Carnaval Carioca, a matriz do negócio do ócio brasileiro
Edson Farias

RESUMO: O viés analítico adotado neste artigo persegue o modo como repercutiu de maneira decisiva a confluência histórica entre Estado nacional, mercado capitalista e o desenvolvimento da sistemática do entretenimento-turismo no país para o enlace nação e cultura popular. Para isto, acompanha alguns dos episódios que favoreceram o lugar destacado que o carnaval do Rio de Janeiro ocupa entre os ícones de brasilidade. Nesse sentido, sublinham-se os dilemas que atravessam a implantação de uma estrutura social urbano-industrial e de serviços no país, nas décadas iniciais da República, quando são travados debates em torno do tema do povo-nação. Desde aí, o enfoque toma a importância detida pelas redes de produtores de bens e prestadores de serviços referidos ao zoneamento espaço-temporal do lazer no tipo de modulação de tradições lúdico-artísticas populares ocorrida na folia carioca, à medida que esta se define, a um só tempo, emblema do Brasil e produto turístico e de diversão.
PALAVRAS-CHAVE: Carnaval carioca, ócio, negócio, modernização cultural e sociedade-nação.

Em 1985, a partir da leitura dos autores de ficção científica Arthur Clark e Isaac Asimov, além da série cinematográfica Flash Gordon e, principalmente, do filme de Stanley Kubrick, 2001, Uma Odisséia no Espaço, o então dublê de cenógrafo e carnavalesco Fernando Pinto concebeu o enredo 2001 Ziriguidum, um Carnaval nas Estrelas, para o desfile da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel.
Cara à vertente antropofágica do modernismo, reaparece a premissa quanto à relação dialética entre tradição e moderno: no debochado invento tropicalista do carnavalesco, os gêneros populares fariam “todo o universo sambar”. O argumento baseava-se –segundo o próprio autor – no “delírio” de que, no limiar do século XXI, a cultura brasileira atingiria toda a Via Láctea, e então seria realizado um mega carnaval sideral (Veja, 27-02-1985). Na ocasião dessa festa interplanetária, cada um dos nove astros do sistema solar adotaria o específico folguedo popular do país e vestiria, no futuro, o “cosmo de alegria e cor”. Vieram, assim, O Corso dos Mares da Lua, Boi Robô de Plutão, Pirilampos de Marte, Afoxé dos Filhos de Saturno, Pirilampos de Mercúrio, Reisado de Netuno, Frevo Uraniano, Júpiter dos Fandangos Siderais e Rancho da Primavera de Vênus. O encerramento se deu com o setor síntese de toda proposta, a alegoria Nave-Mãe, que exibia os signos de uma folia carioca futurista nas cores verde e amarelo.
Decorrida mais de uma década, o olhar sociológico sobre a picardia carnavalesca de Fernando Pinto parece revelá-la menos um “delírio” e sim algo emblemático de um arranjo abrangente das relações sociais, em que a reordenação, promovida pela modernização em seus diversos níveis, tem como uma das suas contrapartidas o cosmopolitismo como um critério concatenado ao estatuto do consumo e aos estilos de vida implicados ao sentido que dispõe a promessa de satisfação contida nos bens simbólicos de entretenimento. Inscrita nessa condição, talvez fosse mais adequado pensar a brasilidade futurista do carnavalesco investida de legitimidade, pois joga com os sinais de diferenças étnico-históricas ancoradas no sistema das práticas lúdicoartísticas populares brasileiras, não apenas como expoentes de uma identidade nacional e de classe irredutíveis, mas situadas no empenho de distinção no interior de um mesmo campo concorrencial, onde funciona o mercado dos bens de entretenimento. Afinal, o popular-nacional marcante da intervenção do artista-criador é aí intrincado ao trânsito na indústria cultural e no circuito do turismo mundial, numa confluência entre ócio e negócio, tematizada neste artigo.
O caminho trilhado pelo debate da cultura popular no país enfatizou como forças extrínsecas – logo agindo violentamente sobre a dignidade ontológica das práticas do povo – tanto a modernização quanto a industrialização (com a diferenciação que lhes é endógena).
Ambas imporiam, ao se articularem, conflitos de classes relativos às alterações no modo de produção capitalista do país, e esses tomariam de assalto a autenticidade das tradições populares (Farias, 2001, p.1634). Desse modo, tal versão, de características romântico-nacionalistas, tomou de empréstimo ao recorte funcionalista da teoria da modernização a idéia de um evolucionismo englobante de todo movimento de mudança sociocultural, e esse corresponderia a um vórtice proveniente de áreas externas ou às fronteiras nacionais ou à comunidade étnico-racial das classes subalternas. Nos termos postos ao debate, teríamos, de um lado, a nação e sua memória; de outro, as potências de uma cultura sintonizada com o capitalismo internacional, manifesta na volúpia da mídia por novidades, com a finalidade de atender ao tempo da sociedade do consumo em sua propensão à produção de efeitos bombásticos, mas efêmeros (Bosi, 1995, p.7). Sem dúvida, às expensas dos princípios morais que ancoram os argumentos, os mesmos fazem interagir os termos do nacional e do popular com o que entendem ser um ameaçador processo modernizador e civilizador de proporções mundiais, num espaço transnacional de interdependências, fatores motrizes de uma cultura mundial devotada à uniformização.
Há, porém, alternativas analíticas para o reconhecimento desse novo componente. Creio estarem os novos parâmetros para a conceituação de cultura, em seus muitos planos, no interior dessa outra territorialidade, onde o quarteto do entretenimento (composto na interseção entre cultura de diversão, consumo autonomizado, tecnologia de informação e sistemas de comunicação) co-participa das novas elaborações para a questão do vínculo social. Nos contornos dos arranjos socioestruturais contemporâneos, dispositivos específicos de integração contracenam com a tendência de expansão e consolidação da hegemonia das indústrias culturais e do mercado cultural como instâncias legítimas e dominantes de consagração, veiculação e distribuição dos bens simbólicos na dimensão intersocietal. Considera Renato Ortiz ser essa uma linha de força social com penetrante impacto sobre as referências da identidade nacional e mesmo sobre planos identitários outros, como é o caso da cultura popular. Desse modo, os cânones do autêntico e do encaixamento comunal(consignados pelas matrizes dos imaginários intelectuais romântico e folclorista) perdem sua qualidade heurística, já que o movimento mesmo da realidade sociohistórica deixa em suspenso a perspectiva de âmbitos isolados, autocentrados:
Os meios de comunicação aproximam, e mesclam, o que se encontrava separado. É sintomático que boa parte da discussão sobre cultura de massa versus cultura popular tenha sido travada em torno da questão da homogeneização. Não me interessa aqui criticar a idéia de unicidade cultural; ela é a meu ver equívoca. Entretanto, o próprio debate, ao se estabelecer nesses termos, demonstra que a noção de espaço está em causa. No fundo, subjacente à idéia de uma cultura homogênea e massificada, repousa uma dinâmica que rompe com as particularidades dos mundos voltados sobre si mesmos. A sociedade contemporânea, ao integrar em seu seio diferentes manifestações populares, as retira de suas raízes tradicionais. Por isso, em diversos países, o estudo dos meios de comunicação encontra-se intimamente ligado à problemática da nação. Tanto nos Estados Unidos quanto na América Latina, o rádio, o cinema e a televisão são vistos como elementos propulsores da identidade nacional. Pouco a pouco, as matrizes populares cedem lugar a uma realidade mais abrangente. Certamente, muitas delas serão recicladas pela chamada “cultura de massa”; em cada país isso ocorrerá de maneira distinta. No entanto, o mecanismo de integração é análogo. A especificidade dessas culturas é redefinida pelas forças envolventes da sociedade urbano-industrial.
