Blacks and Porto Alegre’s Carnival:The Borders of
Ethnicity
Iris Graciela Germano
Resumo
O presente texto se
propõe abordar alguns referenciais teóricos utilizados na dissertação de
mestrado intitulada “Rio Grande do Sul, Brasil e Etiópia: os negros e o
carnaval de Porto Alegre nas décadas de 1930e 40”, a respeito da construção da
identidade negra através do estudo do carnaval de Porto Alegre nas décadas de
1930 e 40. Neste sentido, o texto analisa algumas representações construídas
pelos/sobre os afrodescendentes no imaginário social da cidade durante o
carnaval, seja através de letras de música, seja através de imagens que
circularam nos dias da festa.
Palavras-chave: identidade
negra, etnicidade, carnaval.
Abstract
The present text seeks to explore some theoretical
approaches used in my Master’s thesis entitled“Rio Grande do Sul, Brazil and
Ethiopia: Blacks and Porto Alegre’s Carnival in the 1930s and 40s”,dealing with
the construction of Black identity. The text analyzes some representations
constructed by African-descendents in the social imaginary of the city during
carnival, both through songs lyrics and through images that circulated in the
festivities.
Key words: Black identity, ethnicity, carnival.
Este pequeno texto
procura abordar alguns referenciais teóricos que utilizei em minha dissertação de
mestrado sobre a construção da identidade negra, através do estudo do carnaval de Porto Alegre nas décadas de 1930 e 40.
Quando iniciei a pesquisa,
uma das questões teóricas implicadas no estudo de meu objeto era a de definir o
grupo que eu estava trabalhando como um grupo étnico. Neste sentido, os
referenciais teóricos utilizados foram uma ferramenta importante na
caracterização deste grupo social, composto por carnavalescos descendentes de
africanos, como um grupo que se caracterizava pela sua etnicidade.
Pois foram estes
referenciais que me possibilitaram perceber a existência de limites e fronteiras
simbólicas entre os diversos segmentos que compunham a população da cidade nos anos
30 e 40.
Desde o início do
século XX, o carnaval de rua de Porto Alegre viveu um processo de popularização
dos festejos. Nas décadas de 1930 e 40, os descendentes de africanos que antes
estavam praticamente excluídos dos desfiles nasruas principais, apropriam-se da
festa imprimindo-lhe novos significados, expressando outras formas de perceber
e se relacionar com a cidade e seus espaços.
Através do estudo dos
inúmeros blocos, cordões, clubes e sociedades populares que surgem neste
momento, em contraste ao distanciamento das ruas e ao confinamento nos salões de
sociedades carnavalescas da elite (ou de grupos que assim queriam se
caracterizar), podemos perceber diferentes apropriações simbólicas feitas do
carnaval pelos diversos segmentos que compõe a cidade.
Estas representações
diferenciadas do carnaval, em um período que praticamente toda sociedade local
nele se envolvia, exprimem as diferentes formas dos grupos se posicionarem socialmente,
estabelecerem laços, se identificarem em um espaço geográfico que é comum, mas
que é recortado por inúmeras fronteiras simbólicas.
As fronteiras
simbólicas que a pesquisa procurou recuperar foram aquelas estabelecidas em
relação aos descendentes de africanos, que a partir da década de 1930 passaram
a caracterizar os festejos de rua até tornarem-se seus principais realizadores,
passando a festa a adquirir significado especial para esta população até a
contemporaneidade.
Assim, o carnaval no
início do século XX estava restrito às camadas médias e altas da população sendo
apropriado, neste período, como símbolo de distinção social. A partir dos anos 30
passa a estabelecer outras fronteiras no interior da cidade em que o carnaval
passa a ser associado às camadas populares e aos descendentes de africanos.
Neste contexto, o carnaval de rua associado aos segmentos negros da população, passa
a ser visto como uma festa decadente, pobre, “com tipos suspeitos e
indesejáveis ocultos na multidão”.
Esta apropriação do
carnaval de rua por segmentos pobres e negros está relacionada à origem do
carnaval popular em Porto Alegre.
Na medida em que estes
segmentos se apropriam da festa de forma mais significativa vão sendo
produzidas inúmeras práticas e representações associadas aos carnavalescos que contribuíram
para a marginalização, material e simbólica, deste segmento no imaginário
social da cidade.
