Os Ranchos Carnavalescos e o Prestígio ds Ruas: territorialidades e sociabilidades no carnaval carioca da primeira metadedo século XX
Renata de Sá Gonçalves
O presente artigo trata do duplo movimento que caracterizou a trajetória e circulação dos ranchos nos salões e nas ruas no carnaval carioca da primeira metade do século XX – o de expansão de um conjunto de bairros e subúrbios e a articulação totalizante ao “centro”, marcando a formação da cidade moderna e diversa.
Palavras-chave: ranchos carnavalescos,cultura popular Rio de janeiro

O carnaval das primeiras décadas do século XX no Rio de Janeiro, quando ainda não existiam as escolas de samba,compunha-se de uma enorme heterogeneidade[1]. Várias formas carnavalescas de Janeiro surgiam, se transformavam e desapareciam. Nesse contexto, havia um grande número de pequenas sociedades carnavalescas que eram denominadas clubes, grêmios, grupos, cordões e ranchos.
Entre 1901 e 1910, havia cerca de 500 agremiações registradas entre “cordões”,“ranchos” e “sociedades”, que iam e vinham, mudavam de nome, mudavam densede com freqüência. Para entender os ranchos (pequenas sociedades), devemos tomá-los em relação às outras formas de expressão carnavalescas da época.
Em fins do século XIX, grupos, cordões, sociedades, clubes, foliões avulsos circulavam sem uma organização ou estrutura formalizada. Predominavam as chamadas práticas avulsas, como os sujos e mascarados, e as três grandes sociedades: Fenianos, Tenentes e Democráticos. As brincadeiras do entrudo e os mascarados ocupavam as ruas e as casas da cidade indistintamente, enquanto as três “grandes sociedades”, formada por grupos abastados marcavam um distanciamento fortemente hierárquico entre segmentos sociais.
Os “sujos” eram aqueles foliões quenão estavam filiados a grupo algum, se apresentavam nas ruas autonomamente, sem espaço, dia ou grupo predeterminado. Eram, dentro de uma classificação carnavalesca mais ampla, aqueles que não se adequavam ao sistema dosgrupos.
Os desfiles das grandes sociedades datam de 1859, permanecendo em menor número até meados da década de 1950. Foram, até a segunda década do século XX, a principal expressão carnavalesca. Eram luxuosas e cumpriam um longuíssimo itinerário pela cidade do Rio de Janeiro, saindo de suas sedes no Catete, percorrendo as ruas centrais da cidade durante os três dias de carnaval, atraindo grande número de pessoas às ruas. Moradores de ruas menos centrais endereçavam carta ao Jornal do Brasil, pedindo que as grandes sociedades incluíssem no trajeto a passagem por seu bairro. Os ranchos, embora surgidos ainda no final do século XIX, só começaram a se destacar na primeira década do século XX. Foram progressivamente crescendo em número, sistematização e importância nos carnavais, pois reuniam camadas mais diversas da sociedade e se expandiam pelos bairros e subúrbios.
No século XX, as expressões carnavalescas ganhariam significações em que a idéia de “melhoramento” e transformação em direção ao progresso seriaindicadora de um rechaço aos “mascarados” e ao entrudo, principalmente.
Nas palavras do cronista Orestes Barbosa: Na República, de ano para ano, o carnaval muda para melhor. Estão desaparecendo os mascarados. Desapareceram já o morcego, a morte, o diabinho, o bebê chorão, o urso, o velho e é raro o dominó. O carioca, assim como combate a máscara sem graça, espiritualiza o entrudo, pilhériasó possível na mentalidade colonial. Depois da bacia d’água, veio o limão de cheiro. Ia melhorando.  (Barbosa, 1978: 22).
