Propostas de um Carnaval Moderno em Pernanbuco
(1964-2004)
Francisco Mateus C. Vidal
Mestrando -
Programa de Pós-Graduação em História da UFPE
Resumo:
A cada governo que se estabeleceu no poder,
uma nova identidade cultural precisou ser concebida no sentido de criar a
identificação entre a população e os grupos políticos dominantes. Em
Pernambuco, o carnaval foi de apropriado pelas elites políticas, grupos
empresariais e sociedades letradas, como objeto instrumentalizador de uma
identidade local/nacional nascente. Nos anos subseqüentes ao advento da
República, o controle sobre as manifestações populares para integrar a nova
proposta de identidade do governo foi excessivo. As autoridades criaram
mecanismos de mantença da ordem, utilizando-se do aparato policial, de
sociedades mediadoras dos interesses populares e da própria estrutura dos
brinquedos de rua.
Palavras-chave: Poder, Identidade, Governo.
Abstract:
Every government that
established itself in power, a new cultural identity had to be designed to
create a link between the population and the dominant political groups. In
Pernambuco, the carnival was appropriated by political elites, business groups
and learned societys, as an object capable of instrumentalizing a local /
national identity. In the years subsequent to 1964, the control over popular
events to integrate the new proposal of the government’s identity was
excessive. The authorities created mechanisms for maintenance of order,
making use of police apparatus, mediating organizations of popular interests
and even the structure of the street toys.
Keywords: Power, Identity, Government.
Keywords: Power, Identity, Government.
Um Pouco do que já disse a historiografia:
Atualmente, ao se pensar em cultura pernambucana, quase de modo
instantâneo, o carnaval surge como um de seus ícones de maior destaque.[i] No
entanto, essa imagem não pode ser percebida de forma tão naturalizada quanto
pretenderam fazer parecer os atuais órgãos promotores do carnaval pernambucano,
ao difundirem a representação de que aqui se pode brincar o carnaval “multicultural”,
no qual todas as tendências têm espaço e vez para se manifestarem. A associação
entre o carnaval e as propostas de identidade do “povo” pernambucano
estabeleceu-se através de processos de assimilação e transformação da festa
que, aos poucos, mostrou-se menos uma manifestação espontânea do que um
elemento de controle dos grupos políticos no poder. [ii]
Durante o curso da História da República brasileira, o festejo
carnavalesco ora foi visto como prática a ser reprimida, ora como prática a ser
legitimada no discurso difundido pelo regime republicano, o qual pareceu querer
associar o carnaval e sua suposta democracia ao novo modelo político adotado
pelo Brasil. Em Pernambuco, esse movimento de apropriação da festa momesca
pelos grupos letrados, pelos empresários da cidade e pelos políticos da hora
evidenciou-se com mais força durante o Estado Novo, quando as práticas dos
grupos populares passaram a ser representadas de forma distinta do que era
apresentado nos jornais da cidade do início do século.[iii]
Esse movimento dos grupos políticos no poder, de tentar atrair para sua
proposta de governo elementos e práticas associadas ao cotidiano do grosso da
população, pareceu ligado a uma preocupação de legitimar um novo governo
amparado por uma “nova” identidade local/nacional. Como bem lembrou Renato
Ortiz, o crescimento das discussões sobre a formação cultural brasileira
“sempre” esteve associado ao desenvolvimento das ações políticas de governo.[iv]
Contudo, importa frisar que, apesar das inúmeras tentativas de os grupos
políticos detentores do poder legal, de tentar exercer controle não só sobre o
disciplinamento do carnaval, bem como sobre a forma como o evento era
recepcionado e significado pelos populares, o mesmo não se fez de todo
possível. Isso, porque os espaços de controle regidos por estratégias bem
definidas, em que as diversas esferas do poder parecem ter colaborado para o
exercício da dominação de um grupo sobre outro, não se deu de forma linear,
como se o carnaval fosse a expressão da síntese sócio-cultural dos diversos
grupos sociais existentes em Recife nos anos estudados. Mais que isso, o
carnaval parece ter sido a oportunidade para (des) encontros, através dos quais
as diferenças e semelhanças dos vários modelos culturais em circulação puderam
se suplementar, dialogar, travando uma verdadeira guerra entre sistemas
simbólicos distintos, em que uma proposta de brinquedo tentava sobrepujar-se a
outra.
