Bloco Misto: a presença das mulheres no carnaval de rua do Recife/PE na década de vinte do século XX

carnaval de blocos do Recife
Bloco das Flores - Carnaval de Recife
Juliana Dias Palmeira[1]
Ricardo de Aguiar Pacheco[2]
Resumo: O presente artigo analisa a ocupação do espaço público pelo gênero feminino através da participação da mulher no carnaval da cidade do Recife-PE na década de 1920 observando o caso do Bloco Misto. Os blocos mistos surgem no Recife no contexto da modernização urbana e possuem essa denominação por agregar em seu interior pessoas tanto do gênero masculino como feminino. Trata-se de uma análise onde percebeu-se que a abertura para a participação da mulher no carnaval de rua se deu juntamente com o disciplinamento das formas de brincar.
Palavras-chave: Mulher; Carnaval; Recife.

Abstract: This article analyzes the occupation of public space by women, by women's participation in the carnival of Recife-PE in the 1920s through the Bloco Misto. The Bloco Misto come in Recife in the context of urban modernization and have that name by adding inside people both male and female. This is an analysis of women's participation in the carnival of time where it was noticed that the opening for the participation of women in the street carnival took place along with the disciplining of ways to play.
Keywords: Woman; Carnival; Recife.


Sabe-se que por muito tempo as mulheres não tinham o direito de circular por entre os espaços públicos. Enquanto estes eram território de circulação masculina às mulheres cabia o território da casa. Com as transformações socioeconômicas advindas da modernidade e seu ideal de progresso alterações foram acontecendo no espaço público e também do privado que permitiram as mulheres romper esta fronteira, noção tratada por Priore (2004).
Ao longo do século XX altera-se também os olhares sobre o que deve ser narrado pela historiografia e surge a história das mulheres em 1968 com Robert Stoller, e com maior relevância com Gayle Rubin em 1975. Estudar gênero é tratar das relações entre mulher e mulher, homem e homem, mulher e homem, ou seja, entre indivíduos e suas identidades. Joan  Scott (1995) trata o gênero como uma categoria útil à história e não apenas à história das mulheres, pois ela contribuiria para a transformação do olhar histórico sobre temas como a política, economia, sociologia, e outros. Faria compreender a totalidade dos eventos, observando os detalhes, as minúcias das relações entre os sujeitos.
O estudo do carnaval de Recife na década de 1920 a partir do conceito de gênero, portanto, serve como recorte na observação de como o espaço público foi progressivamente sendo ocupado pelas mulheres de classe média evidenciando o conflito entre modernidade e tradição no seio das relações sociais, para não dizer no meio da festa.