Diferenciar as manifestações típicas da “mentalidade colonial” (Barbosa,1978), daquelas de mentalidade “republicana tem como suposto uma pretensa “evolução” social. Tendia algumas vezes a uma espécie de evolucionismo carnavalesco em que o improviso individual era tido como prática desprovida de sentido, desordeira, impura, enquanto as organizações coletivas eram mais relevantes, mais “belas”, agregadoras. Os foliões que saíssem “mascarados” ou fantasiados pelas ruas, sem estar necessariamente acompanhados, “sujavam” um sistema moral de classificação e ordenação carnavalesca em que os grupos sociais e as associações tinham lugar privilegiado.
Não podemos afirmar que houvesse fronteiras nítidas amplamente partilhadas entre as diversas manifestações carnavalescas. Entretanto, a convivência entre essas manifestações atravessou décadas e não era caracterizada pela substituição de uma pela outra, mas pela inter-relação entre elas. Nessa classificação carnavalesca, o cordão foi entendido como uma manifestação mais livre, desorganizada, barulhenta. As grandes sociedades, por outro lado, eram associações tidas como das “elites”, bem organizadas, mas com pouca participação dos grupos sociais em geral. Os “ranchos” eram tidos como grupos mais “populares”, “acessíveis” e que competiam de forma justa entre si. Eram mediados pelos cronistas carnavalescos[2] que publicavam nos jornais a foto ou desenho de seus estandartes e seus licenciamentos, além de divulgar seus ensaios, festas e bailes e informações como endereço de suas sedes, seus presidentes, diretores e demais membros. Os ranchos posicionaram-se, como intermediários, entre os grupos “de elite” e os grupos “destituídos de educação e civilidade”, produzindo um carnaval mediado por uma rede de relações sociais com lugar para os cronistas, os comerciantes, a polícia, os músicos, os artesãos, as tias baianas, além das camadas populares dos bairros e subúrbios.
Nos salões
Uma análise mais detida das atividades “internas” e “externas” dos ranchos nos fará perceber a conotação valorativa e moral que elas podiam ganhar, expressiva das regulações vigentes à época.Além disso, mostrará que o caráter moral dessas práticas está diretamente relacionado ao grau de adesão à experiência urbana a suas prerrogativas de civilidade e ordenamento.
Segundo o cronista Vagalume, nos salões das agremiações familiares e das sociedades genuinamente carnavalescas, com apurado gosto decorados e cheios de até os mais retraídos também se atirem às danças, ao prazer, enfim, à pândega.
Para a rua virão os amantílicos dos festejos externos, dos batuques e das cantarolas, fazendo parte dos grotescos e já indispensáveis cordões, que dão a feição mais estridulante e original ao carnaval do Rio de Janeiro. E já,que assim quiseram, que o povo aproveite esse novo ensejo que se lhe oferece para se divertir, para rir e brincar, dando ensanchas à alegria  (Jornal do Brasil, 6 de abril de 1912, p. 6).
Os bailes nos grandes clubes ou grandes sociedades[3] tinham um público restrito. Eram freqüentados normalmente apenas por seus sócios e convidados. Os próprios nomes das sedes como “poleiro”, “caverna” e “castelo”, que designavam, respectivamente, as sedes das três grandes sociedades Fenianos, Tenentes do Diabo e Democráticos, advertiam que seus recintos eram de uso exclusivo de seus sócios e convidados, também apelidados por nomes específicos como “gatos” e “carapicus”.
Já nos “bailes populares”, produzidos por alguns grêmios e clubes pequenos, às vezes em locais alugados, se vendiam ingressos sem a imposição de que o freqüentador tivesse necessariamente vínculos com a sociedade promotora do baile. A realização dos bailes era também um dos itens avaliados pela polícia. As atividades internas e externas, moralmente aprovadas, servia como indicadores do cumprimento das obrigações estatutárias das pequenas sociedades.
Por isso, os ranchos mais conhecidos, com mais sócios, mais recursos e que efetivamente tinham condições de disputar pela vitória nos concursos carnavalescos, realizavam bailes reservados exclusivamente aos seus sócios e convidados, prática semelhante à das grandes sociedades. O funcionamento dessas pequenas sociedades, seus ensaios, competições, premiações, convergia para a construção de sujeitos bem comportados e de “regiões morais” bem qualificadas dentro dos bairros e subúrbios do Rio de Janeiro, significadas positivamente no carnaval da cidade.