Assim, o carnaval foi espaço de resistência, também, e não só elemento
sujeito à dominação de uns poucos, como se pode depreender por uma leitura
primeira das fontes. Ainda que estratégias de controle, sobre a forma como os
populares se apropriavam da festa de carnaval estivessem sendo elaboradas, os
grupos “populares” encontraram espaço para (re) elaborar suas práticas, criando
identidades próprias em meio às fissuras de uma identidade pretensamente
oficial. A (re) invenção das representações, divulgadas nos periódicos pelos
foliões recifenses, decorreu da forma como os signos associados aos modelos estatais
do brinquedo foram interpretados, apropriados, em diálogo com o que se viu na
prática cotidiana de um grupo brincante.
Sobre apropriação, insta observar duas concepções diferenciadas que
motivam o debate historiográfico sobre este conceito na atualidade. A primeira
diz respeito às idéias desenvolvidas por Michel Foucault, para quem
“apropriação dos discursos” é um procedimento através do qual os mesmos são
confiscados e determinados por instituições e indivíduos detentores do
poder/saber.
Parece ser a partir deste referencial que os grupos no poder, referidos
acima, tentaram criar mecanismos para orientar a forma como o carnaval e seus
símbolos eram recepcionados pela população recifense de forma coadunada aos
seus interesses. Por outro lado, para enriquecer o debate historiográfico sobre
a questão, Roger Chartier propõe que a apropriação não é determinada como
defendeu Foucault, mas historicamente construída a partir da interação social
entre os sujeitos históricos. [v]
Daí, a asserção pertinente à nova história cultural de que pode até existir uma
tentativa representação homogênea, desde que se considere a possibilidade de
haver recepção variada dos agentes históricos. Dessas múltiplas recepções,
surgiram nos jornais diversas representações, mas nem todas corresponderam ao
que de fato aconteceu, porque são somente representações, e entre elas e a
coisa existiu, como ainda hoje existe, um enorme vácuo de acordo com Chartier.
Assim, o leitor, ao ler as próximas páginas, precisa entender duas
coisas: a primeira é que os grupos políticos no poder impuseram, ou tentaram
impor, no campo do carnaval um modelo de brinquedo estratégico, que pela força
sobressaiu-se como representação oficial da festa em “Pernambuco”, mas que nem
por isso, pode-se deixar de considerar as diversas táticas elaboradas, pelos
populares, discordantes das propostas institucionalizadas do brinquedo, para
driblar a normatização do carnaval, o que quase nunca, sem exageros, foi
possível de ser lido nas fontes, mas se pode verificar pelos indícios de uma
leitura atenta.
O segundo aspecto é que o carnaval também não foi somente o que estava
exposto nas fontes pesquisadas. Mas, outros sim, foi aquilo que, eu, enquanto
leitor pude significar a partir deste texto, porque o sentido das histórias
contadas e representadas nas páginas dos jornais aduzidas a seguir foram
sujeitas a própria significação de quem as leu. Esta é tão somente a minha
significação.
Então, partindo das considerações supracitadas feitas por Roger Chartier,
e entendendo que as representações apresentadas neste trabalho não pretendem
atribuir um significado único ao material estudado, passemos a tentar entender
como se deram os processos de consolidação, negociação, disputa pelo poder
simbólico do carnaval em Recife nos anos estudados.
Carnavais do Poder
Segundo Renato Ortiz, o embate intelectual em torno dos conceitos de
cultura popular, cultura brasileira e identidade nacional tornaram-se
recorrentes nos meios acadêmicos brasileiros a partir da década de 60. Contudo,
esse movimento de discussão acerca dos termos supramencionados é anterior a
esta década. Já no começo do século XX, com a “vitória” do Regime Republicano,
iniciou-se um movimento de busca pela identidade nacional, o qual foi coroado
com o advento do Movimento Modernista. O Brasil deixou de ser visto como uma
Europa Tropical, e os intelectuais da época, não somente eles, mas a própria
sociedade passou a propor um plano político e ideológico de identidade
regional/nacional respaldado na própria história política e econômica do país.
De acordo com o autor acima
mencionado, o crescimento das discussões sobre a formação cultural brasileira
“sempre” esteve associado ao desenvolvimento das ações políticas, de tal forma
que nenhuma política cultural esteve desvinculada das bases ideológicas
defendidas pelos políticos que governaram o país. Nem tampouco, em nenhum
momento da História do Brasil Republicano deixou-se de discutir quais os
elementos identificadores do “povo brasileiro”.
Neste sentido, a gestação da identidade nacional e do sentido de ser
Pernambucano são entremeadas por enredos e tramas dos regimes políticos que se
sucederam no poder. Assim, pode-se dizer que a identidade teve várias facetas,
porque a cada novo governo, um novo jogo de relações políticas pareceu
modificar o dizível, aquilo que era representado acerca da cultura local no
estrangeiro. Dessa forma, travou-se uma “verdadeira guerra” entre as práticas
populares, as representações feitas sobre elas e aquilo que foi silenciado.