Neste sentido, o termo fronteira
tem aqui uma conotação simbólica relacionada às práticas e representações
associadas aos negros e por eles produzidas durante a festa carnavalesca que
estabeleceram limites e fronteiras no interior da cidade.
Neste sentido, a
própria caracterização do espaço da rua nos dias de carnaval como um espaço
cada vez mais ocupado por negros e pobres acabou também por definir o
espaço da festa carnavalesca como uma festa decadente e perigosa.
A apropriação tem,
neste sentido uma mão dupla, pois a festa carnavalesca passa a ser vista pelos
outros segmentos como uma festa de pobres e negros e, na medida
que se define esta festa como uma festa de pobres e de negros, acabasse
delimitando uma fronteira, com a qual os diversos grupos passam a se
relacionar na sua interação social no interior da cidade, inclusive os próprios
negros.
A pesquisa que
desenvolvi procurou caracterizar dentro do imaginário coletivo as particularidades
que envolveram a constituição da identidade de um grupo social específico, composto
pelos descendentes de africanos.
Ou seja, a pesquisa
procurou caracterizar a apropriação específica pelo negro do carnaval de rua,
através da qual afirmou uma identidade, situando-se na cidade à sua maneira, estabelecendo
territórios próprios e perpetuando, através de suas práticas, sua existência e
sua memória enquanto grupo social.
Portanto, se buscou
caracterizar a formação de fronteiras culturais e simbólicas no
interior da cidade procurando caracterizar este grupo social como um grupo
étnico que na sua interação com os demais grupos se vê e é visto como
diferente no imaginário social.
Para isto, utilizei a
concepção de Fredrik Barth (1998) de identidade étnica, ou seja, de que essa
identidade, como qualquer outra identidade, é construída e transformada na
interação dos grupos sociais através de processos de exclusão e inclusão que
estabelecem limites e alteridades entre tais grupos, definindo os que os
integram ou não, mantendo as diferenças entre Nós e Eles, base de
qualquer identidade social.
Na perspectiva de
Barth, a etnicidade não é um conjunto intemporal e imutável de traços culturais
transmitidos da mesma forma de geração para geração na história do grupo, pois
a organização social nas quais os grupos estão em interação é dinâmica e é
produto de um processo histórico determinado. E é justamente neste ponto que
reside a singularidade da etnicidade, ou seja, no fato de um grupo étnico
conseguir manter os limites que os distinguem dos outros mesmo em meio às
transformações sociais, políticas e culturais da sociedade em que estão
inseridos e interagindo.
Sendo assim, a identidade
étnica não se constrói através do isolamento ou da manutenção imutável de
traços culturais de um determinado grupo social. A identidade étnica se
constrói justamente a partir do contato e da comunicação entre
grupos diferentes no interior de uma mesma organização social. É a comunicação
da diferença, a alteridade entre um Nós e um Outro, estrangeiro,
que faz com que os indivíduos se apropriem e compartilhem de representações e
práticas comuns que estabelecem limites e fronteiras étnicas
no interior de uma sociedade determinada.
Como afirmam Poutignat
e Streiff-Fenart(1998, p. 124):...a etnicidade não se manifesta nas condições
de isolamento, é, ao contrário, a intensificação das interações características
do mundo moderno e do universo urbano que torna salientes as identidades étnicas.
Logo, não é a diferença cultural que está na origem da etnicidade, mas a
comunicação cultural que permite estabelecer fronteiras entre os grupos por
meio dos símbolos simultaneamente compreensíveis pelos insiders e pelos outsiders.
O aspecto relacional das identidades étnicas implica igualmente que a
identidade étnica só pode existir como “representação forçosamente consciente
em um campo semântico onde funcionam sistemas de oposição”.
Desta forma, a etnicidade
não é um conteúdo cultural inerente a um determinado grupo, mas é uma forma
de organização ou de divisão do mundo social e seu conteúdo e sua significação
variam no tempo e no espaço, mas são definidos pelo estabelecimento de limites
e de fronteiras simbólicas historicamente determinadas.
Ou seja, a etnicidade
não é estática, mas suscetível de transformações e redefinições ou, como
definiu Barth, a etnicidade é um feixe de interações cambiantes (POUTIGNAT;
STREIFF-FENART, p.125) que está sempre em transformação.