 O carnaval de rua e a organização dos espaços recifenses
Segundo Peter Burke (2010) o carnaval é uma festa popular que tem como funções o divertimento do povo. Ele é a fuga de uma rotina enfadonha de trabalhos e compromissos, uma válvula de escape, a chamada festa da inversão, onde “os tabus cotidianos que coibiam a expressão de impulsos sexuais e agressivos era substituídos por estímulos a ela. O carnaval, em suma, era uma época de desordem institucionalizada, um conjunto de rituais de inversão” (BURKE, 2010, p. 259). Segundo Damatta (1997) a festa do carnaval precisa de um espaço apropriado para acontecer. Este pode ser público, a rua, ou privado, os salões, mas é sempre preparado, arranjado, para a realização da festa.O carnaval requer – seja na rua, na viela, na praça ou na avenida; seja no clube, na escola ou em casa – um espaço próprio. […] Desse modo, mesmo quando o espaço já esta demarcado, cria-se nele um outro espaço, exclusivamente destinado ao carnaval (DAMATTA, 1997, p. 111).
O carnaval em Pernambuco é uma das manifestações mais marcantes da cultura popular. Sua presença no estado é antiga e remonta o jogo do Entrudo, herança colonial portuguesa, que no Estado adquiriu novas formas de “brincar”. O entrudo em Portugal se caracterizava por jogar água ou pozinhos coloridos no oponente desavisado. Brincadeira que se espalhou através dos colonizadores pelo território e ganhou força, e acontecia tanto no ambiente privado, a casa, como no público, a rua (FERREIRA, 2005, p. 81).
O entrudo popular era visto com maus olhos pela elite, pois era considerada uma festa imoral e indecente. Com os ventos da modernidade, que chegavam no período imperial, surgiu na sociedade recifense o desejo de higienizar as práticas e o ambiente do carnaval. As famílias nobres passaram a condenar o entrudo familiar entre si, considerando-o também uma prática bárbara e passaram a organizar um novo carnaval que, como escreveu Rita de Cássia Barbosa de Araújo “deveria converter-se num belo espetáculo, produzido pelas camadas ricas e letradas, para ser contemplado e aplaudido por todos” (ARAÚJO, 1997, p.204).
O novo carnaval idealizado pelas elites urbanas do império encontrava sua inspiração no carnaval da Europa (Veneza, Nice, Paris) que tinha como características os bailes mascarados e os passeios das carruagens. Assim estava formado o carnaval das críticas e das máscaras, que tinha a intenção de fazer críticas a sociedade e a política, mas também de civilizar o carnaval e a partir de 1880 as vias públicas do Recife serviram de palco para os cortejos de carros alegóricos, onde a população mais pobre não tinha o direito de participar, restando-lhes apenas a oportunidade de assistir e contemplar.
Na década de 1910 os clubes de alegoria e crítica praticamente se extinguem ao passo que os indivíduos das camadas populares foram cada vez mais participando dos carnavais de rua no Recife através dos Clubes de pedestres. Estes se tratavam de: agremiações carnavalescas populares, cuja denominação, aludia à forma de se apresentarem em público: em cortejos processionais, precedidos dos respectivos estandartes, os sócios uniformizados e portando as insígnias da agremiação vinham atrás, formando o cordão (ARAÚJO, 1997, p. 212).
Com esse disciplinamento do carnaval de rua vai se observar, na década de 1920, o surgimento dos Blocos Mistos. Essas agremiações possuíam o nome “mistos” por agregar homens e mulheres das famílias da elite a festa de rua. Afirmar que as mulheres passaram a participar do carnaval a partir da formação dos blocos mistos é generalizar. Pois as mulheres pertencentes às classes menos favorecidas brincavam o carnaval de rua desde o entrudo e mesmo nos blocos pedestres. Mas as mulheres das famílias da elite até então estavam limitadas aos carnavais de salões. E é justamente essa possibilidade da presença feminina na rua que nos indica o disciplinamento da festa. Para Vila Nova: surgimento desse tipo de agremiação no carnaval pernambucano é o importante dado sociológico a ela relacionado: o início da participação efetiva da mulher nocarnaval de rua, sobretudo entre as camadas médias da sociedade, que não podiam participar das festas de salão promovidas pelos clubes da elite (VILA NOVA, 2006, p. 15).
Segundo Ferreira (2005) os Blocos Mistos surgiram das manifestações do ciclo natalino, os presépios - um festejo onde moças cantavam e dançavam em louvação ao nascimento do menino Jesus - e os ranchos de reis - uma ramificação dos presépios, de caráter profano onde moças e rapazes percorriam as ruas, cantando e dançando, usando trajes simples e ornados com flores - que deram origem a forma de brincar o carnaval que são os Blocos Mistos.
Aponta-se, sem contestação de nenhum dos estudiosos do tema, o pastoril e as celebrações do ciclo natalino como uma das origens dos blocos. Explica-se aí a própria formação do bloco, tendo à frente o coral feminino acompanhado de uma orquestra de instrumentos de corda e de sopro mais leves (flautas e clarinetes, por exemplo) [...] (VILA NOVA, 2006, p. 48).
É nesta nova manifestação carnavalesca que as mulheres passam a ser a figura principal da festa. O desfile do bloco destaca-se pela formação predominantemente feminina, com a função de emprestar a voz para compor o coral. E para os participantes masculinos cabia o papel de formar a orquestra e o cordão que separava as mulheres da multidão.
A ala feminina do bloco saia pelas ruas protegida (dentro de um cordão de isolamento) da massa trazida pelos clubes e troças. Eram senhoras e moças que habituadas aos pastoris, presépios, ranchos de reis e procissões, formavam o coral do bloco. Já a ala masculina, dedicava-se à formação da orquestra e a tomar conta de suas filhas, esposas, irmãs, noivas, noras e amigas (ARAÚJO, 2005, p. 36).
Ao Recife, que entrava na corrida pelo progresso, fazia-se necessário alterar os costumes que iam de encontro a essa ideia de disciplinamento e higienização social, inclusive o carnaval. Essa foi uma estratégia que culminou com a criação da federação Carnavalesca de Pernambuco que, com o estabelecimento do Estado Novo, tomou atitudes rígidas em relação ao brinquedo da rua. “A tentativa de reorganizar o Carnaval do Recife, em 1938, reflete o desejo do Estado e da elite de encontrar uma saída para o carnaval provinciano, que deveria ‘civilizar-se’ ” (ALMEIDA, 2001, p. 149). Nota-se a necessidade do Estado Novo interferir no carnaval de rua e no frevo, colocando-os na categoria de coisas a serem extirpadas para ceder espaço ao progresso. Enquanto que valorizavam os carnavais de clube, onde a música a ser escutada era o Jazz, estilo considerado elitizado. Percebe-se o desejo da elite em promover o refinamento da festa, contudo o povo não deixava de participar da construção da brincadeira criando as formas alternativas de folia.

