Thiago Silva de Amorim Jesus
Professor do Curso de Dança e
Coordenador do Núcleo de Folclore do Centro de Artes da UFPEL-
RS;
Doutorando em Ciências da Linguagem
do Programa dePós-Graduação em Ciências da
Linguagem/UNISUL-SC
Resumo
O estudo aborda a condição do carnaval
como um ritual contemporâneo, versando
sobre os desfiles de rua de Uruguaiana e Pelotas (Rio Grande do Sul),
tomando por referência o período do carnaval de rua de 2008. Para tanto, o
artigo, que propõe uma reflexão teórica sobre o rito carnavalesco, está
orientado pela apreensão das características peculiares que engendram a configuração
e organização dos desfiles de rua do carnaval nestas cidades do sul do Brasil.
Palavras-Chave: Carnaval de Rua –
Contemporaneidade – Sul do Brasil
O carnaval como rito contemporâneo
Um dos eventos de maior
abrangência e repercussão do Brasil é o Carnaval, festa realizada em todas as
regiões do país e que assume um grau de mobilização nacional de relevante
impacto na sociedade brasileira, adquirindo algumas características próprias de
acordo com o local e o grupo que realiza e que ocupa desde salões e clubes
sociais até as ruas, avenidas e praias das mais distintas cidades.Roberto Da
Matta, antropólogo de significativa pesquisa sobre as manifestações populares
brasileiras, faz uma relevante contribuição sobre a análise desta festa
popular com a publicação, dentre outros trabalhos, da obra Carnavais, Malandros
e Heróis. Conforme o autor explica neste texto:
No carnaval, todo um
conjunto de fatores sociais e históricos é combinado e recombinado para
realizar o que percebemos como o carnaval antigo ou moderno, do interior e da
capital, do Norte ou do Sul, dos ricos e dos pobres. Mas não se pode esquecer
que isso ocorre desse modo porque todas essas situações são poderosamente
dominadas pela idéia de que aqui temos um momento especial: fora do tempo e do
espaço, marcado por ações invertidas; personagens, gestos e roupas características.
(DA MATTA, 1997, p. 29)
O carnaval, segundo Da
Matta, está junto daquelas instituições que nos permitem sentir nossa própria
continuidade como grupo. Diferentemente do futebol, no carnaval, explica,
tem-se a vantagem de ser apenas festa e ficar acima dos resultados, de modo que
a festa nos permite “falarmos com nossa própria consciência na forma de
múltiplos grupos e planos que fazem parte do nosso universo e sistema”. (1997, p.30)
Afirmando a condição do
carnaval como um ritual, o autor reforça que o rito pode marcar (marca esta
realizada com determinado estilo) o momento de transformar o particular no
universal e o regional no nacional, assim como servir, na opinião dele, o rito
como um elemento importante de transmissão e reprodução de valores, o que
aproximaria, deste modo, ritual e poder.
Da Matta (1997, p.32)
lembra que uma das características do rito é a presença ou existência de uma
zona focal, um centro, e que apesar do fato do carnaval ser considerado “um
„rito sem dono‟(um festival com múltiplos planos), encontramos quem está mais
perto dos seus centros: da música, do canto, da dança, do foco dos desfiles e
dos gestos que fazem sua harmonização e realidade‟. As zonas focais do desfile
estão, deste modo, vinculadas a elementos de maior destaque dentro da escola de
samba e que, em sua maioria, respondem por quesitos avaliados dentro daquele
contexto como a comissão de frente, o casal de mestre-sala e porta-bandeira, a
portaestandarte, a bateria e sua rainha, os passistas, o intérprete e o
conjunto musical da harmonia, as fantasias de luxo de destaques dos carros
alegóricos e avenida, o presidente e as soberanas e sambistas detentoras de
títulos. No tocante à classificação do carnaval enquanto ritual, ele propõe o
seguinte:
Classifico o carnaval e as festividades do Dia da Independência (ou Dia da Pátria) como rituais nacionais. Isso porque são ritos fundados na possibilidade de dramatizar valores globais, críticos e abrangentes da nossa sociedade. Quando se realiza um ritual nacional toda a sociedade deve estar orientada para o evento centralizador daquela ocasião, com a coletividade “parando” ou mudando radicalmente suas atividades. (abandono do trabalho – feriados nacionais). Carnaval e Dia da Pátria são ritos orientados para toda a ordem nacional e que ajudam a construir e a cristalizar uma identidade nacional. (...)Tanto o carnaval quanto o Dia da Pátria são rituais nacionais e mobilizam a população das cidades onde se realizam, exigindo um tipo de tempo especial, vazio, isto é, sem trabalho, um feriado. Cada momento festivo e extraordinário remete a um grupo ou categoria social (Carnaval, Dia da Pátria e Semana Santa são os rituais de maior duração no Brasil); teríamos, então, um ciclo de festividades que vão do povo ao Estado, passando pela Igreja, numa forma organizatória típica de um sistema muito preocupado com o “cada qual no seu lugar” e o “cada macaco no seu galho”. (DA MATTA, 1997, p. 46-53)
