Amelina Chagastelles - Rainha da Esmeralda (1910) |
Resumo: Este artigo pretende apresentar uma análise a respeito das relações de gênero percebidas através do carnaval de Porto Alegre, a partir do renascimento das sociedades carnavalescas Esmeralda e Venezianos (1906-1914). Gostaríamos de apresentar como se estabeleceram relações de poderes a partir desta festividade, apontando para os significados construídos para a participação das mulheres no carnaval.
Palavras-chaves: gênero, carnaval, dominação masculina.
Caroline P. Leal
Março
de 1906! Ressurgem em Porto Alegre duas antigas sociedades carnavalescas –
Esmeralda e Venezianos. Essas duas associações haviam sido fundadas no último
quartel do século XIX , mas acabaram encerrando suas atividades duas décadas
depois, para então ressurgirem nos festejos carnavalescos da cidade de Porto
alegre, já no século XX.
A partir desse
episódio – renascimento de Esmeralda e Venezianos – percebemos que a
participação e a visualização a respeito das mulheres no carnaval também se
modificariam. Podemos afirmar que “Evas” darão lugar à “Marias”, na busca de uma construção de um carnaval distinto e do reforço das
hierarquias dominantes do masculino. Este artigo, portanto, visa apresentar como
se estabeleceram relações de poderes a partir desta festividade, apontando para
os significados construídos para a participação das mulheres no carnaval de Porto Alegre[1].
O surgimento da Sociedade Carnavalesca Esmeralda e da Sociedade Carnavalesca Os Venezianos, no ano de 1873, se deu em um momento em que era desejada uma modificação na participação das mulheres durante os festejos carnavalescos na cidade de Porto Alegre, a fim de promover uma readequação das condições e lugares socialmente desejáveis a elas. Com o nascimento dessas duas associações se teve a introdução de um novo modelo de carnaval, no qual essas agremiações rendiam preito a Momo, aos moldes de Veneza, com préstitos e bailes. Nesse novo modelo de carnaval as mulheres tiveram seus espaços limitados, pois ele seria promovido pelos homens dessas agremiações, sendo a função das mulheres, assistir ao desfile, aplaudi-lo e atirar flores aos rapazes que desfilavam (LEAL, 2008, p. 54-71).
O novo festejo veio em combate ao entrudo
– brincadeira de origem ibérica que consistia em várias práticas, como a
pregação de mentiras de pilhérias e, sobretudo, em molhar e sujar o adversário,
o que aqui ocorria com maior frequência – no qual as mulheres tinham ativa
participação, sendo as protagonistas da festa. John Luccock, viajante inglês
que andou por esses pagos, em 1808, assim registrou: “ficar
de tocaia nas janelas e ensopar passantes distraídos era um dos prazeres
prediletos das donzelas da terra, ainda mais se as vítimas fossem estrangeiro”(FERREIRA,
1970, p.10).
Além disso, o entrudo, por permitir um
maior contato corporal e com isso a sexualidade feminina ser exercida com maior
facilidade, era visto como um jogo licencioso. Aquiles Porto alegre, que fora
membro de ambas as associações, em suas memórias a respeito da brincadeira,
afirmava que: “[...]quanto moço poeta, quanto namorado maldoso, quanto D. João disfarçado
não se servia do limão de cheiro para em declaração de amor espremendo-o com a
intenção maliciosa, no colo ebúrneo, decotado, tentador de sua Dulcinéia
encantadora?” (PORTO ALEGRE, 1994, p. 87). A brincadeira do entrudo e a
liberação sexual por ele facilitada permitiam as mulheres também exercerem suas
vontades sem maiores reprimendas.
A mudança para as sociedades carnavalescas
e a intenção de extinção dessa prática era, dessa forma, uma forma de
moralização do carnaval. A partir do nascimento das sociedades carnavalescas
Esmeralda e Venezianos se deu a construção de um habitus, que visava
manter as mulheres “em suas ideias, percepções, práticas ou ações, dentro dos padrões
de comportamento e de auto-compreensão atribuídos pelo processo de socialização
do sistema de dominação”(BUTELLI, 2008, p. 135). Elas sairiam do protagonismo
que apresentavam nos jogos das molhadelas para a passividade de assistir ao
préstito veneziano.
O protagonismo masculino era identificado
não só na criação das sociedades carnavalescas, bem como na execução e exibição
dos desfiles e bailes. Se esmeraldinos e venezianos já estavam a fazer toda essa
“revolução”, ao promoverem um carnaval mais elegante e civilizado, cabia ao
restante da população serem coadjuvantes da festa, ornamentando as janelas,
abandonando o entrudo e atirando flores
a “nata dos moços” da terra.