O lirismo do Bloco Misto
O Bloco Misto trata-se de uma nova forma de viver o carnaval surgido na década de 1920 que concorria com as outras formas de brincar já existentes: os bailes em clubes, os clubes pedestres, os maracatus, os caboclinhos, e etc. Segundo Duarte (1968) o Bloco Misto, trouxe como inovações o fato de: proporcionar condições ao elemento feminino de participar do carnaval das ruas centrais do Recife, protegido da mistura da massa que acompanhava os clubes e troças. Era formado geralmente por moças e senhoras da chamada pequena burguesia que, não podendo participar dos bailes dos Club Internacional ou do Jóquei Club, então privilégio das elites, saiam às ruas protegidas por um cordão de isolamento, envolvendo todo o grupo e separando-o da multidão, sob a severa vigilância de pais, maridos, irmãos, noivos, genros e amigos (DUARTE, 1968, p. 136).
Talvez a grande importância dada ao Bloco Misto como movimento social de aquisição da autonomia feminina em relação ao espaço público, foi sua aparição na imprensa da época. Desde seu surgimento esteve presente nas publicações dos jornais recifenses, entre eles: Jornal Pequeno, Jornal do Comércio, Jornal do Recife, Diário de Pernambuco, Diário da Manhã, A Província. Onde se divulgavam as novidades do carnaval, a preparação e ensaio dos blocos, reuniões e saraus que antecediam os dias de folias. O que resultou por reafirmar a todo instante a presença dessas damas na festa. (…) Dava-lhes novos aspectos de encanto e vivacidade os grandes ranchos de senhoritas, que ao som de hinos e canções deliciosas percorriam a cidade; os blocos de família ocupando caminhões lindamente ornamentados; o gesto das fantasias e em tudo uma nota de distinção, de beleza e finura. Entre os ranchos organizados caprichosamente, merecem elogios, […] Bloco das Flores com grande numero de distintas senhoritas de São José; Andalusas em folia, também formada de senhoritas entoando cantigas e modinhas. […] - Jornal pequeno. 02/03/1922 quinta-feira n°49 – p.2 (RABELLO, 2004, p. 182).
Como observa-se nesta notícia do Jornal Pequeno era anunciada a presença de mulheres “distintas”, com suas famílias, que conferiam ao carnaval do Recife “distinção”, “beleza” e “finura”, uma oposição ao carnaval rude.
No início, tem sua formação relacionada à classe média residentes nos bairros centrais de Recife, como São José, Santo Antonio e Boa Vista, e mais tarde expande-se para outros bairros. E nessa modalidade, O Bloco das Flores é um dos mais antigos registrados, fundado em 1920, na Rua Imperial, Bairro de São José, em Recife, liderado por Pedro Salgado e Raul Morais. Em seguida outros foram aparecendo no mesmo segmento, como o Bloco Batutas da Boa Vista (1923), Apôis Fum (1925), Madeira do Rosarinho (1926), Inocentes do Rosarinho (1926), entre outros. Falando da forma particular de organização dos Blocos Mistos nestes anos iniciais da manifestação Duarte nos diz que: O grupo vinha as ruas trajando a mesma fantasia, por vezes vestidos e camisas estampadas de um mesmo tecido, chapéus de palha para os homens e flores nas cabeças das mulheres, tendo na abertura um artístico cartaz, em forma de grande leque aberto a “decupage”, depois denominado de flabelo, onde aparecia vazado o nome da agremiação (DUARTE, 1968, p. 136).
O flabelo consistia em mais uma das diferenças entre o Bloco Misto e as outras agremiações. E está presente até nos dias atuais, abrindo alas para o bloco e revelando a todos o seu nome e a data de sua fundação. Onde a tarefa de conduzi-lo com graça e leveza cabia a uma das mulheres, a flabelista. E depois dela vinham as pastoras entoando as canções do bloco, acompanhadas dos rapazes que compunham a orquestra, que também tinham a função de fazer a segurança das moças e senhoras. O repertório dos blocos mistos durante a década de vinte era bem diversificado.