Outro aspecto
importante a ser considerado sobre o carnaval diz respeito ao próprio
calendário de sua realização, tanto no que diz respeito à determinação da data
no período, atrelada ao calendário cristão, assim como à característica noturna
de acontecimento da festa, normalmente através de bailes e desfiles. Sobre tais
questões, Da Matta (1997) traz:
O carnaval situa-se no calendário romano, marcando o período que antecede a aparição de Cristo entre os homens. (...) Ele se situa numa escala cronológica cíclica, que independe de datas fixas. O tempo do carnaval é marcado pelo relacionamento entre Deus e os homens, tendo, por isso mesmo, um sentido universalista e transcendente. Assim, o começo do carnaval perde-se no tempo – estando ligado a toda a humanidade, do mesmo modo que pensar no tempo do carnaval é pensar em termos de categorias abrangentes como o pecado, a morte, a salvação, a mortificação da carne, o sexo e o seu abuso ou contingência. Exatamente por ser definido como um tempo de licença e abuso, o carnaval conduz de modo aberto à focalização de valores que não são somente brasileiros, mas cristãos. A cronologia do carnaval é, assim, uma cronologia cósmica, diretamente relacionada à divindade e a ações que levam à conjunção ou disjunção com os deuses. No carnaval, o ritual é realizado à noite, havendo uma inversão da noite pelo dia, inclusive com a marcação da noite em períodos distintos.
Isso porque as formas de ritualização típicas do carnaval são os bailes (onde quase sempre ocorrem desfiles de fantasias) e os desfiles populares como os das escolas de samba e dos blocos. Como tais desfiles e bailes são realizados à noite, essa fase fica nitidamente marcada, adquirindo um dinamismo inverso ao normal. (p. 53-55)
O espaço de realização
do desfile do ritual do carnaval é a rua e esta passa, durante sua realização,
por uma ressignificação, já que, na relação de oposição à casa, a rua abre mão
de sua impessoalidade diária (“deixa de ser o local desumano das decisões
impessoais”) para tornar-se um lugar de encontro das pessoas, tal qual os
salões acabam por constituir-se em “espaços igualadores de várias posições
sociais” durante os bailes de carnaval, conforme nos esclarece Da Matta (1997).
Dentre as distintas
formas de manifestação através das quais o carnaval se materializa no Brasil,
procuraremos, neste estudo, focar apenas os desfiles de carnaval de rua,
deixando de lado os bailes, trios, concursos e outras formas carnavalescas
tradicionais. O autor nos auxilia a compreender tal diferenciação com a
distinção entre carnaval de rua e carnaval fechado,em que explica:
Uma das características do desfile carnavalesco é que ele faz parte do chamado “carnaval de rua”, em oposição a um carnaval fechado, realizado em clubes, um carnaval realmente caseiro. (...) O “carnaval de rua” , em oposição ou contraste com um “carnaval de clube”, perfaz a segmentação clássica, utilizada todas as vezes que falamos dessa festa. Na rua, o carnaval assume, sobretudo, a forma de um encontro aberto, dominado no Rio de Janeiro pelo desfile das escolas de samba; ao passo que, nos clubes, se trata de um ambiente mais bem marcado, pois o próprio espaço físico é privado. (...) Assim, no carnaval de rua, aberto, os desfiles de escolas de samba ou de blocos provocam um fechamento do espaço carnavalesco, já que aí temos associações de pessoas que se reúnem para promover um desfile. Quando passam, as ruas e avenidas demarcam um público que apenas vê e os desfilantes, que se mostram. (DA MATTA, 1997, p. 108-109)
Tal opção nos orienta,
também, para o estudo contextual de ocorrência do desfile do ritualcarnavalesco em que se apresenta como fator determinante o estudo das escolas
de samba que organizam e participam dos desfiles, bem como, em alguns casos,
também o fazem os blocos carnavalescos. As escolas de samba são organizações
privadas que reúnem pessoas de distintas procedências e situações
sócio-econômicas, inclusive, provenientes das camadas mais baixas e
marginalizadas da sociedade local que, normalmente, compõem um grupo permanente
dentro da escola, segundo faz referência Da Matta (1997) ao exemplo do carnaval
de escolas de samba no Rio de Janeiro.