As mulheres, portanto, passaram à condição
de coadjuvantes das festas carnavalescas. Deveriam assistir ao desfile dos
rapazes, aplaudi-los e jogar-lhes flores. O carnaval de 1875 foi descrito como
animadíssimo. Esmeralda e Venezianos teriam disputado a supremacia e deste
combate “deu em resultado ficar o campo juncado de ... flores, tal foi o
empenho das moças em jogar-lhes lindos buquês” (FERREIRA, 1970, p.39).
Neste primeiro ciclo das sociedades
carnavalescas, o discurso a respeito do carnaval buscava inculcar coletivamente
a superioridade masculina através de um discurso virilizante da folia de Momo.
Fazendo uso de adjetivos como heroico e moderno, buscava-se a construção de uma
festa que fazia uso de símbolos culturalmente compreendidos como masculinos, da
qual as mulheres não fariam parte, exceto como apreciadoras. Mesmo com tamanho
controle, as mulheres continuaram a brincar o entrudo, inclusive nos bailes
promovidos por essas sociedades, e passaram a participar da organização e
execução dos festejos.
Ao chegar à década de oitenta daquela
centúria, Esmeralda e Venezianos ingressariam em crises que as afastariam do
carnaval. Entre os argumentos utilizados para esse fim, estava a permanência do
gosto feminino pelas molhadelas. Os Venezianos, em 1882, enfatizava seu
incômodo com a permanência do entrudo, “fonte de quanta constipação, pneumonia
e tifo, há, que flagela e dissipa a humanidade!...” (Jornal do Comércio, 18 de fevereiro de 1882, p.2). Mas o que mais
lhes horrorizava era “ver que esta plêiade de epidemias dimana de delicadas e
alvas mãozinhas que parecem fadadas para derramarem consolações sobre a
humanidade sofredora!!!...”(Jornal do
Comércio, 18 de fevereiro de 1882, p.2). Eram Evas a pecar no paraíso!
Com o desaparecimento das sociedades
carnavalescas Esmeralda e Venezianos e o
aparecimento de novas formas de brincar a festa – que passou a ser
promovida por outros atores não pertencentes às elites da cidade –, os
jornalistas da capital demonstravam um grande descontentamento com o festejo. O
jornal O Independente, alertava para
uma “licenciosa libertinagem que
vai aos poucos corrompendo a nossa juventude, em uma ameaça feroz e real às
bases sacratíssimas do lar, à moral da família que é o fundamento do edifício
social. Todas essas considerações vem a propósito de festa pagã e lúbrica do
carnaval” (O Independente, 9 de março de 1905, p.3).
Tal insatisfação também residia no perigo da “contaminação social”
proporcionada pelo carnaval, sobretudo, na figura do entrudo, que além de ser
“bastante ofensivo dos bons costumes” (Correio do Povo, 04 de março de 1900,
p.2) estava sendo feito “não já entre parceiros, mas, o que mais é, entre tout le monde...” (Correio do Povo, 04 de março de 1900, p.2).
No início do século XX, contudo, Esmeralda e
Venezianos iriam ressurgir. Essa sua segunda fase, porém, foi marcada por uma
série de diferenças em relação ao seu primeiro ciclo, sobretudo no que tange à
participação feminina: as mulheres passaram a ser convocadas a organizar o
carnaval da cidade e sua participação era enaltecida pelos jornais da capital;
elas passaram a ser louvadas por seus comportamentos irrepreensíveis e pela sua
conduta moral, livrando a cidade daquela concupiscência deflagrada na virada do
século. Observamos que, neste segundo ciclo, as mulheres que participavam das
sociedades eram, normalmente, filhas de importantes membros da elite
porto-alegrense, sobretudo da elite política e militar. Evidenciamos ainda que,
a partir desse momento, a inculcação da ordem simbólica de dominação masculina
se deu de modo diferente, não mais pela exaltação do discurso viril do
carnaval, mas através da consagração das mulheres, ressaltando-se
características “femininas do carnaval”. Quando do
reaparecimento da Esmeralda, em 1907, o Correio do Povo louvava o
retorno do carnaval[2],
que reaparecia com a mesma aparência de antigamente, porém com algumas
particularidades. Segundo o jornal, “vinha Ele, senão com a mesma cara, com o
mesmo aspecto de outrora”. Porém, ao olhar mais detidamente, reparava em
“certas minudências”: “o Carnaval reaparecia sob uma feição acentuadamente
feminina”. Com espanto, observava que “não restava a menor dúvida: era a linda,
a grácil Mulher porto-alegrense que fazia o Carnaval. Por isso vinha ele tão
garboso, tão gentil e tão chic. Por isso tinha sido possível o milagre
de sua ressurreição”
(Correio do Povo,
17 de fevereiro de 1907, p.4).