Não é por acaso que a compreensão do que seria cultura popular se modifica. Até então, o termo se aplicava às produções e ao modo de vida das classes populares. Havia, porém, um pressuposto nesse tipo de perspectiva: a existência de um mundo plural, regulado pelas “portas” e “corredores” de cada “casa”, para falarmos como Van Gannep. O advento de formas de expressão como o folhetim, radionovela, telenovela, filmes e histórias em quadrinhos irá redefini-la. A cultura popular contemporânea é, em boa medida, fabricada por esferas especializadas que escapam ao domínio das localidades.
Por isso possui um raio maior de abrangência. Podemos sempre dizer que, na sua difusão, existirão várias leituras e usos sociais dos bens industrializados. Isso é verdade. Mas importa sublinhar que as indústrias culturais deslocam a centralidade que as culturas populares detinham nas sociedades passadas.
A “parte” já não é mais uma unidade autônoma; ela se articula, ou melhor, é atravessada pelo todo. (Ortiz, 1999, p. 44-45). No rastro da referência teórica sugerida por Ortiz, em lugar de uma violência, que age exteriormente com o propósito de perscrutar a configuração “cultura popular e espetáculo”, reconhecemos a indústria cultural como mecanismo que se naturaliza, associado às formações subjetivas e coletivas nos seus modos de exteriorização. Trata-se de uma compilação possível no andamento de incorporação do entretenimento como saber social, entronizado como esquema de categorias de apreensão e classificação da realidade. Desde aí se vai decidindo a nova orientação do sistema das práticas, nos seus enquadramentos institucionais e simbólicos.
Nesse sentido, a centralidade analítica estará aqui em observar o complexo produtor e consumidor de mercadorias materiais e imateriais, articulado a uma abrangente estrutura social de fronteiras indefinidas, urbano-industrial e de serviços (a sociedade de consumidores), mas nos atravessamentos e entrecruzamentos vinculados à consolidação do mercado de entretenimento e turismo no país, no curso de uma longa duração histórica. Sob a luz dessa premissa, a cultura popular comparece como uma rubrica e um significado, isto é, textos identitários cujos sentidos são efeitos de significação obtidos mediante as negociações entre grupos e indivíduos no terreno histórico de específico encadeamento societal. Para o que nos interessa neste artigo, cotejaremos primeiramente os fatores tecidos na conformação do nexo contemporâneo estabelecido entre o lugar institucional da cultura popular e a produção e o consumo de diversão, indagando o vínculo inexorável desses com a questão nacional. O contexto urbano carioca será priorizado no prosseguimento da análise, levando-se em conta o dado pioneiro dessa cidade na trajetória de engendramentos ocorridos em vários planos decisivos para a formação da sociedade-nação brasileira e, por isso mesmo, para a expansão das instituições da modernidade no país, sejam aquelas político-administrativas, sejam as intelectual-científicas, ou, ainda, as inseridas nos esquemas da comunicação social e do entretenimento[1].
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Em grande medida, a conexão histórica entre Estado-nação, mercado e a sistemática do entretenimento-turismo, permanece elíptica no entendimento da maneira como alguns aspectos lúdicos populares penetraram e ganharam proeminência, quando se trata de efetivar um sentimento inscrito na idéia de brasilidade, no curso do país já emancipado do século XX. Vejo na seguinte convergência uma alternativa analítica de compreensão desse encaminhamento. De um lado, parece estar justamente o enlace das demandas de integração dos magotes humanos, potencializados pela dinâmica urbano-industrial e de serviços, com o postulado democrático universalista, inserido na questão nacional com o advento do regime republicano. Por outro, estão as vicissitudes no plano simbólico e institucional, no instante em que há mútuas interferências do vínculo integração-igualdade com aquelas estilizações culturais implementadas no cenário urbano da então capital do país, que encontram, no carnaval, um desfecho sintético.
Procurarei entender como, pelo eixo lúdico-artístico e ao adquirirem visibilidade, muitas das práticas identificadas ao segmento popular dos símbolos foram encadeadas em ajustes tanto com o ideário carnavalesco quanto com as prerrogativas das estratégias discursivas implicadas à nação e, assim, detiveram, também, uma participação no processo de modernização cultural no país, integrando atualmente o comércio de signos e espaços.
Ao se falar de modernização, o que está em debate é o sentido da conduta no qual a agência humana autodeclina sobre o seu lugar no fluxo do tempo, o que requer a consciência da grande variedade de papéis existentes, para além daqueles limitados, locais, familiares e comunitários. E, é exatamente nos entrecruzamentos civilizatórios ocorridos no Brasil, com impactos no valor conferido ao ócio, que chama a atenção a função modernizadora desse último na modelação específica das pulsões humanas, contribuindo para o estabelecimento de determinado zoneamento das temporalidades, em consonância com a especialização técnica dos espaços. Ainda permanece obscuro, portanto, o quanto esse ajuste interviu, tanto para a distinguir como para concatenar as esferas da produção do conhecimento e do trabalho àquela referente à cultura e ao lazer, no andamento das modernizações das relações sociais, mas à luz da sociedade-nação como parâmetro de organização da vida coletiva. Isso ocorreu na esteira de uma confluência na qual a participação dos símbolos e das práticas culturais identificadas aos segmentos subalternos etnicamente distinguidos foi marcante na sedimentação de signos da brasilidade, no cotidiano de tão heteróclitos grupos humanos – um enlace intersubjetivo, transpassado pelos imperativos sistêmicos do mercado e do Estado e, na contrapartida, pela interface do comércio de bens simbólicos com as tecnologias de comunicação. A triangulação entre nação, modernidade e estrutura urbano-industrial e de serviços – argumento – se notabiliza como básica ao desenho de um popular-nacional brasileiro, esboçado no limiar do século XX.
A interface sugerida acima, contudo, precisa ser reconhecida considerando-se o contexto de interdependências que, naquele instante, inseria em um outro estágio de problematizações o tema das sociedades-nação. Porque, na contramão do primado racionalista (elementar ou ao ideário republicano de nação, herdado do Iluminismo, ou à prerrogativa de viabilidade econômica como preconizavam os liberais), para alguns comentadores, os caminhos dos movimentos nacionais, no Ocidente e noutras áreas, desde a metade final do século XIX, ao se afastarem dos domínios franco-britânicos, deram ênfase cada vez maior à origem comum, ao pertencimento e à posse de um mesmo patrimônio lingüístico e histórico-cultural. Foi algo que marcou uma guinada rumo à valoração do povo-étnico, pois afinal passara a ser considerado esse o modo como as pessoas comuns incorporavam o credo nacionalista (Hobsbawm, 1989, p.63). As raízes desse povo foram identificadas nos focos vernaculares, reveladores de uma comunidade originária, alvo das investidas etnográficas dos folcloristas e também dos historiadores da nação. Tal nacionalismo esteve sempre mais correlacionado aos ditames do romantismo populista, sendo esse o defensor do princípio vital da ação e da exasperação dos sentimentos autênticos, das emoções, em desacordo com o que seria expressivo daquela racionalidade sancionadora de comportamentos mais laboriosos, comedidos e instrumentais.
Justamente nas primeiras décadas do século vinte, no Brasil, alguns quadros políticos e intelectuais incluem a mesma valoração na discussão em torno da formação da nação, após a sedimentação institucional do Estado, promovida ao longo do século anterior, durante a vigência do regime imperial. Os círculos de elite se deparavam com os impasses gerados tanto pela modernização da sociedade, com a adoção crescente do viés do industrialismo como fórmula de desenvolvimento econômico, quanto pelo redimensionamento da idéia de povo na conformação do ente povo-nação brasileiro. A temática em pauta englobava modernidade, modernização, modernismo estético e nacionalismo. O problema consistia na difícil redefinição da categoria do popular, à medida que a ideologia do nacional vai dela depender para a obtenção de uma imagem homogênea do país como Estado-nação. Isso considerando o dilema herdado dos intelectuais da lendária geração de 1870, o qual se definia, de um lado, pela valoração atribuída à ruptura com as idiossincrasias de um passado colonial e, de outro, por identificar parcelas significativas e básicas desse “povo” com esse mesmo passado a ser superado.