Com a noção de “região moral”, o antropólogo Robert Park explica que, dentro da organização que a vida citadina assume espontaneamente, a população tende a se segregar não apenas de acordo com seus interesses, mas conforme seus gostos e seus temperamentos (Park, 1976: 64).
Segundo o autor, cada parte da cidade tomada em separado inevitavelmente se cobre com os sentimentos peculiares à sua população (Id., ibid.:30), desenvolvendo a idéia de que “tipos sociais surgem a partir das interações sutis e vívidas de que têm sido os centros urbanos” (Id., ibid.: 62).
Orestes Barbosa em seu livro Samba nos indica que os bairros são diferentes, assim como aquelas pessoas que os constituem. Nas suas palavras:a cidade temperou a alma do morro, definindo em cada bairro assuas características... O malandro do Estácio não tem os mesmos anseios nem as mesmas causas de mágoa do malandro da favela, o qual, por sua vez, é diferente do malandro dos subúrbios  de  São Cristovão ou Andaraí.  (Barbosa, 1978: 30).
Outro cronista, o Vagalume, nos lembra que os homens dos morros e das escolas do Estácio de Sá do Catete, foram sempre elementos de grande valor dentro do carnaval, dando-lhe animação e fazendo o chamado carnaval regional (Guimarães, 1978: 113).
É esse “carnaval regional” que se faz presente e se estabelece como parte do carnaval da cidade. Os carnavais dos bairros eram, portanto, freqüentes e denotavam uma forma mais ampla de inserção social na cidade.
Transpor a expressão local para o Centro da cidade é intervir nesse Centro. Em meio às associações trabalhistas e religiosas estavam as sociedades recreativas e carnavalescas, igualmente presentes e ativas quanto a seu potencial reivindicativo e articulador.
Nas ruas
Assim, durante mais de meio século, o circuito pela cidade e as paradas dos ranchos em alguns pontos, como o Jornal do Brasil ou os “pontos” das tias,mmostram uma dinâmica territorial e social em que o local de origem – a casa, a sede e o bairro – e a exibição no Centro da cidade – no  Jornal do Brasil e nas ruas – eram igualmente celebrados.
O ano de 1911 foi o primeiro em que o desfile passou a ser na Avenida Central, competitivo, oficializado e patrocinado pelo Jornal do Brasil (Dutra, 1985:14). Nesse ano, houve o primeiro carnaval sob a iluminação de 50 mil lâmpadas elétricas. Em 1912, conseguidas as subvenções oficiais, os grandes desfiles foram em frente ao prédio do  Jornal do Brasil, que acendeu os holofotes de suas torres para que as comissões julgadoras, formadas por homens como Raul Pederneiras, Coelho Netto e Múcio Leão, pudessem apreciá-los.
Em 1913, os ranchos deixariam de se apresentar no Largo de São Domingos para desfilar no Passeio Público (Araújo, 1991) até 1932 quando se transferiram para a Feira de Amostras, espaço indicado pelo então recém-criado Departamento de Turismo da Prefeitura.
Não tendo bons resultados, estabeleceuse que as festas dos ranchos fossem realizadas na Quinta da Boa Vista.  Em 1933, porém, os ranchos voltaram a desfilar na Avenida Rio Branco, e nesse mesmo ano foi criada a Associação dos Ranchos Carnavalescos.
Em 1957, a cronista Eneida enumerou 11 ranchos que desfilariam pela Avenida Rio Branco na segunda-feira de carnaval: Aliados de Quintino, Inocentes de Catumbi, Unidos do Cunha, Unidos  do Mo ro do Pinto,  Unidos  de Quintino, Resedá, Índios do Leme Azulões da Torre, Aliança de Quintino, União dos Caçadores, Tomara que Chova. (Eneida, 1958: 143).