Isso, porque nem sempre as representações autorizadas se transformaram em
prática, e nem toda prática se transformou em representação. Muitas vezes, as
representações, em vez de reproduzir práticas, suscitou algo diferente da
prática, já que foram as estratégias de poder a orientar os encontros ou as
divergências entre o visível e o dizível e o contato entre elas.[vi]
Esse poder orientou a construção da
identidade local/nacional, amparada no desenvolvimento de uma memória coletiva,
que buscou, a partir da década de 30, propor a integração política nacional. Os
movimentos culturais foram, indubitavelmente, o elemento coesivo utilizado pelo
Estado na elaboração de um “novo” homem brasileiro. Se na década de 30, o
Estado apropriou-se das práticas populares, a partir da atuação regional dos
interventores, em que cada região colaborou para constituição de uma identidade
nacional[vii];
de 1964 em diante, o movimento de identificação passou a ser centrífugo, sendo
o centro do poder político nacional a orientar as práticas culturais regionais.
De uma forma ou de outra, tanto no Estado Varguista quanto no Estado
Militar, o controle político do país percebeu o potencial articulador que as
manifestações culturais tinham para sedimentar o regime político, criando
diversas estruturas controladoras dos vários setores de produção cultural.
Todavia, em cada um dos momentos supramencionados, existiram peculiaridades que
serviram para legitimar as práticas culturais aceitas e representadas como
unitárias.
Até os anos cinquenta, a Federação Carnavalesca Pernambucana foi a
responsável pela organização do Carnaval em Recife, quando o prefeito Djair
Brindeiro sancionou a lei 3.346[viii],
reservando a organização do evento ao Departamento de Documentação e Cultura. A
nova lei revestiu-se da defesa das “tradições”, prevendo ajuda financeira as
organizações carnavalescas.
Os
recursos destinados ao tríduo momesco foram dotados no orçamento, devendo a
soma ser dividida entre agremiações carnavalescas, iluminação, divulgação,
propaganda e animação dos dias de Momo. Um ano depois de promulgada o
dispositivo normativo referido, a lei foi regulamentada pelo prefeito Pelópidas
de Silveira, o qual estabeleceu o percentual a ser concedido, para cada
categoria de agremiação carnavalesca, e definiu uma comissão supervisora da
organização do carnaval pernambucano, formada por três vereadores, um
representante da FCP, outro da Associação dos Cronistas Carnavalescos e dois
membros a serem escolhidos pelo prefeito da cidade do Recife, todos sob
orientação do Diretor Departamento de Documentação e cultura.
A instauração de um novo governo fez necessária a constituição de uma
nova identidade e, neste sentido, uma permanência: o carnaval em Pernambuco
continuou sendo o articulador de identificação entre o povo e o Estado. Se durante
o período varguista, a prática discursiva em torno da identidade nacional
respaldou-se na identificação das regiões e na sua consequente
individualização, para extrair de cada uma delas aquilo que se pudesse somar ao
todo, com o golpe militar, a questão mudou de foco.
A partir de 1964, os rumos da política nacional foram alterados pelo
Golpe Militar, que resultou na necessária elaboração de novas diretrizes
políticas, econômicas e culturais para a sociedade brasileira. Nesse sentido,
urgiu nos políticos integrantes do Estado a necessidade de reinterpretar as
categorias de nacional e popular. Os planos políticos dos governos subsequentes
ao golpe militar, aparentemente, pretenderam criar uma consciência nacional
capaz de se ligar as diversas existências regionais. Da coletividade ao
individual, de forma que a nação pudesse ser conhecida e integrada por um plano
nacional de cultura, que buscou a construção de uma identidade brasileira
adaptada à nova realidade.
Novas políticas culturais foram definidas, tendo por base a conjuntura
política e econômica pela qual passava o país, em que a produção de uma nova
identidade nacional foi margeada pela estrutura do Sistema Capitalista
brasileiro. Não foi por menos que de 1964 a
1980 houve a expansão da produção e consumo de bens culturais como mercadorias,
em razão da reorientação econômica do país. Essa perspectiva associativa entre
os bens culturais e a sua valoração econômica em escala industrial trouxe
consequências imediatas para produção cultural, porque, ao passo que a
indústria brasileira desenvolveu-se, o mercado interno de produção cultural foi
estimulado.