Àquela altura do regime republicano, nos anos vinte do século passado, os círculos de intelectuais e políticos ocupados do dilema eram contemporâneos da efetivação de grupos de elites e facções de classes comprometidas com o dueto Estado e mercado, no rastro de movimentos de monopolização que intensificam os respectivos recortes das esferas da política, da economia e da cultura, desde o século XIX. O debate a respeito da sintonia entre modernidade e nação trazia implícito, portanto, o desenho de um novo arranjo socioestrutural, embora não se tratasse da superação efetiva da heterogeneidade dos elementos oriundos do antigo regime colonial, mas implicava o aumento das pressões visando a ressignificá-los, na medida em que se queria submetê-los aos parâmetros de uma ordem altamente unificada. Isso porque, fazendo uso de um tipo-ideal, em tal arranjo (a sociedade urbano-industrial e de serviços) especificam-se as transformações no plano produtivo, onde o conhecimento e o domínio da natureza são agora decisivos para o modo de socialidade, em obediência ao caráter volátil da aquisição de riqueza, tendo sua contrapartida seja numa geometria vertical da estratificação social, seja na aceleração da comunicação entre os âmbitos cindidos. O exercício da comunicabilidade eficiente corresponde à imposição da unidade simbólica exigida aos quadros humanos embutidos no contexto nacional e no ingresso deles em uma nova sistemática cultural, a qual cobra dos símbolos seu deslocamento na direção de compor uma atmosfera cosmopolita de significação, na medida em que uma cultura nacional granjeia o status de referente-mor da identidade coletiva da comunidade de sentido, instaurada sobre terreno sociohumano tão heterogêneo, ainda que sob jugo da soberania estatal (Gellner, 2000, p. 114-120).
Nesses termos, a ascendência das facções urbanas político-econômicas e culturais no equilíbrio de poder nacional, no Brasil, comprometidas com uma concepção de mundo orientada para a intervenção e transformação dos recursos naturais e culturais, revelava uma racionalização de ordem mais geral das imagens de mundo. O quadro institucionalizado de valores é cada vez mais tributário do modo como a racionalidade cognitivo-instrumental alcança primazia na correlação com os sistemas monetários e de poder, como mecanismos de coordenação das práticas. No diapasão do mesmo movimento de expansão do ordenamento estatal e do mercado, as modernizações deslanchadas continham, entre as suas manifestações, o problema do consentimento em relação ao comando exercido por essas elites sobre o conjunto territorial e simbólico brasileiro. Em outras palavras, a dominação racional-legal e o estatuto de um saber laico letrado colocavam em foco novos primados de fidelidade.
A nação constitui, então, o parâmetro para a formação de uma configuração “eu-nós” das relações sociais supostas na forja de um alinhamento simbólico e de uma imagem de mundo nacionais; alinhamento e imagem que deveriam sangrar-se como o referente das memórias e disposições humanas situadas no solo pátrio do Estado brasileiro.
Desde então, as temáticas da cultura e da identidade nacionais são acolhidas como centrais, e o nexo Estado e povo-étnico é associado ao imperativo da comunicação abrangente, elevada ao papel fundamental de integração das partes do interior da sistema nacional. Se isso implicava recorrer a núcleos simbólicos irradiadores de consenso herdados do passado colonial, com notáveis apelos sentimentais, na construção dos aportes discursivos nacionalistas tal recorrência não pode ser reconhecida como um mero acoplar instrumental de móveis étnico-históricos tradicionais ao projeto nacional modernizador, de caráter tão-somente político-econômico. Até porque a fusão entre a idéia de soberania do Estado central e o primado de unidade simbólica da nação exige artifícios de mediação que apontam planos outros de interdependências, como a importância conferida à distribuição de bens materiais que ocorre na esteira do incremento da regulação capitalista das trocas, com nodal acento das concatenações e reavaliações de símbolos proporcionados na esfera cultural e com a ampliação do circuito laico monetário e profissionalizado dos seus bens, como pretendo demonstrar a seguir.
Meu argumento se define exatamente em considerar a proximidade estabelecida entre ócio e negócio na festa carnavalesca, nas condições postas para a então capital da República, no início do século XX, como fator com peremptória ingerência sobre as margens de manobra da sincronia entre Estado-nação e cultura popular no Brasil, pela natureza própria do processo de modernização que lhe é intrínseco. O alvo é o peso adquirido pela conjunção entre as esferas da cultura laica e do consumo de bens culturais e de diversão, no que tange ao movimento de modernização, com repercussões sobre a formação dos sujeitos e também na definição dos limites estruturais de algumas das práticas humanas, definidas como linhas de ação lúdico-artísticas. Algo assim remete à história e aos modos e disposições para produzir e consumir bens simbólicos, além dos estatutos dos gostos, e às estratégias de comunicação nas sociedades urbanas modernas, atravessadas por movimentos de modernização cultural. Nesses movimentos, memórias são continuamente transliteradas no ajuste com as tecnologias de reprodução em larga escala da audioalidade, oralidade e visualidade concertadas ao mercado capitalista de mercadorias, sob a égide conferida ao dinheiro, nas trocas ordenadas pela divisão social das atividades.
Igualmente, o mesmo contexto interativo-processual viceja a hegemonia de valores referidos à autonomia dos indivíduos, em conjunto com a diferenciação institucional dos nichos das experiências humanas, dotadas de autoridades e racionalidades específicas.
Desse modo, a opção metodológica deste estudo privilegia a sociohistoricização, observando o movimento de institucionalização que teceu o carnaval como um gênero de diversão e lazer. O gênero inscreve um conjunto específico de disposições, com o fim de possibilitar uma estabilidade necessária para o ato expressivo-comunicativo (Martín-Barbero, 1987, p. 239-242). A noção de gênero apreende o processo em que as linguagens são elaboradas e reelaboradas, dentro do contrato de sentido estabelecido pelos interlocutores, no qual a criação subjetiva e as interferências sociais confrontam-se e complementam-se de acordo com as vicissitudes históricas que as conformam, numa teia de múltiplos relacionamentos, e, por outro lado, as atividades ganham concretude em objetividades dotadas de estilos, de individualidade. O “evento”, como uma “perfomance”, portanto, assume uma forma, na medida em que freqüenta uma estrutura que o torna inteligível. Porém essa é re-escalonada pelo trabalho mesmo de constituir obras, numa dialética entre as contingências e uma racionalidade, definindo os limites de significação de um acontecimento como historicidade (Ricoeur, 1983, p.49-51).
O olhar sobre a constituição do carnaval do Rio de Janeiro como gênero cultural – podemos admitir – contribui para a compreensão da dinâmica social na qual a racionalização em pauta (isto é, determinado movimento de sistematização das condutas humanas, posto na contrapartida da montagem de uma economia das emoções, intrínseco à modelagem das pulsões humanas e em obediência ao grau de coalescência, pressão mútua e síntese funcional, ostentado pelo encadeamento intergeracional de relações sociais) abarca a interface de interesses materiais e ideais com a montagem de específica ordem legítima, e essa passa historicamente por alterações nos planos normativos de fundamentação dos domínios das práticas. Em outras palavras, a problemática que envolve a “folia” carioca, nação e modernidade, no Brasil, é heurística, já que permite acessar a maneira como se deu o realinhamento do carnaval com um determinado sistema de valores, constrangendo a conciliação entre orientações com ações e ordens de interpretação da vida, ao chamar a atenção, exatamente, para as conexões entre transformações com impactos no plano simbólico e, ainda, ao modo mesmo como esse último pressiona os limites e alcance desses processos de mudanças intencionadas. Ou seja, permite que os sentidos abrangentes da nação estabeleçam nexos com as motivações dos agentes na atividade do carnaval. Esse mútuo engendrar contribui, inclusive, para a consolidação de um centro capaz de ordenar os sentidos da vida e do pertencimento, segundo uma arquitetura cosmológica, fundada no mito da origem nacional e na delimitação de fronteiras concernentes à comunidade de consciência nacional. Em se tratando da experiência brasileira, a questão em aberto corresponde aos meios e instâncias de aprendizado social que facultaram a inculcação das categorias de entendimento afins com o ordenamento estatal, considerando-se a insipiência do sistema escolar até aquele momento no país[2].  Com vistas a compreender essa racionalização, tomo como corpus histórico e empírico algumas das qualidades relacionais internas ao binômio “ócio e negócio” nas condições do carnaval do Rio de Janeiro, na década de 1930.