Com os desfiles oficializados e sendoa segunda-feira de carnaval “o dia dos ranchos” – as delimitações sociais ficam ainda mais claras. Delimitados o espaço para os desfiles – a Avenida Rio Branco – e o dia – a segunda-feira –, os participantes também seguiam um regulamento acordado entre representantes dos ranchos e a Polícia.
O pertencimento às pequenas sociedades em seus bairros aponta tanto paraa distinção promovida entre grupos como para a distinção dos próprios sujeitos que se constituem como pessoas “melhores”, se comparados àqueles que se divertiam com o jogo de limões-decheiro ou o entrudo, brincantes que não se organizavam “ordeiramente” segundo as classificações sociais da época. Os ranchos em seus bairros se constroem tanto em relação às demais manifestações mais “permissivas” e “desorganizadas”, quanto em relação à idéia de pertencimento à “cidade”.
O que está sendo colocado em evidência é a capacidade de se constituírem enquanto grupos organizados, reconhecidos e articulados com níveis sociais distintos, formando redes sociais amplas. E, além disso, estabelecem seus lugares na organização social urbana partilhando da construção e reconhecimento de identidades de bairro.
De modo análogo, a força de simbolização centrípeta da cidade do Rio de Janeiro fez com que o “Centro” se estabelecesse como um espaço privilegiado de trocas sociais em que os bairros e subúrbios eram apresentados e instaurados como “regiões morais”. Os ranchos passaram a representar tais bairros, se distinguindo mais claramente de outros grupos, apresentando uma estrutura formalizada com componentes musicais, de dança, de cortejo e de disciplina.
Tais particularidades tanto diferenciavam os ranchos no contexto da cidade quanto os qualificavam como “populares” moralmente positivados. Essa coletividade regulada viabilizava a manifestação da particularidade, incentivava o “brilho”, o “deslumbramento”, a inventividade individual e a originalidade. Os ranchos carnavalescos foram os primeiros grupos a se apresentar no carnaval com músicas próprias. Foram eles os primeiros a incluir o enredo, o cortejo linear e a formalizar uma estrutura de ensaios e desfiles que serviria, segundo alguns autores, de modelo para as escolas de samba. Assim, esse modelo, além de assinalar uma diferenciação moral, sugeria parâmetros de definições artísticas e estéticas, seguindo um padrão próprio e criativo de organização associativa e organização de desfile.  Inseriam-se, portanto, dentro de uma visão mais modernizante da cultura popular.
Assim, dois valores centrais, que conformavam o “modo de vida urbano”, emergiram daí. De um lado, os ranchos fornecem uma visão da cidade como totalidade integrada. De outro, indicam uma ênfase ou valor dados ao “princípio igualitário” com suas premissas de gradação/ordenação, como nos concursos promovidos entre sociedades carnavalescas.
A relação dinâmica de negociação e celebração dessas agremiações de bairro e a sua articulação nos desfiles com o centro fundamentaram a construção artística e cultural dos ranchos na cidade, com seus múltiplos planos e dimensões. (Da Matta, 1979: 67), dando-lhes lugar de destaque numa suposta “hierarquia de valores das tradições populares”.
Internamente aos próprios processos populares, como é o caso de afirmação dos ranchos no carnaval, formulam-se as noções do que é a “cultura popular”,o que   é  “tradicional”  e  “moderno”(Cavalcanti, 2001). E, ainda mais, há classificações complexas e problemáticas, e em permanente construção e atualização, do que é mais ou menos tradicional, mais ou menos autêntico e mais ou menos popular. Dessa forma, os próprios atores dos processos populares operam mecanismos de classificação do grande conjunto das expressões populares, revelando níveis de valoração dispostos em oposições e também em hierarquias de qualificação.