Eles também executavam os ritmos que estavam em voga, como polcas, maxixes, marchas carnavalescas e o frevo de bloco, todos entoados pelo canto do coral feminino acompanhado dos violões, bandolins, banjos, cavaquinhos, clarinetes entre outros instrumentos de pau e cordas. O frevo rasgado não era permitido e nem possível de se realizar. Nas gerações de blocos mais recentes, algumas introduziram os metais, mais ainda assim, o movimento lento e elegante vigora. Os ensaios dessa apresentação também eram noticiados na imprensa em notas como esta. (…) O Bloco das Flores dispõe de cantos maviosos e marchas belíssimas. Quem assiste aos seus ensaios, ouvindo a sua suculenta orquestra sob a batuta do Maestro Osório Araújo, sentirá, certamente, crescer o entusiasmo, porque, efetivamente, o Bloco Flores, tem sabido mostrar seu valor e manter a linha carnavalesca. Em residência do coronel Pedro Salgado, esforçado presidente do aludido Bloco, à rua imperial n. 365, terá lugar hoje, às 20 horas, mais um ensaio. (…) - Jornal do Comércio. 19/01/1923 – sexta feira n°15 p.3 (RABELLO, 2004, p. 202).
Nesta notícia do Jornal do Comércio é possível perceber o uso de adjetivos como “mavioso” e “belíssimas” para caracterizar a música do Bloco Misto, resultado do lirismo feminino. Na expressão “manter a linha carnavalesca” considerando o contexto da disciplinarização do carnaval percebe-se a propagação da necessidade de ordenar a festa proveniente dos discursos de progresso e modernização da cidade.
Ainda seguindo essa premissa de ordem ver-se que o Bloco Misto, mesmo sendo uma agremiação carnavalesca de rua, realizava ensaios em casa dentro do âmbito familiar mas se configurando com um espaço híbrido da casa na rua, como que explicito no artigo que fala dos ensaios na “residência do coronel Pedro Salgado”. (…) Há também a salientar, além do corso, o brinquedo de getones, serpentinas e lança-perfumes que tem ocorrido com bastante animação… e os blocos que de ano em ano vão aumentado, formosos grupos de moças e rapazes, fantasiados cantarem fados, modinhas e canções em voga - Diário de Pernambuco 04/03/1924 terça-feira (RABELLO, 2004, p. 128).
O dado desta nota do Diário de Pernambuco é a propaganda na mídia sobre o aumento de “moças e rapazes” cantando juntos, caracterizando, dessa forma, apoio familiar ao acesso ao espaço público por mulheres, desde que em conjunto com homens, para brincar o carnaval.
As músicas dos frevos de bloco vão ter como tema: o romantismo e o lirismo. Onde os sentimentos como amor, tristeza, saudade, alegria, estarão compondo as letras entoadas fervorosamente nas ruas durante a festa. Esse lirismo traz a tona uma explosão de sentimentos onde o amor e a alegria em viver e brincar estão estampadas em cada folião; onde a tristeza e a saudade se apoderam na hora de dar adeus ao carnaval. A exaltação e a evocação das agremiações, de seus compositores, do próprio carnaval e do passado fazem-se presente.
Aliás, a saudade é assunto central do frevo de bloco. Principalmente nas gerações da década de setenta em diante que brinca na ânsia de recordar os antigos carnavais.
O lirismo dos blocos se traduz, fundamentalmente, pela presença da própria mulher com vestidos elegantes e luxuosos. Assim elas associavam ao bloco caracterizações enraizadas no campo simbólico sobre o ser mulher: a representação do sentimental, do suave, do poético, da beleza. Então com o passar do tempo tornou-se mais atraente utilizar o título de Bloco Carnavalesco Lírico (BCL) no lugar de Bloco Carnavalesco Misto (BCM). “A primeira agremiação a adotar oficialmente a nova denominação, inscrevendo a sigla BCL em seu flabelo, foi o bloco Cordas e Retalhos, em 2001” [O Flabelo, novembro de 2002:2] (VILA NOVA, 2006, p. 55).