Em 1932, atuando junto ao Departamento de Turismo do Distrito Federal, os círculos de elites modernizadoras, reunidas no Touring Club, tomaram como chave da atração de turistas estrangeiros ao país tanto o carnaval do Rio de Janeiro quanto segmentos da geografia local, já trabalhados para fins de paisagismo – desde o Plano Diretor Urbanístico, de 1926[3]. Para implementar a estratégia, fez-se fundamental a apropriação dos festejos, realizada pelo estado no início da década dos trinta, seja através da inserção da brincadeira no patrimônio simbólico da nação, seja pelo reconhecimento turístico da folia. A partir dessa dupla recategorização, as iniciativas incitam a transformação da festa em um circuito de eventos voltados para a promoção da imagem da cidade. As lembranças da cronista Eneida de Moraes são elucidativas:
Em 1932, o Touring Club do Brasil juntava-se à Comissão de Turismo da Prefeitura e promoviam o carnaval de rua. Houve concursos de músicas carnavalescas, ‘dia dos blocos’, corso na Avenida Atlântica, batalhas de confete e inclusive o primeiro baile do Municipal. A Comissão de Turismo mandava pelo navio ‘L’Atlantique’, para a França, quinhentos mil cartazes fazendo a propaganda do carnaval de 1933.” (Moraes; s.d., p. 231).
Salta aos olhos, na reconstrução acima, o quanto Estado e o mercado convergem quanto à prioridade dessa festa na promoção turística do Rio de Janeiro e, por extensão, na síntese da nação. Entretanto, nas iniciativas de ambos agentes, ressoa diretamente o engate de certas práticas definidas como culturais, no zoneamento de um espaço consagrado ao lazer. Portanto, para além da interação, do ordenamento do poder central e do capitalismo, os remanejamentos, na esfera cultural, despontam com igual importância na coordenação das relações sociais mediante um sentido centrípeto.
Em relação ao carnaval, o acoplar das heterogeneidades sociais esteve conectado às transformações agudas na concepção da brincadeira, deslocando-a para o interior do espaço da diversão laica e controlada por especialistas culturais, ancorados no escopo mais cosmopolita da sociabilidade do lazer. Temos, assim, a adequação dos elementos e recursos à modalidade de hegemonia sociocultural que se ia estabelecendo na cidade e no país, com o reforço da sociedade urbano-industrial e de serviços. Basta ver o quanto o critério técnico prevalece no implemento de um circuito monetário e profissionalizado de produção e consumo dos bens carnavalescos. E, para identificar os critérios dessa adequação, a análise necessariamente se volta para o reconhecimento da constelação de fatores intrínsecos à re-acomodação da festa no conjunto urbano, agora situada no plano institucional do entretenimento. Chamo a atenção para o fato de que outros aportes de comercialização são embutidos na folia, na área central da cidade, os quais lhe irão render fundamentos para sua consagração como espaço capacitado a conferir publicidade a imagens, selecionadas de acordo com o critério da diversão das massas. Falo, principalmente, da introdução das companhias de cerveja, como a Brahma, e do crescente interesse na festa revelado por hotéis localizados na então Avenida Central (e em suas imediações). Vejamos, de modo tangencial, um e outro aspecto.
Inaugurada em 1888, a Cervejaria Brahma se consolida como uma importante organização empresarial nas décadas iniciais do século XX. A empresa tem seu patrimônio ampliado, aumentando o número de fábricas e dando implemento a uma agressiva política de aquisição de outras companhias do ramo, além de diversificar os produtos identificados por sua marca. Nesse período, a Brahma começa a compor a cena festiva, na qual o consumo de bebidas e o sentido da situação carnavalesca estão implicados numa identificação, aproximados pela mútua referência aduzida do ideário em torno da alegria e da diversão, nos tórridos dias de verão. Através de leques, máscaras e outros adereços, a marca da companhia populariza significados de um imaginário sobre essa bebida, propalando-a na imagem do elixir da diversão e da sociabilidade excitante.[4] É fundamental compreender a presença das respectivas marcas e produtos nas emissoras de rádio, por exemplo, disponibilizando a base de sustentação publicitária de muitos programas de auditório dedicados à promoção da música de carnaval, nas décadas de trinta e nas imediatamente seguintes. O procedimento do patrocínio fora mister para que a realização de outros eventos ampliasse o cenário da festa, congregando seletivamente a multiplicidade cultural e humana carioca, até brasileira. Os concursos de músicas carnavalescas e a eleição ou a promoção das disputas entre agremiações (blocos, escolas de samba, entre outras) estiveram (e estão!) no bojo das circunstâncias garantidas, em parte, pelo apoio econômico das empresas de bebidas.
Na trilha dos intercruzamentos afins, já na segunda metade da primeira década do século passado, anúncios aparecem em jornais ofertando conforto, segurança e comodidade aos potenciais clientes que se hospedassem em dependências do hotel Rio-Palace para assistir, das sacadas do prédio, a alegria das multidões nas ruas da cidade. O próprio Hotel Avenida, em 1925, oferece suas instalações para as brincadeiras momescas. Eneida de Moraes (1958), em seu estudo sobre a memória do carnaval carioca, mais uma vez assinala que os bailes de máscaras carnavalescas foram introduzidos na cidade em um hotel, o Itália, ainda na primeira metade do século XIX. Já a socióloga Maria Isaura de Queiroz (1992) reconhece nesse episódio o despontar do aburguesamento da folia no país. É certo, assim, que os hotéis se destacaram como elementos de mediação transcultural, em meio à rede societal alongada que se ia tecendo, com o incremento dos transportes regulares de longa distância, ao lado do intensivo translado de instituições e ideários da sociedade urbana européia. A dinâmica impressa advém da percepção dos dirigentes desses estabelecimentos, ao longo do último século, sobre a sensível importância da festa carnavalesca como motor capaz de mobilizar interesses de turistas. O que os levou a organizar concursos de fantasias de luxo em suas dependências, como aquele realizado no Hotel Glória, ou os bailes, tal qual aquele promovido pelo ainda hoje célebre Copacabana Palace. O fato realmente decisivo consiste no significado das intervenções na festa, ou seja, o papel deflagrador de eventos que os hotéis desempenharam, redimensionando o perfil da folia. Capacitaram a inclusão de novas funções, concertando um quadro heterogêneo de agentes. Basicamente atraíram músicos, cantores ou outros personagens paulatinamente celebrados como nodais à tradição carnavalesca da cidade – os desfilantes de fantasias de luxo, por exemplo. Os hotéis integram a cena festiva e forjam um espaço de atuação precário mais importante para agentes ingressantes no mercado de bens de diversão. Trata-se de um espaço igualmente estratégico, ao lado dos jornais, no sentido de conferir visibilidade pública aos artistas da festa. Dessa maneira, tais estabelecimentos passam a compor o sistema de entretenimento e lazer, alargado na cidade ao contar com equipamentos vários (bares, alargado na cidade ao contar com equipamentos vários (bares, restaurantes, casas de show, teatro musical e outros).