Apesar de uma aparente liberdade das
mulheres, na qual elas podiam se reunir para organizar o festejo, desfilar,
participar dos bailes, sendo exaltadas por tal participação, acreditamos que o
que houve foi um reforço dessa dominação masculina. Desta forma, as mulheres
que participavam das sociedades abdicaram de maiores momentos de liberdade
oferecidos pelas brincadeiras do entrudo em troca da consagração e aplauso
oferecidos pelos apreciadores das referidas agremiações carnavalescas após seu
ressurgimento. Eram as Marias envaidecidas a regenerar o carnaval!
Ressalta-se, assim, uma modificação tanto
na participação feminina no festejo, quanto nos atributos que lhes eram
designados: num primeiro momento, elas participavam apenas como espectadoras e
embelezadoras da festa, foram atacadas por serem as responsáveis pelo fim do
carnaval civilizado, por se deixarem levar pelo atrevido entrudo. Foram uma das
causas do fracasso do carnaval elegante por serem as maiores entusiastas com
tão “perniciosa” brincadeira. Depois, com o renascimento das sociedades
carnavalescas, passaram a organizar os festejos burlescos, e acima de tudo,
representavam a figura do bom carnaval, da moral e bons costumes, a
representação da regeneração moral do carnaval. Desta forma, as referências
feitas pelo meio jornalístico nos permitiram problematizar o processo de
transformação que ocorreu nas relações de gênero durante os festejos
carnavalescos em Porto Alegre, ao mostrar homens e mulheres mudando de posição
na festa, bem como os significados construídos para ambas as participações.
Entendemos gênero, tal qual Joan Scott
para quem ele é o saber a respeito das diferenças sexuais, “um elemento
constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre
os sexos, e [...] o primeiro modo de dar significados às relações de poder”
(SCOTT, 1990, p.15), pois esse conhecimento funda significados sobre as
diferenças corpóreas, sendo primeiro campo por meio do qual o poder é
articulado. De acordo com a autora, “as mudanças na organização das relações
sociais correspondem sempre a mudanças nas representações de poder, mas a
direção da mudança não segue necessariamente um único sentido” (SCOTT, 1990,
p.14). Dessa forma, o gênero demandaria quatro aspectos fundamentais a saber:
os símbolos, os conceitos normativos, uma noção de política e referências às
instituições bem como a organização social e por fim a identidade subjetiva.
Este processo de construção das relações de gênero pode ser usado para examinar
qualquer processo social, como no caso aqui em questão, o carnaval.
O carnaval é uma festa repleta de
simbologia, na qual os signos “culturalmente disponíveis que evocam
representações simbólicas” (SCOTT, 1990, p.14) se fazem presentes a todo
instante. As representações simbólicas invocadas em seus contextos específicos
permitem que percebamos os símbolos de modo dicotômico, antipodal: tais signos
estão carregados de juízos de valor e se aplicam à figura feminina. As
mulheres, de acordo com seu comportamento – percebido como adequado ou não em
determinado contexto histórico –, são rotuladas como Evas ou Marias,
purificadas ou poluídas, inocentes ou corrompidas(SCOTT, 1990, p.14). Nesse
sentido, apontado por Scott, podemos observar que, durante os festejos
carnavalescos em Porto Alegre, as atitudes femininas podiam ser louvadas e
reverenciadas pelos jornais ou recriminadas com acusações em torno da
moralidade e da licenciosidade. Todavia, devemos salientar que não acreditamos
em um consenso social relacionado a quais deveriam ser as posturas adequadas
para essas mulheres, pelo contrário, percebemos um conflito no qual muitas
delas continuavam a adotar práticas que não seriam, segundo o discurso da
época, adequadas às moças do Rio Grande.