O aumento das atividades culturais financiadas pelo Estado, que
selecionou entre as práticas culturais populares aquilo que deveria ser
apropriado pela indústria de bens culturais e, assim, reproduzido, denotou uma
opção política dos governantes no poder. O que não era visto com bons olhos
pelo regime militar foi censurado, enquanto o restante passou a ser considerado
um bem de consumo vinculado à imagem do país que se pretendia construir. A
formatação ideológica do país deveria render lucro e proporcionar a manutenção
da ordem. Assim, a tentativa de integração nacional pelo regime militar foi
acompanhada pelo crescente desenvolvimento do capitalismo, o que aumentou o
interesse dos grupos empresários pelos bens culturais vendáveis.
Paulatinamente, estabeleceu-se uma ligação entre os interesses dos grupos
militares e os dos empresários. Os primeiros pretendiam a integração da
população em torno de uma ideologia política; os segundos queriam integralizar
o mercado.
[...] nesses
termos, a questão da censura pode ser melhor compreendida. Os interesses
globais dos empresários da cultura e do Estado são os mesmos, mas topicamente
eles podem diferir. Como a ideologia da segurança nacional é moralista e a dos
empresários, mercadológica, o ato repressor vai incidir sobre a especificidade
do produto.[ix]
Não foi o cinema, as rádios, a televisão ou as manifestações de rua, o
objeto de censura pelo Estado, mas alguns de seus elementos que não
corresponderam à representação pretendida pelo governo brasileiro aos novos
dias da política nacional. Assim, o carnaval, como festa de rua, também foi
censurado pela ordem pública, para poder adequar-se ao regime militar. Novamente, a festa de carnaval foi usada
pelos governantes da situação, para criar espaços de solidariedade do Estado
com a população como aconteceu durante o período Getulista em Pernambuco. Todavia ,
naquele momento, a festa momesca importou, também, pelo retorno econômico que a
mesma podia trazer aos cofres públicos em decorrência da exploração do evento
pela Indústria Cultural.
Desta forma, no curso da história do Brasil pós-64, o carnaval foi
orientado dentro da lógica consumerista, do mercado de bens simbólicos, ao qual
foi agregado à imagem que se pretendeu imprimir ao “povo brasileiro”, como
mecanismo de controle dos ânimos populares pelo Estado. Esse controle foi legitimado, a cada governo
no poder, em
Pernambuco. Os decretos e leis somaram-se para dar forma e
contorno ao que se esperou do carnaval pernambucano na construção de uma
identidade local/nacional coadunada com o desenvolvimento do capitalismo
nacional e internacional. Existiu nos anos subsequentes a 1964, o entendimento,
nas autoridades públicas, de que os centros de lazer e as manifestações
festivas populares eram uma das diversas amostras da vocação do país, à medida
que sedimentavam os laços de solidariedade entre os grupos populares e o
Estado, que se colocou como principal mantenedor do carnaval, dando margem a
concepções de identidade associadas ao lazer e a recreação.[x]
Nesse sentido, durante o primeiro governo do Prefeito Augusto Lucena, este
editou a lei 9.355 de 1964, através da qual se constituiu a Comissão
Organizadora do Carnaval (COC), integrada por representantes da Câmara
Municipal, da Federação Carnavalesca, da Associação de Cronistas Carnavalescos,
Associação Comercial, Federação das Indústrias, Governo do Estado e mais quatro
pessoas escolhidas livremente pelo prefeito, sob a orientação do Secretario de
Educação e Cultura. A nova lei valorizou
o carnaval espetáculo e visou inserir o brinquedo pernambucano na lógica do
Regime Militar e do Sistema Capitalista, sob a organização do Poder Público
local. Para tanto, passou a ser destinado no orçamento municipal 0,1/100% dos
recursos arrecadados para organização da festa, dos quais 60% foram destinados
aos grupos de carnaval. O resto da verba foi destinado ao desenvolvimento de
ações propagandísticas.
O carnaval tornou-se, paulatinamente, um espetáculo para ser visto e
admirado, à medida que a cultura local abriu-se à exploração do capital
estrangeiro. O intercâmbio da cultura pernambucana com outra, em decorrência da
venda da festa momesca como mercadoria, insuflou o carnaval pernambucano de
valores, que foram muito combatidos pela Federação Carnavalesca Pernambucana,
nos anos em que esteve à frente do carnaval.
Os regionalismos saíram da “ordem” do dia, porque eram considerados
entraves para a gestação de uma unidade nacional.