O desfile de carnaval,
por seu caráter fundamentalmente diverso, acaba por agregar e fomentar uma
inevitável relação entre múltiplas diversidades espelhadas pela sociedade,
compondo de modo surpreendentemente harmônico o cenário dramático montado pela teatralização
carnavalesca. Esta peculiaridade
constitui o que o autor caracteriza como um
desfile polissêmico, em que é possível presenciar “a diversidade na
uniformidade, a homogeneidade na diferença, o pecado no ciclo temporal cósmico
e religioso, a aristocracia de costume da pobreza real dos atores” para a
conjunção de “vários sub-universos simbólicos da sociedade brasileira”.A
inversão de valores, posições, relações de poder apresenta-se como uma
característica importante a ser observada dentro deste contexto.
Como constata Da Matta
(1997), o carnaval é um discurso simbólicoexpressivo sobre a estrutura da nossa
sociedade, que é expresso e manifesto em forma de ritual, onde o princípio da
inversão é o mecanismo predominante (p. 71). Sobre a condição de inversão, ele
traz:
As escolas reúnem pobres e milionários, astros de futebol e do rádio, televisão e cinema, e a população do Rio fica segmentada e dividida segundo suas preferências por essa ou aquela escola, como acontece com o futebol. Além disso, o desfile desses grupos é revestido de estrema pompa, já que se fundamenta na teatralização que tem como tema personagens, ambientes e ações de um período aristocrático ou mítico, tal como esse período é percebido pelos membros das classes dominadas. Chama a atenção, nesses desfiles, a inversão constituída entre o desfilante (um pobre, geralmente negro ou mulato) e a figura que ele representa no desfile (um nobre, um rei, uma figura mitológica) e, ainda, a participação de toda a sociedade inclusiva, seja como juiz, seja como torcedor. Essa teatralização salienta o caráter domesticado da transmutação de pobre em nobre, quando realizada em momentos programados, como ocorre no carnaval. Assim, os ricos (dominantes) não são vistos como ricos (inclusive com suas gradações e variados instrumentos de dominação: dinheiro, poder repressivo, símbolos de status que oscilam, etc.), mas como nobres. Se fossem olhados como ricos (ou seja, burgueses), seriam satirizados e o desfile provavelmente perderia seu caráter domesticado, sinal de fato de uma trégua entre dominados e dominantes. (DA MATTA, 1997, p. 58-59)
Da Matta (1997, p.
62-63) enfatiza a complexidade criada pelos costumes carnavalescos na medida em
que estes colaboram para a formação de “um mundo de mediação, encontro e
compensação moral”, na proporção condizente para engendrar “um campo social
cosmopolita e universal, polissêmico por excelência”. Esta condição, na opinião
do mesmo autor, serve para compor o que ele chama de um
campo social aberto, situado fora da hierarquia, que é capaz de
aglutinar todos os tipos, seres, personagens, categorias e grupos, todos os
valores.
Por congregar “uma
combinação e conjugação de campos simbólicos antagônicos e contraditórios”,
esta festa vem a constituir a própria essência do carnaval como um rito
nacional, segundo define Da Matta (1997), que propõe uma leitura importante do
rito quando diz que „o mundo do carnaval pode ser entendido como o mundo da
metáfora’.
O entendimento do
desfile de carnaval passa, necessariamente, pela apreensão da caracterização da
marcha carnavalesca que constitui o ritual. Como lembra o mesmo pesquisador, os
grupos carnavalescos desfilam dançando e compõem um contexto de visão e
dinamismo para quem observa, em que cada participante realiza “um gesto
diferente de outro dentro de um conjunto de passos convencionais”.