Em ambos componentes acima ressaltados, estamos diante de um ajuste material e simbólico com decisiva repercussão sobre os destinos turísticos da festa popular carioca. Pois, de um lado, está o despertar do olhar tanto dos empresários do setor de hotelaria quanto daqueles dos demais setores do comércio de viagens e lazer para o carnaval de rua (ao lado da paisagem idílica da cidade). Vislumbram aí fatores que deveriam ser disponibilizados, como atração de clientes brasileiros e estrangeiros. De outro, há o deslocamento que fixa a festa no tempo social do lazer, recategorizando-a como instante devotado ao êxtase e aos excessos da carne, mas também ao território de uma esfera devotada à auto-realização individual. Igualmente, o mesmo deslocamento viabiliza sua proximidade das práticas mercantis de consumo direto dos produtos ou da propagação das marcas aliadas às noções hedonistas, identificadoras das novas situações da sociabilidade alegre da diversão urbana. Logo, é fundamental reter o trânsito ocorrido no sentido de apreensão do significado da idéia mesma de festa popular, mas à luz das interpelações perpretadas pela comercialização e profissionalização das práticas e símbolos, inscritas no caudal do entretenimento-turismo em formação.
O período que coincide com a instauração do regime republicano e o advento do século XX é – do ponto de vista da disputa entre as instituições inseridas em diferentes esferas de orientação do sentido das experiências humanas –, no Rio de Janeiro, marcado pelo acirramento na competição entre as coordenadas atemporais da Igreja católica e aquelas de características seculares, como a política e, diria, o entretenimento.
A emergência da importância do carnaval no calendário festivo urbano acompanha, traduz e concretiza a competição, na medida da ascendência do folguedo, que promove o destronamento de outras ocasiões semelhantes que têm laços diretos com a dominação religiosa (devido à relação visceral instaurada entre poder temporal e catolicismo, no Império). Basta lembrar que, durante todo o século XIX, as celebrações da festa do divino detinham a centralidade no imaginário festivo na cidade (ver Abreu, 1999).[5] A crescente popularização e o predomínio da folia carnavalesca apresentam ritualmente, no último século, uma outra estrutura social e simbólica cujos alicerces conjugam cultura de diversão, predomínio de um perfil laico e democrático das inserções, ao aumento na proporção de pacificação mediante o monopólio estatal do uso da violência e a hegemonia do capital sobre os arranjos coletivos de reprodução material.
Enfim, a ampla concertação em torno do carnaval oficializado, coadunando instâncias reguladoras das atividades turísticas e do empresariamento dos serviços de hotelaria, comidas e bebidas prontas, mais companhias provedoras de produtos incluídos na cultura da diversão (como a cerveja), em direta consorciação com esquemas publicitários das indústrias culturais e do mercado de agentes artísticos populares, consistiu, naquele momento, na figuração de um estágio já avançado de comprometimentos sociofuncionais. E, ao mesmo tempo, as escolhas dos agentes mutuamente condicionados pela interação carnavalesca serão cruciais na montagem do campo do entretenimento, na versão existente no Rio de Janeiro. Dois eventos são exemplares a respeito. A ênfase da publicidade turística oficial, na década de trinta, incentivada pelo Touring Club, recaiu sobre o Baile de Carnaval Oficial da cidade, organizado desde então para ser realizado anualmente no suntuoso Teatro Municipal – até 1975. Mais tarde, sob auspício de empresas jornalísticas, como a revista O Cruzeiro, e do poder público, inicia-se o procedimento de convidar artistas e várias outras personalidades internacionais para o festejo. Posteriormente, os convidados internacionais foram sendo conduzidos aos camarotes montados na avenida dos desfiles de escolas de samba, para onde se deslocou o centro da folia carioca nos anos sessenta, à medida que o evento ganha formato de um show de rua. A instrumentalização da celebridade gozada pelos convidados mantém, em ambas situações, o mesmo papel de chamar a atenção da mídia sobre a sua presença no carnaval e nas praias do Brasil, sobretudo Copacabana, a fim de potencializar a vinda de visitantes turísticos à cidade (Farias, prelo).
O fato marcante é como a modernização do país, afinada no âmbito do entretenimento- turismo, engata-se aos destinos tomados pelos produtos rubricados como populares, tendo como destaque a festa popular, calcada numa aliança entre grupos e classes de pessoas tão heterogêneas e dispostas de maneira desigual na distribuição dos resultados monetários e simbólicos. Logo, é urgente acrescentar à análise a maneira como a sistemática cultural e de diversão seletivamente recolhe e agrega indivíduos de proveniências socioculturais heteróclitas.
Por isso, cabe recordar que o Baile do Teatro Municipal não estava isolado na ecologia do carnaval carioca. Aproveitando uma tradição que se ia consolidando desde a década de vinte, o Touring Club também estimulou os concursos de músicas carnavalescas (sambas e marchas, principalmente). A partir daí, percebemos o constante entrecruzar da produção musical popular com a emergência e consagração de um campo gerenciado pela indústria cultural, mas com repercussão em âmbitos outros do entretenimento, como o do turismo.
Faz-se fundamental a especificação de um repertório de músicas, o da paisagem carnavalesca, no interior do qual o samba ganha primazia, dando-lhe contornos estéticos. Outra vez aqui, a extensão da esfera e do mercado cultural se nutre do enquadramento nos seus esquemas das novidades fermentadas na cidade. Imediatamente se coloca a indagação a respeito tanto do eixo institucional quanto do quadro de especialistas que alimenta essa realidade festiva de massas no país. O ponto até agora deixado anódino é o encadeamento geracional e de grupos que se torna básico na formação do quadro de especialistas, como também a própria metamorfose da pioneira marcha Abram Alas, composta pela maestrina mestiça Chiquinha Gonzaga, em música de salão, daí vicejando a simbiose desse gênero musical com o mercado fonográfico e com o universo dos ídolos fabricados nos programas de auditório radiofônicos. Trata-se do percurso da estilização inicialmente realizada pela compositora, a partir do ritmo “maxixeado” característico das músicas cantadas por negros, em 1899, até sua consagração como motor da alegria festiva país afora.
Segundo José Ramos Tinhorão, o papel desempenhado pelo ambiente mundano recém-instaurado no Rio de Janeiro, no final do século XIX até as primeiras décadas do século XX, foi crucial como fórum de negociação entre compositores e membros da indústria do disco e do comércio de entretenimento, concentrados nos teatros de revista, chopes berrantes, cafés concertos, cassinos e cabarés, seguindo as pegadas de movimento similar na Europa, durante o século XIX, na linha dos music hall (Tinhorão, 1998, p. 207-236). Ainda nos rastros do mesmo historiador, o deságüe desse caldeirão efervescente da música popular na cidade, fora do universo do carnaval de rua. E, à medida que o ritual, nos anos trinta, imbrica-se aos canais da indústria da cultura, saindo de sua fase embrionária na direção de afirmar um lugar no cotidiano urbano e nacional, a música carnavalesca consistiu no móvel mediador, pois trasladou agentes da brincadeira ao espaço formalizado da produção cultural, mas também foi a base para o cinema, a indústria fonográfica e as emissoras de rádio introduzirem canais de distribuição do carisma da festa pelo ritmo ordinário da vida, no qual pessoas vão se reconhecer como público e celebraram ídolos. Todo esse movimento de mediação cultural, contudo, se fez em conexão com o agudo remanejamento operado no plano simbólico e dos valores acompanhando o processo de urbanização do Rio de Janeiro. Em última instância, a combinação entre uma população de massas concentrada e articulada pelos vasos diversos de interdependências funcionais e da divisão do trabalho social, e ainda pelas vias técnicas de comunicação (e transporte), submete muitos técnicas de comunicação (e transporte), submete muitos dos parâmetros de autocentramento das classes e grupos sociais às demandas de democratização e secularização dos gostos.