Destarte, as políticas culturais locais foram inclinadas para representar
o modelo de nação proposto, a partir do poder central, em que os costumes, as
crenças, as relações sociais de cada região deram espaço para uma prática
hegemônica advinda do centro, mas que sufocou as diferenças individuais das
regiões em favor de semelhanças superficiais determinadas pelos grupos
políticos no poder. Contudo, esse movimento de supressão do regionalismo não
foi aceito sem resistências. Houve oposições ao modelo imposto, principalmente
por intelectuais regionalistas e por grupos populares defensores da produção
cultural local. Neste diapasão, Gilberto Freyre ganhou notoriedade, porque se
opunha a invasão de valores estrangeiros que, em vez de colaborar para o
desenvolvimento da produção cultural pernambucana, estava-a sucumbindo, a
exemplo do o samba:
O carnaval de
Nice é muito bonito na França; o de Veneza, na Itália; o Carioca, no Rio. No
Recife, matar-se o frevo, o passo, o maracatu, o clube popular, o bloco, a
espontaneidade, para quase oficializar-se o samba, a escola de samba, o
arremedo ou a caricatura do carnaval carioca, chega a ser crime de traição ao
Recife ou a Pernambuco.[xi]
Em 1972, a
lei que regulava o carnaval recifense sofreu novas alterações pela lei 10.537,
de 14 de Setembro de 1972, a
qual determinou que o carnaval deixasse de ser arregimentado pelo COC e
passasse para o direcionamento da Comissão Promotora do Carnaval (CPC),
vinculada à empresa Metropolitana de Turismo – EMETUR. Esta comissão não trouxe
nenhuma grande novidade ao evento. A submissão da festa à EMETUR é reveladora,
no sentido de realçar a cadeia econômica que girava em torno do evento, naquele
momento. O “carnaval participação”, aquele que se podia brincar livremente
pelas ruas da cidade, continuou fora dos planos do governo, enquanto o
“espetáculo” ganhou mais espaço entre os foliões. A festa mudava à medida que o
Sistema Capitalista foi se “desenvolvendo”, aumentando o valor econômico e
político que o carnaval representou para o regime militar.
O processo de atribuição de valor econômico ao carnaval foi acelerado com
a complexização das redes de comunicação, que deixou de divulgar a produção
cultural de cada região como decorrência regional, para tratá-la como produto
nacional. Neste sentido, o carnaval pernambucano, cuja propaganda alcançou
espaço em outros
Estados , deixou de ser difundido pelo país como produto da
cultura local, como se fez durante o Estado Novo, passando a ser o reflexo da
cultura nacional, não somente em razão do valor político que representou, mas
também pelo valor econômico da festa enquanto representante do país no
exterior.
Em 1975, foi elaborado o plano nacional de cultura que norteou as
diretrizes para o desenvolvimento das políticas culturais desenvolvidas pelo
Estado Brasileiro a partir de então. O que fizeram os elaboradores deste plano
foi colocar no papel o que já estava sendo realizado sem planejamento material.
Aos poucos, pode-se perceber pela leitura das fontes que as políticas culturais
elaboradas pelo Estado Militar pretenderam criar vínculos de solidariedades entre
o Estado autoritário e as camadas médias, que serão o alicerce do regime
militar pós-64, além de tornar vendável a produção cultural brasileira.
Em Pernambuco, o Estado incentivou a cultura do carnaval como meio de
arrecadar recursos e possibilitar a integração social, a partir do controle da
festa pelo aparelho Estatal. Neste ínterim, em 1979, a EMETUR foi
transformada em Fundação de Cultura da Cidade do Recife, pela lei 13.535,
sancionada, pelo prefeito Gustavo Krause Sobrinho, em 26 de Abril de 1979. Sua
regulamentação foi dada pelo decreto 11.254 do mesmo ano, colocando a Fundação
sob orientação do Prefeito da Cidade. Essa entidade passou a organizar o
carnaval em Recife a partir de sua sede social no Pátio de São Pedro.
As diretrizes da recém-criada Fundação buscaram restaurar o carnaval
participação em Pernambuco, de modo a eliminar as passarelas e os camarotes,
que mais serviram para os turistas assistirem as manifestações populares do
Estado, com conforto e ostentação, do que para fomentar a prática dos brinquedos
carnavalescos de rua. Assim, os desfiles deixaram de acontecer como um
espetáculo para turista ver, naquele primeiro momento, e a comissão julgadora,
que elegia os melhores do carnaval do ano corrente, desceu do alto dos prédios
e se imiscui ao povo nos cinco pontos da cidade, donde foram julgados e
proclamados os vitoriosos do carnaval. Essa atitude da Fundação não pretendeu desmerecer
a orientação mercadológica do Plano nacional de Cultura, mas quis também
atender as reclamações dos grupos populares que questionaram, nos periódicos da
época, através de cartas e crônicas, a perda do espírito popular no carnaval.