Neste sentido, Da Matta
(1997) faz uma caracterização dos principais elementos da marcha carnavalesca,
que nos propomos a sintetizar brevemente aqui: Como tais elementos, temos
então:
a) um espaço especial: O carnaval requer
um espaço próprio. O centro comercial da cidade fica fechado ao trânsito, de
modo que as pessoas, ligadas ou não às corporações típicas do carnaval – como
os blocos e escolas de samba –, possam ocupá-lo sem problemas. A rua ou avenida
é domesticada.
No carnaval, esse
centro da cidade surge como se fosse uma praça medieval: totalmente tomado pelo
povo que ali anda substituindo os carros, vendo ou brincando o carnaval. O
centro da cidade adquire um movimento próprio.
b) um espaço múltiplo: A multiplicidade
de eventos que ocorrem simultaneamente num mesmo espaço, típica de rituais de
inversão como o carnaval, ajuda a transferir as lealdades mais fortes – da
família, da casa, da classe, etc., essas
identidades sociais permanentes e cotidianas
– para uma situação, um contexto específico que se define como altamente
dramático porque nele ocorrem (entre outras coisas) muitas ações ao mesmo
tempo. No carnaval, no seu espaço típico, o instante supera o tempo e o evento
passa a ser maior do que o sistema que o classifica e lhe empresta um sentido
normativo. Não é por outra coisa que a palavra mais ouvida nesse momento é loucura.
c) um rito sem dono: Além desse espaço
que gera um caminhar despreocupado, sem destino e – por isso mesmo – altamente consciente, ritualizado e alegre,
o carnaval é um momento sem dono, posto que é de todos. “Cada qual brinca como
pode”, pois “o carnaval é de todos”. Realmente, essa talvez seja a única festa
nacional sem um dono. É claro que isso não significa que não existam
regularidades e modos de proceder e fazer no carnaval. O carnaval é múltiplo e
permite o exercício de uma criatividade social extrema. É que nele celebramos
essas coisas difusas e abrangentes, essas coisas abstratas e inclusivas como o
sexo, o prazer, a alegria, o luxo, o canto, a dança, a brincadeira. Tudo isso é
resumido na expressão “brincar o carnaval”. Por tudo isso, o carnaval não tem
dono. Por tudo isso, é do povo.
d)
os grupos do carnaval: Existe no Brasil a suposição de que durante o carnaval
nada do que acontece é sério. No carnaval, então, temos uma inversão
organizatória, pois são os grupos ordenados para “brincar” (ou seja, sambar,
cantar e dançar), isto é, são os grupos da “inconseqüencialidade” que assumem
uma assustadora permanência. Temos nos grupos de carnaval formas de associação
das mais autênticas e espontâneas. São um modo de dialogar com as estruturas de
relações sociais vigentes na realidade brasileira.
É nisso que reside,
provavelmente, sua autenticidade e sua permanência. Além do grande desfile das
escolas de samba do primeiro grupo (o grande desfile), existe também o desfile
de outras organizações – como os blocos, os grupos de frevo, as grandes sociedades
e os ranchos, para não falar dos banhos de mar à fantasia – além dos desfiles
das escolas de samba do segundo e terceiro grupos. Assim, é um erro imaginar
que o desfile do carnaval se resume em apenas um desfile, embora esse “grande
desfile” seja paradigmático.
Carnaval no Sul, sim! Aspectos do rito
popular em Uruguaiana e Pelotas
O estudo teve seu
trabalho de campo realizado nas cidades de Uruguaiana e Pelotas, no Estado do
Rio Grande do Sul, durante o carnaval de 2008. Através de observação participante,
efetuada in loco nos dois lugares, foi possível perceber que se tratam, ambas
as cidades, de dois exemplos de lugares bastante envolvidos com o Carnaval.
Desde o centro das
cidades até os espaços específicos de realização como sambódromo, barracões e
quadras de escolas, notam-se pessoas das mais diversas procedências conversando
sobre o tema, manifestando-se em relação à preferência por uma ou outra agremiação,
fazendo brincadeiras e promessas para o dia do desfile e mesmo sobre a hipótese
de vitória de tal escola ou sua concorrente, tanto em lugares públicos como em
particulares.