No que se refere aos conceitos normativos
referidos por Scott, “expressos nas doutrinas religiosas, educativas,
científicas, políticas ou jurídicas” (SCOTT, 1990, p.14), entendemos que a
mudança nas estruturas políticas brasileiras – a partir do final do Império e
início da República e a instauração, no Rio Grande do Sul, de um governo
fortemente inspirado em um positivismo difuso – influenciou, de alguma forma,
em uma transformação das relações de gênero e nos espaços e lugares ocupados
pelas mulheres nos festejos carnavalescos. Isso se deve ao fato de que o modelo
de carnaval aqui estudado – representado, principalmente, pelas sociedades
Esmeralda e Venezianos – foi idealizado no final do século XIX, ainda no
período do Império, tendo desaparecido quase que ao mesmo tempo em que esse regime
político. Quando ocorre o ressurgimento dessas duas sociedades – já sob a
República e com o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) ocupando a
presidência do estado – percebemos uma mudança no que se refere às práticas e
lugares ocupados pelas mulheres durante os festejos, tendo a participação das
mulheres sofrido a mediação dos ideais de mulher difundidos pelo castilhismo e
sua interpretação do pensamento positivista, bem como as diretrizes do
catolicismo no Brasil (LEAL, 2013, p. 116-134)
Esses conceitos normativos que “tomam a
forma típica de uma oposição binária, que afirma de maneira categórica e sem
equívocos o sentido do masculino e do feminino” (SCOTT, 1990, p.14),
permitem-nos, ainda, por “em evidência as interpretações do sentido dos
símbolos, que se esforçam para limitar e conter suas possibilidades
metafóricas” (SCOTT, 1990, p.14), possibilitando-nos enxergar como “a história
posterior é escrita como se estas posições normativas fossem produto de um
consenso social mais do que um conflito” (SCOTT, 1990, p.15), pois
quando as(os) historiadoras(es) buscam encontrar as
maneiras pelas quais o conceito de gênero legitima e constrói as relações
sociais, elas(es) começam a compreender a natureza recíproca do gênero e da
sociedade e as maneiras particulares e situadas dentro de contextos específicos
, pelas quais a política constrói o gênero, e o gênero constrói a política (SCOTT,
1990, p.16).
Outra questão importante no que se refere
às análises acerca das relações de gênero é que não se pode reduzir o uso da
categoria ao sistema de parentesco, sendo necessária a inclusão de análises de
cunho político “bem como uma referência à organização social” (SCOTT, 1990,
p.15). Apesar das inúmeras regras sociais que tem base numa suposta
determinação biológica diferencial dos sexos, Scott defende a origem social das
próprias identificações de homens e mulheres, suas identidades subjetivas, pois
“os homens e as mulheres reais não cumprem sempre os termos de prescrições da
sua sociedade ou das nossas categorias de análise” (SCOTT, 1990, p.15). Desta
forma, devemos “examinar as maneiras pelas quais as identidades de gênero são
realmente construídas e relacionar seus achados com toda uma série de
atividades, de organizações e representações sociais, historicamente situados” (SCOTT,
1990, p.15).
Bourdieu, propõe que os gêneros devem ser
analisados como “habitus sexuados”(BOURDIEU, 2005, p.6), ou seja, como a
incorporação das disposições culturais do princípio de divisão sexual dominante
sobre os agentes sociais, resultado de um extraordinário trabalho coletivo de
socialização longa e contínua no qual “as identidades distintivas que a
arbitrariedade cultural institui se encarnam em habitus claramente
diferenciados” (BOURDIEU, 2005, p.6). As pré-disposições culturais de uma
sociedade é que formariam, portanto, o que é ser homem e o que é ser mulher,
pois o habitus, é o conjunto de disposições culturais incorporadas a
partir das estruturas materiais de um determinado período histórico e da
posição ocupada pelos diferentes agentes no espaço social, ou seja, “as
estruturas mentais através das quais eles apreendem o mundo social, [que] são
em essência produto da interiorização das estruturas do mundo social” (BOURDIEU,
2004, p.158),. As disposições dos agentes, as estruturas mentais através das
quais eles entendem e percebem o mundo social e, por conseguinte, a si mesmos,
formariam o que Bourdieu chamou de habitus, é a incorporação das
estruturas sociais pelo agentes, que passa a guiar sua conduta em sociedade.
Segundo Bourdieu,
a divisão entre os sexos parece estar “na ordem das
coisas”, como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de
ser inevitável: ela está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado nas
coisas (na casa, por exemplo, cujas partes são todas “sexuadas”),em todo o
mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos
agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de
ação (BOURDIEU, 2005, p.17).