A nova ideia era continuar vendendo o carnaval pernambucano, mas sob o signo
da “tradição’, da festa de rua e das práticas culturais do próprio povo. O
carnaval continuou sendo um bem simbólico vendável sob a representação forjada
de brinquedo popular. As novas representações pretendiam levar o povo às ruas,
menos para serem vistos por turistas do que para se regozijarem, porque, em
assim o fazendo, a representação continuava a criar práticas que vendiam a
imagem do carnaval brasileiro.
Neste sentido, foi mister a associação dos meios de comunicação com o
órgão promotor do carnaval, a partir do estabelecimento de concursos nacionais
de frevos e maracatus, o “Frevança”, que era veiculado pela Rede Globo Nordeste
e, do qual resultava gravação de discos, que eram divulgados por todo país. Era
o estímulo de que o povo precisava: dinheiro como prêmio, reconhecimento público
da prática cultural e fama. O evento tornou-se um acontecimento musical
reconhecido nacionalmente graças à associação com a mídia, que fez com que as
atenções do restante do país se voltassem, ainda que por um único momento do
ano, para uma cidade da região Nordeste.
Dos rádios para a televisão das residências familiares brasileiras, o
carnaval recifense, sua música, seus ritmos, danças, a cultura pernambucana
ganhou o país. Essa nova situação, com a qual se deparou o carnaval
pernambucano, tornou-se mais notória com a frevioca. Tratava-se de uma
adaptação dos trios elétricos baianos para o carnaval pernambucano, o que
prometeu agitar as ruas da cidade, atraindo um número excessivo de turista; Os
promotores do carnaval local apropriaram-se de práticas culturais estrangeiras
para reaviar o espírito participativo do carnaval pernambucano, porque esta era
a representação que mais pareci dar o retorno econômico desejado:
Uma ideia feliz
é essa que se está implantando em veículo de tração motora transformado em
bonde, com orquestra e cantores, na tentativa de, percorrendo as ruas da
cidade, durante o período momesco, animar o carnaval recifense. O velho Recife
de Santo Antônio e São José começou a ferver nesta semana pré-carnavalesca, com
a Frevioca, uma versão pernambucana dos trios elétricos, com vantagens outras
que aos poucos há de pegar. Não há de ter exigido investimentos maiores, pois
tudo se exibe com simplicidade, mas dentro das melhores tradições do carnaval pernambucano.[xii]
Doravante, entre os anos de 1980 e
1983, Recife viveu o carnaval participação, tendo a cidade e o Estado sido
divulgados, através da mídia e de uma articulada campanha publicitária, que
colocou os meios de comunicação como grande parceiros do carnaval, menos porque
queriam ajudar a promover a festa de Momo do que para extrair do evento o
retorno econômico que se sabia ser garantido. O “novo” carnaval pernambucano,
como assim era representado, realçou a articulação entre o capitalismo e a apropriação
deste sistema econômico sobre as festas das massas como forma de reproduzir
valores e de render altas somas de dinheiro. Nos anos seguintes, a Fundação de
Cultura da Cidade do Recife continuou promovendo seus carnavais, sempre
buscando imprimir à festa o seu sentido participativo, em que as pessoas
tivessem espaço para o brinquedo. Contudo, neste interstício, o carnaval, como
era submetido a uma Fundação, sujeita aos desmandos do poder central, continuou
sendo reconfigurado politicamente pelo grupo da situação.
Anos se passaram e, com eles, a
ditadura chegou ao fim. Aos poucos, as políticas públicas em torno do carnaval
foram se tornando, a cada dia, mais complexas. Se antes a questão era manter
coesos os grupos populares, para poder sedimentar as redes sociais que davam sustentabilidade
ao regime militar, agora, com o regime democrático, o carnaval passou a ser
utilizado como instrumento para aquisição de votos, de aumento de receita e de
difusão da imagem do Estado no exterior. Todavia, algumas questões continuaram
aparentes nos anos seguintes ao fim do regime militar, entre elas, e talvez a
principal delas, no tocante ao carnaval, foi a continuada reclamação popular
para que o carnaval “participação” se consolidasse antes a espetacularização do
evento. Esse modelo de festa foi brincado nas ruas ainda durante anos, após o
regime militar continuando as políticas culturais iniciadas sob a orientação do
governo militar.
Contudo, em 1994, quando Cadoca[xiii]
assumiu a Secretaria de Turismo da Cidade do Recife, no segundo mandato de
Jarbas Vasconcelos, ele atraiu para sua alçada a promoção das festas de
carnaval, fazendo com que a Tríduo Momesco deixasse de ser organizado pela
Fundação de Cultura da Cidade do Recife e passasse a integrar a “ordem” do dia
da Secretaria de Turismo. A partir daí, iniciaram-se ações políticas voltadas
para a apropriação das festas carnavalesca com aparente pretensão eleitoreira.