Esta condição do
Carnaval tomar as ruas, literalmente, pode ser associada a uma característica
própria do carnaval brasileiro que é levantada por Da Matta (1997). Segundo o
autor, embora exista um local especial para os desfiles das escolas de samba no
carnaval, a rua é o local próprio do ritual, sendo ela (a rua) tomada num
sentido amplo de “oposição à casa”. Ele explica que, no período ritual de
realização do Carnaval, o centro da cidade deixa de ser o “local desumano das
decisões impessoais para se tornar o ponto de encontro da população”.
Os Desfiles de Rua das
Escolas de Samba integram a programação carnavalesca de cada município,
tornando-se a culminância, o ponto alto da festa. Em Uruguaiana, foram
realizadas quatro noites de desfile, incluindo os desfiles do grupo especial,
do grupo de acesso e dos blocos carnavalescos; em Pelotas, cinco noites de
desfile, sendo na primeira semana realizados de quinta a domingo, com os
desfiles das escolas do grupo único, das escolas de samba infantis, dos blocos
e das bandas carnavalescas, encerrando no sábado seguinte, com os desfiles dos
campeões.
O desenvolvimento dos
desfiles seque uma regulamentação prevista pela organização de cada cidade:
existem quesitos de avaliação (bateria, comissão de frente, evolução e
samba-enredo, entre outros) e critérios a serem cumpridos, sendo penalizadas as
agremiações que eventualmente não cumpram.
Os desfiles antecedem
todo um processo de preparação desenvolvido tanto pelas entidades
carnavalescas, como pela comissão organizadora e mesmo pela comunidade local.
Durante o ano, diversas atividades são realizadas em caráter preparatório como
eventos para a escolha das soberanas, lançamento do enredo, do samba-enredo e
dos protótipos das fantasias, coroação da rainha da bateria, entre outros,
fazendo com que a população não esqueça absolutamente do carnaval.
Foram coletados os
dados mediante entrevistas com os sujeitos participantes dos respectivos
desfiles de Carnaval destas cidades e também mediante observações. Através de uma observação participante,
efetuada in loco nos dois lugares, e graças à realização dos desfiles de
carnaval acontecer em datas distintas, foi possível ter uma apreensão de ambos
os contextos, haja vista que houve um acompanhamento pré, durante e
pós-desfiles.
A observação ocorreu,
inclusive, com visitas a escolas de samba, ensaios nas quadras, ensaios
técnicos na avenida, visitas aos barracões, passeio pelos centros das cidades e
visitas a lojas do comércio especializadas em artigos carnavalescos, bem como
contato direto com diferentes carnavalescos e profissionais envolvidos, de
forma mais ou menos direta, com o evento “Carnaval” e os desfiles de rua
propriamente ditos.
O que foi possível
perceber em ambos os contextos é que se tratam, ambas as cidades, de dois
exemplos de lugares bastante envolvidos com o Carnaval. Desde o centro das
cidades até os espaços específicos de realização do Carnaval, como sambódromo,
barracões e quadras de escolas, notam-se pessoas das mais diversas procedências
conversando sobre o tema, manifestando-se em relação à preferência por uma ou
outra agremiação, fazendo brincadeiras e promessas para o dia do desfile e
mesmo sobre a hipótese de vitória de tal escola ou sua concorrente, tanto em
lugares públicos como em particulares.
Deste modo, podemos
observar ambas as cidades gaúchas, no período
de carnaval, ambientadas pela decoração
das ruas do centro da cidade, assim como as lojas do comércio e outras empresas
que simpatizam com a festa ou mesmo vêem nela uma oportunidade comercial para
atrair clientes e turistas, onde estes últimos juntam-se aos moradores locais
nas rodas de conversa e demais atividades preparatórias vinculadas ao evento Carnaval.
A realização dos
desfiles de Carnaval, em 2008, aconteceu, em ambas cidades, fora do período
normal previsto e reservado pelo
calendário nacional. No caso de Uruguaiana, o fato repetiu-se pela
quarta vez consecutiva, uma vez que a cidade já adotou a realização do chamado “Carnaval
Fora de Época”, que acontece normalmente três semanas após a data prevista pelo
calendário tradicional; e no caso de Pelotas, aconteceu pela primeira vez, o
que foi motivado pelo fato da data coincidir com a Festa de Iemanjá , bastante
popular e de envolvimento amplo por parte da comunidade
pelotense.