Os cronistas que examinamos apontam que, na segunda metade do século XX, os ranchos não tinham mais tanta representatividade e “decaíram”. Os autores não se contentam em explicar o fim dos ranchos por uma substituição, superação ou simplesmente “transformação” dessa forma carnavalesca em outra, as escolas de samba emergentes. Em geral, a decadência dos ranchos é atribuída a uma falta de apoio dos comerciantes, do poder público e também dos próprios grupos, que apresentavam desfiles cada vez mais custosos. A esse respeito, a cronista Eneida assinalou que os ranchos estão parados no tempo, não compreenderam a evolução de tudo e de todos. Têm uma dignidade carnavalesca exacerbada e não admitem que se mude nada. Quando foi proposta uma mudança, pelo menos para usar orquestra própria e não as alugadas, que só dão dívidas a todos eles, foi um Deus-nos-acuda, ficaram indignados (jornal Última Hora, Rio de Janeiro, 27 de abril de 1971).
Poderíamos afirmar, como Eneida, que uma “dignidade carnavalesca exacerbada” fez com que os ranchos não se transformassem e não tivessem conseguido resolver a tensão entre aspectos internos e externos, não os articulando e, de alguma   forma ,   tendo  seu   fim pela radicalização de seu rigor e “dignidade”.
Distintamente do viés romântico de compreensão dos ranchos, notamos que essa tensão é hoje revivida e atualizada pelo carnaval das escolas de samba. As escolas de samba contemporâneas, desse ponto de vista, em muito se assemelham aos ranchos da primeira metade do século. Absorvem e expressam as relações sociais na cidade de forma similar, mais do que gostariam os “saudosistas” ou os “românticos” que preferem anunciar “a beleza do morto” (Certeau,1 9 8 9 ) .
Acredito, contradizendo as abordagens mais puristas da cultura popular, que as escolas de samba desempenham, a seu modo, o papel de integração, articulação e promoção de conflitos e soluções, que foi iniciado e já era realizado pelos ranchos carnavalescos.
Logo, há também abertura para outra interpretação, ainda mais larga das expressões populares, em que a “transformação”, ponto comum entre os autores, teria apontado não para um processo de “decadência” dos ranchos, mas para a perpetuação de um “elo emocional” nas escolas de samba, compreendidas, nesse sentido, como uma atualização dos ranchos. Paralelamente, poderíamos ver nas tentativas de perpetuação dos ranchos, tal qual no “passado”, a atualização de um anseio social de compartilhamento amplo, proporcionado por uma expressão carnavalesca que, absorvendo e expressando amplamente uma coletividade, “totalizava” a cidade, articulando uma vasta rede de relações sociais, em oposição à maior fragmentação e incapacidade de constituição dessa totalidade em uma única forma de expressão carnavalesca nos dias atuais.
Tendo sido os ranchos e as escolas, com seu grande potencial totalizador, representativos e articuladores de um grande número de atores sociais, as iniciativas de “revitalização” de formas antigas de carnaval não devem ser entendidas como um “núcleo duro de resistência” ou como um empreendimento de “saudosistas” deslocados.
O percurso de estruturação dessa forma específica de carnaval nos levou a identificar os ranchos como uma organização social e simbólica exemplar cujo processo de formalização aponta para a complexidade do processo de formação da cidade, de valores e “estilos de vida” urbanos e de redes de sociabilidades (Velho, 1994). A festa carnavalesca, como vimos, é heterogênea e diversa. Ela é, aliás, movimentada pelas ambigüidades desse princípio inclusivo e tenso em que todos, por mais diferentes e distantes que sejam, partilham de uma mesma festa, requisitando e marcando seus “lugares”.
O “prestígio da rua”, expressão de Gilberto Freyre, apontava que já no Brasil Império havia, nas cidades, o estabelecimento de um espaço de democratização e participação mais amplo em queatores sociais estariam colocados em permamente diálogo.  Em Sobrados e Mocambos (1977), o autor buscou compreender a “formação do povo brasileiro” e o desenvolvimento das relações sociais nas cidades por meio de marcos físicos, territoriais, socialmente construídos. A partir da caracterização da formação do patriarcado rural e a partir de finais do século XVIII, seu declínio ou seu prolongamento no patriarcado menos severo dos senhores dos sobrados urbanos e semi-urbanos, Freyre sinalizou para um novo sistema de “relações sociais” em que a “rua” assumia um lugar de destaque. O autor buscou identificar as territorialidades, dando ênfase à oposição entre “a casa e a rua”. Oposição que seria, posteriormente, referenciada por outros tantos autores (cf. Da Matta, 1979).