Portanto, a etnicidade
é um processo variável e nunca terminado pelo qual um grupo se
identifica e é identificado pelos outros na base da dicotomia Nós/Eles,
estabelecida a partir de traços culturais que se supõe derivados de uma origem
comum e que são realçados nas interações raciais. É esta relação
recíproca entre as definições exógena e endógena da pertença
étnica que faz com que a etnicidade seja um processo dinâmico sempre
sujeito à redefinições:
A definição exógena
recobre todos os processos de etiquetagem e de rotulação pelos quais um grupo se
vê atribuir, do exterior, uma identidade étnica [...] De fato, definições
exógenas e endógenas não podem ser analiticamente separadas porque estão em uma
relação de oposição dialética. Elas raramente são congruentes mas
necessariamente ligadas entre si: um grupo não pode ignorar o modo pelo qual os
não-membros o categorizam e, na maioria dos casos, o modo como ele próprio se
define só tem sentido em referência com essa exo-definição. Esta relação surge
em toda sua complexidade por meio dos processos de rotulação mútua, no decurso dos
quais os grupos atribuem-se e impõe aos outros nomes étnicos. (POUTIGNAT;
STREIFF-FENART , 1998, p. 142-143).
Portanto, a existência
e a realidade de um grupo étnico não podem ser atestadas por outra coisa senão
pelo fato de que ele próprio se designa e é designado por seus
vizinhos por intermédio de um nome específico (POUTIGNAT; STREIFF-FENART,
1998, p. 143). O fato de um grupo ser coletivamente nomeado representa um
tratamento específico por parte de uma coletividade a um determinado grupo que
é visto como diferente no interior da organização social.
Para Poutignat e
Streiff-Fenart (1998), muitas vezes, o próprio fato de ser coletivamente nomeado
acaba por produzir uma solidariedade real entre as pessoas assim designadas,
até mesmo quando estas apresentavam, anteriormente, um caráter fragmentário.
Pois, o fato de nomear, tem o poder de fazer existir na realidade um grupo de
indivíduos tidos como diferentes dentro de uma coletividade. Nomear
um grupo étnico, cria uma fronteira, um limite,
através de uma alteridade entre “Nós/Eles”. Por isso, a nominação
não apenas revela aspectos das relações interétnicas mas é também, ela
própria, produtora de etnicidade.
Portanto, a identidade
étnica só se mobiliza com referência a uma alteridade que implica a dicotomia
Nós/Eles. A etnicidade não pode ser concebida senão nessa
fronteira do Nós, em contato,
em confrontação ou em contraste com Eles. A fronteira é
quem produz etnicidade e não o conteúdo cultural de um grupo específico.
Na pesquisa que
desenvolvi, existem inúmeros exemplos da constituição destas fronteiras no
interior da cidade que revelam aspectos interessantes da construção da identidade
negra em Porto Alegre. Seria impossível trabalhar aqui a riqueza do
material empírico que recolhi,composto por textos e imagens do carnaval de Porto
Alegre nas décadas de 30 e 40. Mas trouxe algumas letras de músicas
carnavalescas, sambas e marchas que permitem perceber a constituição destas fronteiras
que definem a etnicidade no interior da cidade.
O poder de nomear,
como vimos anteriormente, produz etnicidade, delimita fronteiras.
É uma rotulação de fora e de dentro, exógena e endógena, que
produz ela própria etnicidade. Partindo desta noção e olhando para meu
objeto de estudo, pude encontrar inúmeras letras de blocos populares compostos
por negros que falam, por exemplo, das mulatas e das morenas nos pampas. Como o
samba Flor do Pampa[1],
escrito em homenagem a rainha do Cordão Carnavalesco Os Turunas (composto
por negros), a famosa solista, garganta de ouro, Horacina Correa:
Salta!
Requebra!
Ondeia!
Pula!
Canta!
Mostra no nervosismo
dos teus gestos
todo o calor da gente
da nossa terra!
És o esplendor da raça,
mulata sacudida!
É interessante observar
como a nominação africano, negro, moreno, mulato, preto,
é realmente produzida, tanto de fora para dentro, quanto de dentro para fora. A
Sociedade Filosofia Negra, por exemplo, localizada na Colônia Africana,
um território negro, se autodenomina negra, em contraste à Sociedade
Filosofia, composta por brancos oriundos da elite. Mas existe também a
definição de fora para dentro, como a letra que descrevereiabaixo intitulada Um
africano enfezado[2].