Nesse ritmo, os grupos artísticos, de uma maneira geral advindos das classes emergentes na estrutura urbana e sem vínculos com as prerrogativas nobiliárquicas da sociedade da corte do Império, puderam incorporar a sua prestação de serviços de entretenimento nos ambientes das sociabilidades da diversão mundana. E esses eram fermentados pela freqüência das mesmas classes médias. Por outro lado, a atmosfera nacionalista, estendida desde a década de vinte, contribui para a conquista de legitimidade por parte dos produtores de bens culturais populares. Através do já diluído ideário boêmio e romântico, agora redefinido pela avidez do gosto pelas imagens visuais, sonoras e gustativas de apelo sensacional e exótico, era consagrada a estilização que os grupos de status artístico realizavam de símbolos e de práticas até então considerados pouco conspícuos, pois identificados ao burlesco e aos excessos. Afinal, eram oriundos de segmentos marginalizados (como o universo afro-brasileiro). Nacional e popular se fundem diante da expectativa lúdico-artística da diversão, arrolada graças ao recurso à simbologia identificada com as massas urbanas e com suas formações de mesclas culturais, evocando o jogo da excitação e do comedimento corpóreo. O grupo Bando da Lua, que acompanhou muito da trajetória de Carmem Miranda, é bem ilustrativo. A princípio, tratava-se de rapazes de bom nível de instrução formal e com acesso às novidades musicais norte-americanas, mas também com razoável conhecimento dos registros mais eruditos da música européia. Participantes de batalhas de confete e de banhos de mar à fantasia, formaram um grupo musical ocupado com o samba e com as marchas carnavalescas, cujos produtos, pelas redes de vizinhança e parentesco dos seus integrantes, terão entrada seja nas reuniões mais informais da alta burguesia, seja também no convívio do então ditador Getúlio Vargas e de seu círculo de poder.
Na configuração dessa cultura popular urbana, foram imprescindíveis as já assinaladas transformações históricas, aceleradas com o advento do regime republicano e com repercussões sobre a estrutura social e dos valores. O aprofundamento da inserção do país no mercado internacional e a extensão atingida pela concentração urbana, sobretudo no Rio de Janeiro, desde então, foram acompanhados da afirmação dos ideários de progresso material e civilização entre diferentes espectros dos segmentos dominantes. Agora, essas forças sociais hegemônicas identificavam o espólio colonial como obstáculo à elevação do Brasil ao panteão das nações civilizadas. Tais pressões se traduzem em desconfianças em torno das expressões “negras”, num momento em que a cidade conhecia reformulações em sua morfologia humana, contracenando com o aumento significativo da concentração de ex-escravos e seus descendentes, ao lado de amplo contingente de mestiços, em busca de oportunidades para obtenção de meios de sobrevivência, surgidas nas condições ascendentes da produção fabril e das atividades comerciais (Wissenbach, 1998, p. 130). Encerrados nas zonas periféricas de uma cidade que se metropolizava, esses novos segmentos subalternizados mesclam-se na composição de uma rica diversidade sócio-simbólica mas, ao mesmo tempo, viram-se diante da imposição de reposicionamento no contexto das tensões urbanas. Essa reacomodação foi possível, em parte, à medida que o imperativo burguês de espaços laicos devotados ao relacionamento público interfere na experiência citadina. Em linhas gerais, a tática dos subalternizados traduzir-se-ia na recriação dos artefatos simbólicos e no exercício de elaboração de suas identidades socioculturais, transferindo-as para as manifestações nos âmbitos públicos de sociabilidade.
O caráter público assumido pelos cultos religiosos e as práticas híbridas, que combinam o sagrado com a diversão, ambos elaborados no terreno colonial e recriados no âmbito das ruas citadinas, durante o carnaval, no princípio do século, é demonstrativo dessa tática, das quais as crônicas de João do Rio constituem um pioneiro documento de divulgação (ver Rio, 1999, p. 225-242). Da mesma maneira o é o deslocamento das atividades lúdicas para os espaços legítimos à exposição pública dos afetos, redefinidas como práticas artísticas vinculadas ao gênero musical samba, nos zoneamentos do tempo do lazer. Justamente é aquela a instância da vida mundana consagrada à cultura de diversão e ao ambiente profano proporcionado pelas festas de rua (Farias; 1999, p. 177-238). Num diálogo que entrelaçava níveis e grupos sociais de matizes distintos, tratava-se do reciclar de estratos lúdicos musicais no escopo da modernização cultural. No ritmo samba, desembocou a estilização das matrizes culturais, na contrapartida da sua inserção no mercado fonográfico e, desde aí, foi incluído como divertimento sempre mais visível nas sociabilidades de lazer (Sandroni, 2001, p. 117-130).
No estudo sobre o percurso do carnaval carioca entre a Belle Epoque e a era Vargas, empenhada em ressaltar as modalidades de “resistência” das classes subalternas e a circularidade entre os níveis culturais, a historiadora Raquel Soihet (1999) demonstra como a perseguição policial e a crítica de costumes exercida pelos porta-vozes das elites nos jornais contra a música e os instrumentos percusivos e de cordas (como o violão) dos “pobres” estiveram, paradoxalmente, na contraface da popularização das mesmas materialidades e símbolos nos espaços públicos plebeus, à maneira das festas populares. Mas, por já agregar o sentido de festa popular, universalista, laica e democrática, a folia carnavalesca terá ascensão como filtro e cena pública dos encontros socioculturais entre diferentes grupos sociais, compactados no sítio urbano.
No bojo dessa armação, ao longo das primeiras décadas do século XX, com a mão direta do poder estatal e da iniciativa privada voltada para o setor de entretenimento, o carnaval brincado nas ruas centrais da cidade atua na edificação ou ruína de carreiras artísticas, igualmente promovendo sociabilidades em torno de seus agentes. Enfim, o repertório de canções carnavalescas ascende ao status de parâmetro para catalisar e ordenar as substâncias humanas capazes de produzir, gerir e emoldurar a festa popular. Isso porque, no outro lado da popularização dos shows de cassinos (onde a matriz do samba é estilizada de acordo com o modelo dos musicais norte-americanos) e das revistas musicais, a introdução da gravação fonográfica elétrica, simultaneamente à efetivação das emissoras comerciais de rádio, na mesma década, significaram todo um reordenamento sensível no âmbito do espetáculo. A racionalização monetária, técnica e administrativa das empresas prestadoras de serviços de diversão faz interface com a comercialização da música popular em geral, facultando as bases para que a profissão de artista popular ganhe relevância, em acordo com as coerções de uma sociedade de consumidores que emerge em conjunto com a industrialização e a acentuação do predomínio da concentração urbana e metropolitana no país. No entendimento de Lavina Ribeiro, a emergência do sistema radiofônico comercial consistiu na primeira ampla e efetiva referencialidade identitária para uma população em crescimento, mas formatada já na moldura de uma cultura popular de massas. E o popular aqui equivale a um lugar instável de interação, participação e socialização de públicos heterogêneos, termos sintetizados nos gêneros de programas de auditório que privilegiavam os jogos e as competições musicais, em seus formatos lúdicos (Ribeiro, 1998, p. 263).