 Bloco Misto: o feminino entre o moderno e tradicional
Autores como Rezende (1997) e Raimundo Arraes (2004) Consideram que na cidade do Recife, na década de vinte, o embate entre o tradicional e o moderno foi o centro dos debates entre jornalistas, escritores, artistas, e toda uma classe intelectual que utilizava dos espaços de divulgação para assumirem suas posições de defesa e ataque ao tradicional ou ao moderno. “Assim é o Recife da década de vinte, com seus encantos, com seus medos e desilusões” (REZENDE, 1997, p. 74). Onde se mantinha o desejo pelas mudanças e inovações, misturados ao de manter suas raízes tradicionais, receando todo tipo de mudança exagerada que alterasse o perfil da cidade. O carnaval, como manifestação cultural do período, não ficaria de fora do debate.
O Bloco Misto, ou Bloco Lírico, mesmo se encaixando em uma época de modernismos surge com princípios tradicionais por estar ligado às questões de ordem, de família e até de certo bairrismo. Quanto ao ideal de família faz parte do conjunto de características do grupo o respeito, a paz, a moral, e a ordem, que igualmente imperavam no lar. E junta-se a isso o fato de estarem reunidos entre parentes e amigos próximos.
Por outro lado, dentro desse ideal tradicional de família, encontra-se traços do moderno. Onde o desejo de ordenar o carnaval faz parte do imaginário de progresso que permeou essa década. Os blocos mistos se apresentam, então, como criadores de um novo carnaval, em oposição aquele dito como sujo e parvo feito pelo populacho. Se opondo a barbárie das troças, dos maracatus e caboclinhos, entre outras manifestações populares da época, os Blocos Mistos simbolizaram a higienização do carnaval e a garantia de acesso ao espaço público aqueles que realmente deveriam ocupá-lo: os setores elitizados da sociedade.
Essa manifestação carnavalesca é moderna também no que diz respeito à participação da mulher no carnaval de rua do Recife. A participação feminina nas ruas tornou-se possível graças a higienização que promoveu. Não que mulheres fossem proibidas de brincar carnaval de rua, mas as que ousavam era qualificadas como imorais e despudoradas, e em sua maioria era pertencente às camadas mais pobres da sociedade. Então, no Bloco Misto foi o espaço aberto não simplesmente as mulheres, mas sim as damas da sociedade, as mães e as senhoras do lar.
O tipo de formação de um Bloco Misto faz dele uma agremiação que se encaixa na categoria de carnaval de rua, pois seus integrantes se preparam e se enfeitam para ir as ruas brincar o carnaval, cantando e dançando ao passo da suave melodia que fala de amor e de saudade. É nas ruas do centro do Recife que esse tipo de agremiação desfilava, expondo suas fantasias, suas alegorias, sua orquestra, fazendo um verdadeiro espetáculo.
Porém os participantes desta manifestação, principalmente as senhorinhas que emprestavam a sua voz para entoar as belas canções, estavam apartados da multidão pelo cordão de isolamento, pois considerava-se necessário tomar distanciamento da massa enlouquecida das ruas ao som do frevo rasgado.
A própria presença da mulher à agremiação dá a ela a conotação de familiar. O Bloco Misto era de família, era descente e de paz, por isso que os homens da elite permitiam que suas esposas e filhas participassem, e ainda assim com eles cercando e vigiando, pois que o bloco era mais uma extensão da casa na rua. E esse isolamento de certa forma torna a agremiação fechada dando a festa um caráter privado, embora ocupe as ruas, evidenciando o interesse de seus participantes, pessoas da classe média, intelectuais e mulheres, de manterem-se separados do resto da população.

REFERÊNCIAS

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Artigo publicado XXVII Simpósio Nacional de História, Conhecimento Histórico e Diálogo Social, Natal, julho de 2013.


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[1] Mestranda do PPG História Social da Cultura da UFRPE.
[2] Dr. em História; Professor PPG História Social da Cultura UFRPE