Mais festas, maior atividade turística, mais recursos, mais investimentos e,
assim, maior adesão popular ao modelo político elaborado por Jarbas
Vasconcelos. Tal iniciativa esteve coadunada com o programa de governo de
Vasconcelos, que pretendeu modernizar e industrializar a cidade do Recife dando
à população a ideia de ampla participação popular na sua gestão, através do
Programa Prefeitura nos bairros.
O trabalho de “restauração do carnaval participação” feito nos anos de
gestão da festa pela Fundação de Cultura perdeu, novamente, espaço para o
espetáculo que podiam ser as festas públicas. Os recursos destinados a
organização do evento aumentaram consideravelmente chegando a casa dos 03
milhões de reais. Tal iniciativa pareceu pretender dar notoriedade sobre as
políticas públicas do Estado Brasil afora além de criar receita para o
município e ganhar a empatia dos populares sobre a nova gestão de governo que
se iniciou.
Se o carnaval podia ser utilizado como parceiro do Estado na construção
de seu projeto político, a dúvida foi como manter a festa e seus aspectos
favoráveis à elite política no restante do ano, de modo que a indústria
cultural continuasse a explorar aquela manifestação cultural a fim de trazer os
retornos políticos e econômicos pretendidos. Daí, a ideia do Secretario de Turismo
de importar para o Recife os carnavais fora de época no estilo baiano, que eram
manifestações diversas das que aqui eram praticadas anteriormente. As somas de
capital produzidas pelo mercado do carnaval baiano já superavam que se
conseguia arrecadar com o carnaval pernambucano. Inserir Recife entre as cidades promotoras de
um carnaval “baiano” for de época dava a impressão de que a cidade continuava
sendo vista, mesmo depois de terminado o carnaval. O Recifolia representou o carro-chefe da gestão
de Cadoca enquanto foi secretário.
No lugar do frevo, do maracatu e da ciranda o axé music, o trio elétrico;
no lugar do carnaval popular, em que todos aparentemente tinham condições de
brincar, o carnaval pago, dos abadas, inserido na lógica de mercado; em vez do
carnaval de rua, no qual as pessoas pareciam conformar-se indistintamente, a
sacralização do cordão de isolamento, das arquibancadas e camarotes que
segmentou a sociedade em blocos sociais distintos e, até mesmo rivais. Estavam
sendo gestados novos parâmetros culturais para a cidade do Recife, em que as
práticas brincantes dos populares tornaram-se elementos exóticos a serem
estudados por folcloristas, antropólogos e historiadores. O carnaval foi menos
a festa do povo do que a tradição discursiva em torno dela, em que a
participação popular e a democracia era representação de uma prática
inexistente. Tal asserção pode ser verificada pela falta de investimento que
foi destinada aos carnavalescos pernambucanos nos anos subseqüentes a 1994.
Dentro desta lógica de desvalorização da cultura local, é que os grupos
políticos ditos de esquerda se apropriaram dos movimentos da cultura popular
para apresentar uma proposta de organização social diferenciada. O discurso de
defensores das tradições populares, a busca do sentido de ser Pernambucano, a
necessidade se criar uma identidade com a população, associada ao desejo de
vencer as eleições, fez com que fossem criados espaços de sociabilidade entre
os políticos contestadores daquela “ordem” e os membros de associações
comunitárias, que na maioria das vezes eram representados por sua cultura de
bairro.
Desta forma, foram firmadas alianças políticas de interesses entre as
comunidades do Recife e o futuro prefeito da cidade, João Paulo. Neste sentido,
as práticas culturais do povo foram apropriadas pelos grupos políticos de
oposição, de forma a buscar respaldar e identificar a imagem de João Paulo com
os grupos populares. O carnaval e suas manifestações voltaram a se tornar
objeto de joguetes políticos, ganhando uma relevância eleitoreira. Isso não
quer dizer, contudo, que não houvesse uma pretensão de salvaguarda dos
movimentos culturais de Recife, pelos grupos políticos de oposição, mas negar o
caráter eminente político que essa apropriação teve, é no mínimo leviano.
As eleições municipais de 2000 foram uma das mais importantes de toda a
história política de Pernambuco, só comparável com o pleito estadual de 1998 em que Jarbas Vasconcelos
esmagou eleitoralmente o mito Miguel Arraes. E, essa importância tem duas
explicações aparente: uma - porque foi em 2000 que o Recife elegeu o seu primeiro
prefeito-operário; outra - porque o eleito (o metalúrgico João Paulo, do PT)
derrotou a aliança política montada por Jarbas durante anos, considerada, por
alguns, como a mais poderosa que o Estado já viu. Essa aliança era formada por
Jarbas Vasconcelos (governador em pleno exercício do cargo), outros
representantes da chamada "esquerda" e todas as forças eleitorais da
chamada "direita", um bloco de políticos de prestígio que, ao longo
de décadas, nunca estiveram à margem do poder.