A “cultura lúdica do espetáculo” conforma, assim, as teias de emoção, enredando empresas de comunicação, patrocinadores, platéias radiofônicas e nação no mesmo zoneamento do lazer. Episódio decisivo nesse desenvolvimento do formato e das linhas mestras organizacionais da festa espetáculo no Rio de Janeiro, os primeiros concursos de música de carnaval surgem na década dos vinte, sendo o mais disputado aquele promovido pela casa fonográfica Edison, naquela época já consolidada como núcleo da reprodução da audioalidade musical popular no país. Em 1930, os Diários Associados, através da revista O Cruzeiro, estabelece também um concurso. Nesse, entre outros, será lançado o compositor e, mais tarde, produtor cultural e comunicador de rádio Ari Barroso (ver Cabral, s.d., p.96). Desde aí, a música carnavalesca vai jogar um papel importante na instauração das sociabilidades em torno da diversão, com o aparecimento dos fãs-clubes, dos concursos de músicas, reis e rainhas do carnaval, entre outros, principalmente com a hegemonia conquistada pelo esquema empresarial implantado na Rádio Nacional, desde de 1940. É desse modo que encaro o fato de que, em torno de nomes de produtores e empresários culturais e de compositores ligados ao universo do show business, passam a orbitar uma constelação de astros e de outros compositores, já ancorados na comercialização dos seus produtos artísticos para uma massa anônima, a partir da qual eram geradas as multidões de foliões, embaladas por marchinhas e sambas. Nesse público, viceja a celebridade de cantoras como Carmem Miranda, Dalva de Oliveira e outras que incluem, em seus repertórios, canções para a “grande festa”. Emilinha Borba e Marlene, por exemplo, ostentavam fãs-clubes enormes e aguerridos na competição pela primazia na farra momesca. Entre esses nomes, o de Carmem Miranda é aquele mais significativo, já que incorpora um personagem que passa a assumir de tal forma o seu papel, que se mostra capaz de concentrar e emoldurar imagem da nação, numa matriz cultural popular e de entretenimento.
A figura de Carmem Miranda constitui uma tipificação que constrange o delineamento dos tipos de inserção das habilidades culturais na imagem da cidade e do país, já que, a partir dela, consagram-se os canais pelos quais o samba é transfigurado, na cena carnavalesca, como ícone turístico telúrico e tropical, incorporado à memória visual, auditiva e audiovisual da cultura popular de massas, tanto pelos espetáculos nos cassinos e pelo cinema quanto em razão do trânsito no mercado fonográfico e nas mídias radiofônica e, depois, televisual. Para a consagração artística de Carmem Miranda concorreram essas – últimas – novas instâncias de legitimação das práticas culturais, as mesmas que iam aproximando planos socioculturais heterogêneos: o local, o nacional e, ainda, o mundial; as condutas formal e informal; a cultura e o turismo. Os analistas costumam enfatizar apenas os laços da cantora com a política cultural nacionalista do Estado Novo, mediante o apoio propiciado à sua carreira pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), ou com a da “boa vizinhança”,implementada pelo governo dos Estados Unidos para a América Latina, durante a Segunda Guerra – o que a teria conduzido aos shows da Broadway e às telas cinematográficas, através dos estúdios de Hollywood (Tota, 2000, p. 99-101). Porém é incontornável a apropriação das suas habilidades artísticas por esses interesses políticos e as interpelações ideológicas das razões de ambos Estados nacionais possuírem como suporte a já estabelecida conexão dos símbolos populares (o samba e a festa momesca) com os mecanismos burocráticos e estéticos presentes na industrialização do simbólico, na combinação entre o imaginário da nação e a memória popular de massa. Isso possibilitou que ela assumisse, inclusive, o posto de símbolo vivo de um Brasil alegre e sensual, racialmente democrático e dado à entrega aos apelos da natureza (ver Mendonça, 1999, p.9-65).
Nesse sentido, a trajetória da artista se fez possível graças a uma tendência deflagrada desde o limiar do século XX no Rio de Janeiro. Aí, o esboço de empresariamento e comercialização dos bens culturais vai estar sempre mais na contrapartida do delineamento de um quadro de produtores artísticos e grupo de status (cantores, compositores, instrumentistas e outras modalidades de músicos) que concorrem entre si, movidos pela profissionalização e pelo sucesso. Mas todos estão apoiados na ênfase posta no reconhecimento das suas habilidades por parte de pessoas pertencentes a um campo diferenciado, composto de especialistas, detentores do monopólio dos recursos físicos e simbólicos destinados à satisfação estética de imensas platéias anônimas, em expansão na cidade e no país – também em outras partes do planeta. Assim a festa – cujas características massivas são estimuladas pela interferência do poder público e da iniciativa empresarial que promove eventos, ou ainda pela produção musical que lhe é destinada – firma-se ela própria como um evento no qual se recriam matrizes culturais do ritual carnavalesco. Torna-se, portanto, além de palco, também o bastidor onde pessoas pleiteiam vagas no mesmo campo de produtores artísticos, interagem para negociar canções, num intercâmbio entre a brincadeira e a formalidade, exigido pelo mercado cultural em ampliação.

Com efeito, é notável um mútuo atravessamento. Porque as tipificações das ações como de ócio – modalizadas pelo significado institucional do entretenimento e aninhadas na brincadeira deflagrada no ritual carnavalesco – estarão agora transformadas em componentes do tempo do lazer, espécie de anti-rotina, como dimensão da ilusão e da não-seriedade, na contraface da dinâmica produtivista e monetarista de equivalências universais da estrutura urbano-industrial e de serviços, embora estejam, também, cada vez mais, embutidas nos ditames técnicos e burocráticos do conglomerado constituído por Estado e mercado. As mesmas tipificações se fizeram partes daquele lugar onde o lúdico está inteirado de maneira inextricável ao passatempo, logo estão doravante controladas pelas instâncias reconhecidas como competentes para produzir, administrar e comercializar a cultura, com seu encadeamento ao turismo e ao mercado de diversão. Ao mesmo tempo, inserida num momento de sedimentação da sistemática cultural e de entretenimento no país, a modelação carnavalesca do lúdico irá avançar como saber social incorporado no fomento dos estágios de aprendizado subjetivo e intersubjetivo. Desse modo, modulando as racionalizações das imagens de mundo, mais que a nomeação de um conjunto de práticas intrínsecas à folia momesca, tornar-se-á uma espécie de pletora de determinado modelo de disposições para o lazer nas condições brasileiras, impregnando outras propensões de exteriorizações lúdico-artísticas populares no país.
Acredito que a importância adquirida pela intimidade compreendeu o canal dessa congruência e síntese, já que, sendo a alteridade consectária e limítrofe das zonas altamente formalizadas da economia política, ou daquelas do saber e da mimesis artístico-cultural, o espaço do ócio íntimo circunscreveu gradualmente as palpitações eróticas e as estilizações dos afetos, irrompendo possibilidades grupais de assimilação, comprometidas com as concessões ao gosto. Enfim, em um esquema de socialização tributário da dinâmica do mercado cultural de bens de circulação ampliada, em um país como o Brasil – onde a cultura de diversão e o pertencimento nacional estiveram correlacionados fortemente pelo encaminhamento carnavalesco das práticas lúdico-artísticas populares –, a conduta nacional penetrou e ganhou substância no plano fugaz do lazer. Tradição brasileira e posturas ambientadas na vida comum se encontram nessa cultura lúdica carnavalesca, sintetizada nos esquemas mercantis do consumo de bens de diversão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decurso deste artigo, estivemos sugerindo não ser condizente reduzir a nação a apenas uma interpelação política da cultura. É evidente que o monopólio do sentido legítimo (conferido pelas instâncias jurídicas e pedagógicas) e do uso da força exercido pelo Estado desempenhou – e ainda tem desempenhado – papel crucial. Contudo a dinâmica centrípeta na qual se inscreve o tipo de pertencimento coletivo nacional resulta de e requer constelações mais amplas para se fazer significativa às pessoas comuns, no horizonte de uma época em que a intensificação dos controles complementa-se, num mesmo diapasão, com o fervilhar dos apelos às emoções plebéias e com os dispositivos de propagação de formação da opinião e sua veiculação por discursos públicos, incentivando o engate de novas linguagens e tecnologias de comunicação com penetração nos espaços da intimidade.