O espaço de realização
de ambos desfiles nas cidades pesquisadas são bastante semelhantes. Em
Uruguaiana, uma avenida do centro da cidade é destinada para a montagem do
sambódromo e, em Pelotas, próximo ao centro foi construída uma infra-estrutura
própria para a realização de eventos e desfiles de rua, não só para o carnaval.
Trata-se de uma avenida (700m e 300m, respectivamente) em que são dispostos, de
um lado, arquibancadas populares, e, do outro, os camarotes, espaços para
autoridades e o palanque oficial, onde é feita a apresentação do evento.
Ao longo da avenida,
existe montada também uma infra-estrutura de sonorização e de iluminação
especiais, com maior potência, que possam servir ao desfile das escolas de
samba, blocos e demais participantes. Também no decorrer deste espaço, existem
banheiros móveis e estandes para comercialização de alimentação e bebidas, além
de garçons e vendedores ambulantes que ficam comercializando, além destes
gêneros, também fitas, adornos, adereços, sprays de espumas e outros artigos
carnavalescos, temáticos de alguma agremiação ou não.
A realização dos
Desfiles de Carnaval das Escolas de Samba é um ritual que integra a programação
carnavalesca de cada município, tornando-se a culminância, o ponto alto da
festa. Em Uruguaiana, são quatro noites de desfile, de quinta a domingo, com os
desfiles das escolas do grupo especial, do grupo de acesso e dos blocos
carnavalescos; em Pelotas, são cinco noites de desfile, sendo na primeira
semana realizados de quinta a domingo, com os desfiles das escolas do grupo
único, das escolas de samba infantis, dos blocos e das bandas carnavalescas, e
na semana seguinte, especificamente na noite do sábado, acontece o desfiles dos
campeões, etapa que conta com a apresentação de todos os primeiros e segundos
colocados de cada categoria e a entrega da premiação para os vencedores por
categorias e também os prêmios individuais, como melhor intérprete de
samba-enredo, melhor comissão de frente, melhor bateria, melhor samba e melhor
casal de mestresala e porta-bandeira.
Considerações Finais
Um dos aspectos
relevantes deste estudo está orientado pela apreensão das características
peculiares que engendram a configuração e a organização do rito carnavalesco no
sul do Brasil.
O estudo do carnaval do
sul compreende a análise do desfile realizado nos moldes do Carnaval do Rio de
Janeiro, que tem sua projeção nacional (e internacional) notoriamente
influenciadora de outros carnavais pelos diversos cantos do país.
Conforme lembra-nos
Cavalcanti (2001), em seu artigo “O rito e o tempo: a evolução do carnaval
carioca”, da década de 50 para cá, “o desfile das escolas de samba firmouse
como a principal festa do carnaval carioca, espalhando-se como modelo para os
carnavais de diversas cidades brasileiras”.
O desenvolvimento dos
desfiles das duas cidades pesquisadas seque uma regulamentação prevista pela
organização de cada cidade: existem quesitos de avaliação (como bateria,
comissão de frente, evolução e sambaenredo, entre outros) e critérios mínimos a
serem cumpridos pelas agremiações (como o número mínimo de integrantes no geral
e em alguns setores, como bateria e comissão de frente, e cumprimento de
horários e tempos estipulados para início e fim, por exemplo) para que o evento
transcorra conforme previsto.
Vale ressaltar, ainda,
que o período de desfiles carnavalescos é a culminância de todo um processo de
preparação desenvolvido tanto pelas escolas de samba, como pela comissão
organizadora e mesmo pela comunidade local. Durante o todo o ano, uma série de
atividades são realizadas em caráter preparatório ao Carnaval, como eventos
para a escolha de rainhas e soberanas, lançamento do enredo, do samba-enredo e
dos protótipos das fantasias, coroação da rainha da bateria, entre outros.
A pesquisa identificou dois
tipos bem distintos de carnaval, pois Pelotas conserva um estilo carnavalesco
mais tradicional com escolas de samba, blocos burlescos, bandas carnavalescas e
escolas mirins; e Uruguaiana,
diferentemente, segue o modelo carioca de carnaval, propondo inovações constantes associadas ao
estilo consagrado do Carnaval do Rio de Janeiro. Em suma, Uruguaiana e Pelotas
podem ser consideradas realizadoras de dois dos cinco melhores desfiles de rua
do Rio Grande do Sul, atestando sua importância no cenário cultural popular do
Estado com a realização de seus carnavais.
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