            A “cultura das ruas”, como sinaliza Velloso (2004), ainda é, no século XXI, viva e especialmente colocada no carnaval. A autora indica quemo sambódromo – associado aos tempos da globalização, ao espetáculo-exportação é freqüentemente contraposto ao carnaval derua, identificado com a verdadeira face do carioca”  (Velloso, 2004:90) .
A autora cita Ricardo Cravo Albin, jornalista que, em artigo,[4] argumenta haver atualmente uma retomada da velha tradição dos blocos carnavalescos – como os antigos blocos “Cacique de Ramos”, “Bafo da Onça”, “Boêmios denIrajá” – somados à formação de novos grupos na Zona Sul – como “Monobloco” e “Imprensa que eu gamo”. Tais iniciativas remarcam a “geografia afetivocultural das ruas cariocas” (id., ibid.).
Entendemos desse modo, que a iniciativa do “Rancho Flor do Sereno” se nessa retomada da “velha tradição”, da “geografia afetivo-cultural das ruas cariocas” em que a Avenida do Sambódromo – a Marquês de Sapucaí –, localizada no Centro da cidade, não é amúnica via a ser tomada pelas pessoas nos dias de carnaval. A presença de blocos nos subúrbios, nos bairros das zonas Sul e Norte e do rancho na Avenida Atlântica, situada na “beira-mar” do maior dos bairros da cidade do Rio de Janeiro, vem ressignificar uma interessante configuração urbana e social no Rio de Janeiro do início do século XXI, em que a circulação pelas ruas tem ainda grande prestígio.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BARBOSA, Orestes.  Samba: sua história, seus poetas, seus músicos e seus cantores. Rio de Janeiro: Funarte, 1978.
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CERTEAU, Michel de e JULIA, Dominique. A beleza do morto: o conceito de “cultura popular”. In: REVEL, Jacques.  A invenção da sociedade. Lisboa: Difel, 1989.
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
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FREYRE, Gilberto. Sobrados e mocambos. Rio de Janeiro/Brasília: José Olympio/MEC, 1977 .
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GUIMARÃES, Francisco (Vagalume).  Na roda do samba. Rio de Janeiro: Funarte, 1978.
VELHO, Gilberto.  Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
VELLOSO, Monica Pimenta. A cultura das ruas (1900-1930). Rio de Janeiro: Edições
Casa de Rui Barbosa, 2004.
Renata de Sá Gonçalves é pesquisadora do Iphan-Minc, mestre em antropologia e doutoranda pelo PPGSA/IFCS/UFRJ





[1]Este artigo retoma algumas das questões abordadas na dissertação de mestrado “Os ranchos pedem passagem” (Gonçalves,2000 ) .
[2] As pesquisas realizadas por folclorista e cronistas carnavalescos foram pioneiras no que se refere à tematização do carnaval como objeto de estudo. No entanto, os folcloristas abordaram esse tema através de uma visão das culturas populares mais “comunitária”, ao passo que os cronistas repórteres valorizaram uma dimensão mais moderna e conflitiva da formação do carnaval na cidade (Gonçalves, 2003).
[3] A respeito das grandes sociedades e o carnaval carioca no século XIX, ver Ferreira,2005.
[4] Artigo intitulado “Pimenta no carnaval”, publicado no jornal O Globo de 11 de fevereiro de 2002. Apud Velloso, 2002. Seo na Pratica - Curso de SEO


Artigo publicado em Textos escolhidos de cultura e arte populares, Rio de Janeiro,
v. 3, n. 1, p. 71-80, 2006.72

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