Por isso, os realinhamentos na esfera cultural, no decorrer dos últimos séculos, detêm responsabilidades sobre a continuidade do pertencimento nacional, já que este compreende, também, a presença naqueles momentos nos quais as pessoas julgam desfrutar e expressar suas verdades mais autênticas, isto é, os sentimentos os mais idiossincráticos. A questão em aberto é descrever analiticamente os condicionantes que agem sobre a visibilização e para o reconhecimento desses afetos, canalizando-os. Pelo entrecruzamento de fatores, os quais não é possível apresentar aqui, o zoneamento do lazer alçou lugar central para demandas assim na modernidade. Seus espaços abrigaram elementos aptos à satisfação de pautas de reivindicações norteadas pelas exigências de personalização, em meio à rotina das complexas engrenagens técnico-burocráticas, consagradas como fins em si mesmas.
Sob esse prisma, é inspiradora a institucionalização, ao longo do século XX, de um quadro de valores legítimos – a tradição brasileira – ao qual correspondeu o atravessamento de ritmos de modernizações variados. Na trajetória furtiva dos movimentos, feixes foram compostos, e suas influências se fizeram sentir no próprio intricar da reciclagem de aportes socio-simbólicos herdados da Colônia – as festas e folguedos, com suas linguagens sonoras e gestual-coreográficas –, definidos pela aproximação de fatores antagônicos e arrumados, em arranjos híbridos, com os interesses aninhados nos domínios do dueto Estado e mercado. Desse modo, a memória e as práticas identificadas com as camadas sociais subalternas e, muitas das vezes, etnicamente estigmatizadas não apenas deram suportes aos novos dispositivos de poder, em sintonia com o equilíbrio de forças interno à sociedade moderna emergente e, depois hegemônica. Os símbolos lúdicoartísticos ressignificados pela aura da cultura popular, na esteira mesma do processo que os agregou ao patrimônio nacional, adquiriram o status de marcas indeléveis da nação brasileira. O emaranhado discursivo, que racionalizou, no leito da cultura brasileira, os símbolos lúdico-artísticos, tornou-os tons da aquarela multiétnica de um continente tropical. Porém, se os mesmos artefatos culturais materializam o mito da nação (narrado na sucessão de gerações e de encontros intercivilizatórios), a cena democrática das festas populares, tendo no carnaval seu emblema maior, atualizou a teoria sobre o espírito miscigenado do povo. No entanto, vimos o quanto a montagem do cenário da carnavalidade está em sintonia com transformações ocorridas no plano cultural e nas conglomerações deste com o impulso tomado pelo meio técnico, científico e informacional no país. As transformações decorrentes viabilizaram um senso de comunidade imaginada, descolado diretamente das interações face a face e cada vez mais consubstancial às vivências midiaticamente suscitadas (Mira, 2001, p. 210). A reprodução da audioalidade e das imagens visuais, ao lado da disseminação do leque de serviços referidos ao comércio turístico e de entretenimento, no âmbito urbano, contribuem para o transliterar da maneira como atividades vinculadas ao ócio penetraram, desde o período colonial, a vida brasileira.
Redefinidas como peças de lazer, numa sociedade ascendentemente comprometida com a maximização capitalista do lucro, as práticas lúdico-artísticas populares irão atender a um conjunto outro de demandas, suposto nas novas condições vigentes do sistema de carências, no rastro da hegemonia alcançada pelo industrialismo, pela monetarização das atividades e pelo consumo no território nacional, mas correlacionado com o patamar das interdependências da civilização moderna. Essas demandas estão inscritas no perfil da satisfação de necessidades relativas à exposição pública das emoções, estando a última sempre mais restrita aos zoneamentos do lazer coordenados pelas instâncias mercantis da diversão e incorporados como dispositivos de excitação e relaxamento, com claros propósitos de catarse. Assim, a propensão à produção de bens da cultura popular carnavalesca galgou legitimidade e se entronizou como modelo para práticas afins, no andamento da expansão da estrutura urbano-industrial e de serviços no país, algo possível com o posicionamento dessas peças culturais populares em circuitos translocais e transnacionais de entretenimento-turismo. Esse processo, ao que parece, é sintetizado no aludido “delírio” de Fernando Pinto. Vimos, ali, a folia carioca carnavalizando a Via Láctea e encadeando folguedos brasileiros, todos dispostos num espetáculo mega-festival.
(Recebido para publicação em janeiro de 2003)
(Aceito em junho de 2003)
Artigo publicado em CADERNO CRH, Salvador, n. 38, p. 177-208, jan./jun. 2003

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[1] Entre outros exemplos, vale recordar que, capital da recém-instalada República, o Rio de Janeiro da década dos dez abriga a primeira agência de viagens do país, a Transoceânica, em 1911. Na mesma ocasião, surge a primeira entidade patronal na área de hotelaria. Já no início da década seguinte, surge o primeiro órgão ocupado em desenvolver o setor turístico: a Associação Brasileira de Turismo, posteriormente renomeada de Touring Club, espécie de antecipação para desenvolvimentos posteriores, como o Departamento de Turismo e, mais tarde, a Empresa Brasileira de Turismo (Embratur).
[2] Segundo Bourdieu, a dominação centrípeta exercida pelo ordenamento estatal ultrapassa os limites da legitimidade quanto ao monopólio do uso da violência física, na extensão de umterritório geopolítico. É decisiva para a totalização de capitais, básica para assegurar o poder do Estado, o processo de unificação lingüística e cultural. Para isso, faz-se necessário que parâmetros universalistas compareçam, pois viabilizam a equalização das heterogeneidades socioculturais acumuladas, dividindo-as segundo os esquemas classificatórios oferecidos justamente pelos campos da educação escolar e do jurídico (Bourdieu, 1997, p.91-124).
[3] A confluência entre cultura popular e natureza, na constituição de uma imagem turística doRio de Janeiro e do Brasil, aparece, ainda, por ocasião das comemorações dos 100 anos de Independência, durante a realização da Exposição Internacional do Rio de Janeiro, em  1922. Nesse momento, por iniciativa de órgãos vinculados ao setor turístico e de grupos com ascendência no Estado central, os recursos simbólicos e geográficos da cidade foram projetados visando a reforçar o ideal de um país moderno porém dotado da singularidade de combinar civilização, natureza e tradição. As repercussões dessa escolha definiram a trajetória da modernização turística carioca e brasileira (ver Farias; 2001, p.39 e segs).
[4] Algo sugerido em canções como a seguinte composição do célebre Ari Barroso, gravada em 1935, com vistas ao período da folia: “O Brahma Chope em garrafa/ Querido em todo Brasil/ Corre longe, a banca abafa/ É igualzinho ao de barril/ Chope em garrafa/ Temjusta fama/ É o mesmo Chope/ Chope da Brahma/ Quando o tempo desabafa/ É a Brahma Chope gelado/ De barril ou garrafa/ Desde maio até janeiro/ E de fevereiro a abril/ Chope da Brahma é o primeiro/ De garrafa ou barril/ Quem ao contrário proclama/ Diz uma coisa imbecil/ Inveja do Brahma Chope/ De garrafa e barril”.
[5] Vale ressaltar, entretanto, que, no seu extraordinário estudo, Marta Abreu assinala as alterações civilizatórias com injunções sobre a caracterização da Festa do Divino, aproximando-a tanto do sentido de civilidade e tradição nacional, ao longo período imperial. Observa, ainda, como estas se aliaram à protocomercialização da diversão popular, preparando o terreno para o despontar de um sentido mundano de participação dos públicos e especialização dos agentes administrativos e produtores, no cerne dessa folia. Faça Seo - Curso SEO na Prática