Observem as relações de sentido contidas neste samba. Esta samba foi composto
pelo Bloco dos Tigres, um bloco muito popular, que se localizava na
Cidade Baixa, um território negro da cidade. No entanto, o Bloco dos Tigres era
composto por brancos que moravam em meio a este território negro.
Pae João que estais
Tão danado
Pois conta
Pra mim quem
Te enfezô
Mãe Maria
Fugiu pro baile
Já fazem dois dias
E não volto
Meu filho eu morro
Ai de paixão
Eu tenho uma
Dor no coração
Oh! Meu pae
Mãe Maria chegô
É verdade filho
É verdade filho
Agradeço o meu Changô
A questão da fonética
das músicas e as próprias letras compostas pelos blocos e cordões negros também
nos permitem entrar num universo simbólico particular, associado às práticas e
vivências próprias dos segmentos negros da população. Como no samba Meu santo
te enganou[3],
do Cordão Carnavalesco Os Turunas:
Bate cabeça, agora,
mulher,
Pois não podes me
culpar
O teu “serviço” foi mal
feito
E agora fica a chorar.
ORA VEJAM SÓ
Tudo fazias pra te
separar
Deixando-me na mão
Mas o meu “santo” me
veiu avisar...
E acabou tua intenção.
Foi coisa feita por
aquela Mandingueira
Que tu pegaste pra de
ti eu me “soltar”
Mas tenho um breve e o
meu santo é “pesado”
Não é à toa que te
podes separar.
Mandingueira não fez o
“serviço”
Como você bem queria
O Pae OGUN e ECHUN não
quizeram
Ver morta minha alegria
ORA VEJAM SÓ!...
Bate cabeça, ou então
dá o fora
Pois culpado não sou
E peço que, tu não
andes dizendo,
Que meu “santo” te
enganou!
Outra letra que revela
aspectos desta fonética e deste universo negro é a Canção da Ilhota[4]
. A Ilhota é também um território negro da cidade:
Dumingo de carnavá
foi que nóis se
cunhecemo
e, sem querê, se tornme
num par de noivo
ideá...
Quando nóis dois se
falemo
tu te parou a me oiá
e me feis atapaiá
cum teus zoinhos de
demo...
E toda segunda-feira
foi p’ra diante a
pagodeira
daqueles tempos de
entrudo...
Na terça tu oiou outro,
fiquei fulo , virei
potro
e assim se acabemo
tudo...
Enfim, poderíamos
explorar estas fontes de diversas maneiras, extrair delas inúmeras
significações, que são uma porta de acesso para perceber os códigos
culturais do passado e as fronteiras erguidas em meio à cidade. Mas
como o espaço é reduzido, vou encerrar colocando uma última representação
colhida em meio às páginas de uma das revistas pesquisada como fonte que, praticamente,
fala por si só no sentido de nomear, estabelecer relações de sentido e
erguer fronteiras étnicas.
Esta representação,
colocada abaixo, está junto da foto com três garotas negras, sorrindo para o
fotógrafo, em meio ao carnaval de rua. É fugaz como os quatro dias de festa,
mas concreta e sutil como as fronteiras que ajudou a criar no imaginário social
de Porto Alegre:
Figura 1: De onde vieram estas três graças de ébano? Do morro, talvez, ou das malocas, ou da cozinha de apartamentos. Ninguém soube. Elas chegaram, brincaram, até amar amaram...e desapareceram[5]. |
REFERÊNCIAS
BARTH, Fredrik. Grupos
Étnicos e suas Fronteiras. In:
POUTIGNAT, Philippe;
STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias
da Etnicidade. Seguido de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São
Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998, p. 187-227.
Fontes utilizadas
Jornal Correio do Povo,
Porto Alegre, décadas de1930 e 40.
Revista do Globo,
Porto Alegre, década de 1940.
Artigo publicado em Textura, Canoas, n.9, Nov.2003 a jun.
2004, p.33-38.
[1] Jornal
Correio do Povo, 20/fev/1931, p. 6. 2 Jornal Correio do Povo,
03/fev/1934, p. 5.
[2] Jornal Correio do Povo,
03/fev/1934, p. 5.
[3] Jornal Correio do Povo,
13/fev/1931, p. 6.
[4] Jornal
Correio do Povo, 17/fev/1931, p. 5.
[5] Revista do
Globo, Ano XX, n. 454, 13/mar/1948, p. 43.