Nas eleições municipais de 2000, a campanha de João
Paulo saiu vitoriosa. Uma nova gestão foi prometida, superestimando, o elemento
popular em detrimento de uma elite econômica. O primeiro mandato de João Paulo
foi, neste sentido bastante mal visto pela classe média, que se dizia esquecida
por este político. Nos carnavais que vieram, sobretudo, o primeiro provido com
orçamento deliberado já por seu governo, o montante destinado à festa foi
bastante superior ao último carnaval realizado por Cadoca, chegando a milhões
de reais na promoção do evento, cujo retorno foi inconteste, se verificada a
cadeia econômica em torno da festa, na qual atuaram o governo do Estado,
Fundarpe, Prefeitura da Cidade do Recife através da Fundação de Cultura da
Cidade, que em suas gestão voltou a promover o carnaval, além de empresas
privadas.
A ideia do governo petista pareceu ser a de dar ao carnaval e cultura
pernambucana uma conotação espetacularizada, tanto quanto o era o carnaval do
Rio e da Bahia, de modo a justificar-se diante dos grupos populares, que aderiram à campanha petista conforme visto acima. Dentro
deste diapasão, o carnaval Pernambucano ganhou espaço na imprensa nacional e,
tornou-se, sob o slogan da descentralização da festa - com a colocação de
palcos para shows e apresentações da cultura local e nacional - e do
multiculturalismo - em que o respeito às diferenças foi seu maior mote – um
espaço para confraternização dos diferentes, através do qual os grupos
políticos no poder tentaram congregar os diversos segmentos sociais que o apoiavam.
O carnaval participação voltou à cena do dizível, sendo inclusive abolido do
calendário turístico local os carnavais de época[xiv],
mas ainda estava longe de voltar a ser prática vivenciada pelos populares
pernambucanos nos dias de festa. A representação pareceu pretender criar uma
prática, mas a efetivação disso não pode ser vista durante os oito anos em que João Paulo
esteve no poder.
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[i]Parece existir uma lacuna em relação às pesquisas
desenvolvidas sobre a transformação da uma cultura popular em cultura de massas
no Brasil, sobre a forma como se deu o relacionamento entre a produção
cultural, o mercado e a proposição de identidades. Esse assunto só começou ser
discutidor no meio acadêmico, na década de 70, mas ainda hoje poucos trabalhos
abordam matéria, se compararmos a temática com outras mais recorrentes na
historiografia. de forma que a produção bibliográfica sobre a temática é
fragmentada e desprovida
[ii] De
acordo com Stuart Hall, a questão de identidade na pós-modernidade tem se
tornado, a cada dia, mais fluída, acompanhando o próprio processo da
pós-modernidade, no qual se tem falado, cada vez menos, na possibilidade da
concepção de uma identidade única, mas de múltiplas identidades.
[iii]
ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa. Festas:
Máscaras do tempo – entrudo, mascarada e frevo no carnaval do Recife.
Recife: Fundação da cultura da cidade do Recife, 1996.
[iv] ORTIZ,
Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo.
Brasiliense, 2001.
[v] CHARTIER, Roger. A
História Cultural: entre práticas e representações. Tradução Maria Manuela
Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
[vi]JUNIOR,
Durval Muniz de Albuquerque. A invenção
do Nordeste e outras artes. Recife: Editora Massangana, 2001. P. 46.
[vii]
Sobre isto, vide a minha dissertação de mestrado.
[viii] PERNAMBUCO, João de (pseud. De Leonardo Dantas). Pequena História Social do Carnaval do
Recife. Recife: Ed. Do Autor,
1998.
[x]
CUNHA, Maria Clementina Pereira. Ecos da
Folia – Uma história social do carnaval. Rio de Janeiro: Companhia das
letras, 1999.
[xi] Diário
de Pernambuco. Recife, 27 de Fevereiro de 1966. “Recifense, sim, subcarioca não!”
[xii]
Diário de Pernambuco. Recife, 13 de Fevereiro de 1985.
[xiii]Cadoca,
quando assume o cargo de secretário de turismo, já tinha sido vereador da
cidade por três vezes, tendo sido também um dos fundadores do Partido do
Movimento Democrático Brasileiro em 1981.
[xiv] Ainda
hoje existem pessoas que reclamam o fim desta manifestação sob o argumento de
tratar-se de um evento que trazia um retorno econômico expressivo para o
Estado.