio Rodrigues Velhinho, João Teobaldo Jaeger, Antonio Becker, Adolpho Cordozo, Ildefonso Guterres, Julio Becker, José Antonio Adolpho Acosta, Ildefonso Ferreira de Azevedo Lopes contra os irmão Hugo e Emílio Gertrum. Artigos  publicado na Federação. Porto Alegre. Oficina Tipográfica da Federação, 1885.
Livro de Registros de Posturas Municipais de 1829 a 1888.4 dez 1829.“Posturas Policiaes da Câmara Municipal da cidade de Porto Alegre aprovadas pelo Conselho Geral da Província”. Porto Alegre, Typ. Do Commercio, 1847 (anexadas ao Livro de Registros das Posturas Municipais de 1829 até 1888). AHPA






[1]LAZZARI, Alexandre. Coisas para o povo não fazer: carnaval em Porto Alegre (1870-1915). Campinas: Editora da Unicamp/Cecult, 2001, p. 69.
[2] Ibid., p.89.
[3] Em 1847, através do Código de Posturas Municipais, a brincadeira foi proibida, tendo sido estipuladas multas para quem desobedecesse. Livro de Registros de Posturas Municipais de 1829 a 1888.4 dez 1829.“Posturas Policiaes da Câmara Municipal da cidade de Porto Alegre aprovadas pelo Conselho Geral da Província”. Porto Alegre, Typ. Do Commercio, 1847 (anexadas ao Livro de Registros das Posturas Municipais de 1829 até 1888). AHPA. Segundo Weber, esses códigos, formulados pelas autoridades locais, é que “regularão o dia-a dia da população. Estes eram um conjunto de normas que estabeleciam regras de comportamento e convívio para uma determinada comunidade, demonstrando a preocupação com a preservação da ordem e a segurança pública, incluindo aí as relativas á saúde pública”. WEBER, Beatriz. Códigos de Posturas e Regulamentação do Convívio Social em Porto Alegre no Século XIX. Porto Alegre:UFRGS, Dissertação de Mestrado, 1992, p.8. Em decorrência das proibições e multas estabelecidas pelos Códigos de Posturas Municipais  e das epidemias  que a cidade enfrentou, como por exemplo a cólera, a popularidade do entrudo decaiu, acarretando um relativo desaparecimento desta brincadeira - para a o deleite de seus críticos  - até ser novamente jogado pela Ex-marquesa.
[4] CARELI, Sandra. Texto e Contexto: Virtude e comportamento adequados às mulheres na visão da imprensa porto-alegrense da segundo metade do século XIX. Porto Alegre. Dissertação de Mestrado/ UFRGS, 1997, p.281.
[5] Ibid., p.281.
[6] Ibid, p.134.
[7] A Reforma, 14 de fevereiro de 1875.
[8] CARELI, Op. Cit., p. 40.
[9] Há de se mencionar que alguns dos membros das sociedades carnavalescas, além de pertencerem ao Partenon Literário, eram donos ou redatores de muitos dos jornais da cidade, como por exemplo, Achylles Porto Alegre e Miguel Werna.
[10]PEDRO, Joana Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe. Florianópolis: Ed da UFSC, 1994, p.281.
[11] CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque.  São Paulo: Brasiliense, 1986.
[12] Processo-crime nº1449, maço 55, Júri-Sumário, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul.
[13] CASTRO, Carmem Lúcia. Ferro de Brasa, Tacho de Cobre, Puxados úmidos: cotidiano das mulheres escravizadas em Porto Alegre (século XIX). Porto Alegre: Dissertação de mestrado/PUCRS, 1994, p. 66.
[14] CARELI, Op. Cit.,  p.24.
[15] CASTRO, Op. Cit., p.173.
[16] CARELI, Sandra. Op. Cit., p.50.
[17] ARAND, Sílvia. Um olhar sobre a família popular porto-alegrense (1886-1906). Porto Alegre: UFRGS, Dissertação de Mestrado, 1994, p.p.61.
[18]CARELI, Sandra. Op. Cit., p.240
[19]Moreira, Paulo Roberto Staudt.   Entre o deboche e a rapina : os cenários sociais da criminalidade popular em Porto Alegre (1868/1888). Porto Alegre:UFRGS, Dissertação de Mestrado,  1993, p.132.
[20] CARELI, Op. Cit., , p. 278.
[21] BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo I: a experiência vivida. V. 2. São Paulo: Difel, 1967, p.9.
[22] Processo –crime n.2846, maço 175, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul.
[23] Adolpho Dorken comerciante importador, um dos teutos afortunados estabelecidos à rua 7 de setembro. GANS, Magda. Presença teuta em Porto Alegre no século XIX (1850 – 1889). Porto Alegre: Editora da UFRGS/ANPUH/RS, 2004, p. 56.
[24] O Século, 22 de fevereiro de 1885.
[25] Jornal do Commercio, 17 de fevereiro de 1885.
[26] A Federação, 16 de fevereiro de 1885.
[27] A Reforma, 17 de fevereiro de 1885, p.1.
[28] Depoimento de Frederica Deistel. Processo-crime n.2846, maço 175, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul.
[29] A Federação, 16 de fevereiro de 1885.
[30] DIESTEL, ou deistel, Wilhelm Eduard Albert. Importação de ferros e ferro bruto, carvão e máquinas Estabelecimento de porte no Caminho Novo. GANS,Op. Cit.,  p. 52
[31] Processo-crime n. 2846, maço 175, Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul.
[32] GANS, Op. Cit., p. 57.
[33] A Federação, 20 de fevereiro de 1885, p.2.
[34]Comerciante importador (dos EUA: carros, carruagens, motores, máquinas e debulhadores) com estabelecimento na Rua da Praia. GANS, Op. Cit. p. 59
[35]A Federação, 20 de fevereiro de 1885, p.2.
[36] A Lente, 1885.
[37][37]Os limões de ácido sulfúrico e seus arremessadores”. Exposição sobre o sumário crime por queixa de Lúcio dos Santos Lara, Ignácio Rodrigues Velhinho, João Teobaldo Jaeger, Antonio Becker, Adolpho Cordozo, Ildefonso Guterres, Julio Becker, José Antonio Adolpho Acosta, Ildefonso Ferreira de Azevedo Lopes contra os irmão Hugo e Emílio Gertrum. Artigos  publicado na Federação. Porto Alegre. Oficina Tipográfica da Federação, 1885.
[38]MARTELETO, Maria Regina. Análise de redes sociais – aplicação nos estudos de transferência da informação. Ci. Inf., Brasília, v. 30, n. 1, p. 71-81, jan./abr. 2001, p.72
[39] Ibid, p.72.
[40] Ibid, p.72.
[41] VELÁSQUEZ, AlejandrO; MARÍN, Luís Rey. El valor agregado de las redes sociales: propuesta metodológica para el análisis del capital social. REDES- Revista hispana para el análisis de redes sociales Vol.13, N.5, Diciembre 2007, p.32, disponible em http://revista-redes.rediris.es.
[42] MANESCHY, Maria Cristina Maneschy; KLOVDAHL,Alden. Redes de associações de grupos camponeses na Amazônia Oriental (Brasil): fontes de capital social? REDES- Revista hispana para el análisis de redes sociales, Vol. 12, N. 4, Junio 2007, p.21, disponible em http://revista-redes.rediris.es.
[43] A Lente, 1885.

Publicado originalmente em VI Mostra de Pesquisa. Produzindo História a partir de fontes primárias. Mostra de Pesquisa do Arquivo Público do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: CORAG, 2008, p. 281-294