Desta forma, como a própria Scott
ressalta, os “conceitos de gênero estruturam a percepção e a organização
concreta e simbólica de toda a vida social” (SCOTT, 1990, p.16) e as diferenças
sobre os corpos são chamadas a “testemunhar as relações sociais e as realidades
que não tem nada a ver com a sexualidade” (SCOTT, 1990, p.16).
Como dissemos o conceito de gênero
proposto por Scott se articula com a noção de poder. Bourdieu define poder
simbólico como “esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a
cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo o
exercem” (BOURDIEU,
1989, p.5). Segundo esse autor, as mulheres, desde o nascimento, por serem
mulheres, são tratadas como objetos cuja função é manter o capital simbólico –
especialmente a honra – em poder dos homens. Assim, desde o nascimento,
introjetamos construções culturais que evidenciam inúmeras desigualdades e
hierarquias, produzindo significados e testemunhando práticas de diferentes
gradações. Esse poder simbólico é exercido nas mais diversas instituições e
apreendido por nós como algo natural, sendo a dominação masculina entendida
como uma estrutura invariável, necessariamente incorporada por ambos os sexos.
O poder simbólico, portanto, é construtor
da realidade que conhecemos, ao mesmo passo que também é construído por ela e
se eterniza através dos instrumentos de dominação simbólica, como por exemplo,
os mitos, as lendas, as ideologias. No caso aqui em análise, tal poder
simbólico pode ser percebido nas comemorações carnavalescas: versos entregues
às rainhas; discursos jornalísticos em honra às mulheres, bem como as mais
diversas honrarias feitas a elas. No ano de 1909, por exemplo, a rainha da
Esmeralda, Laura Paes Brasil, foi comparada a Nossa Senhora. A
respectiva sociedade, durante seu desfile, distribuiu um verso com esse título:
Vai passar a Rainha – a
nossa Grã Senhora
Virgem Nossa Senhora
Imaculada e Casta
- qual a santa de um ádro,
ao resplendor da aurora
Ou qual mago Santélmo a quem
o mar se afasta!
Virgem Nossa
Senhora Aparecida em vasta
Nuvem d’ouro
e de sonho a qual o sol rubora.
Virgem Santa
Maria, a cujos pés se arrasta
A multidão
que geme e a Sua Graça implora...
Virgem Santa do Céu! Como
ela é bela e moça
E como, feito d’alma, o seu
olhar se adoça
E se expande e se estende e
sobre nós se reflora!
Ei-la!... Deixem passar o
seu ardor singelo!
Abram
alas!... Avante, ó devotos do belo:
Vai passar a
Rainha – a Nossa Grã Senhora! (A
Federação, 21 de fevereiro de 1909)
O carnaval do início do século XX (1906-
1914), em Porto Alegre, representado por Esmeralda e Venezianos, estava,
portanto, centralizado e figurado sobre o gênero feminino, servindo tal
centralização para o reforço de uma dominação masculina. Tal afirmação é
efetuada a partir da evidência de que a participação das mulheres nesta festa
foi determinada por uma influência de redes de poder existentes no seio dessas
sociedades carnavalescas, fortalecidas pelos poderes civis e militares de seus
dirigentes.
Em ambos os períodos se construiu
distintos símbolos e significados culturais a respeito das diferenças sexuais,
muitas vezes utilizados para a compreensão não só do carnaval, mas de todo
universo daquela sociedade. Afinal, o saber sobre os corpos femininos e
masculinos e a criação de determinadas características (a santa e a pecadora para
elas e heroico para eles) sobre estes corpos foi uma forma de hierarquizar
estas relações e está imbricado nas redes de poder.
A despeito de, comumente, o carnaval ser
interpretado como um espaço para a desconstrução de categorias estruturantes –
no qual o Brasil se situaria fora do tempo, fora do espaço, em comunhão com o
extraordinário –, vemos que, no início do século, em Porto
Alegre, isso não se verificou. Pelo contrário, houve um
reforço dessas hierarquias e dos valores apreendidos socialmente, no que tange
à relação entre homens e mulheres. Hierarquias que foram incorporadas por elas,
ao decidirem abandonar as brincadeiras do entrudo – espaço no qual elas
resistiam a essas imposições e exerciam seus “poderes” – em troca de elogiosas
e exaltadas aparições como ícones do reinado de Momo[3].
Enfim, no segundo ciclo das sociedades
carnavalescas Esmeralda e Os Venezianos, as mulheres passaram a ter uma
participação mais destacada, seja na organização dos préstitos e bailes, seja
no discurso da imprensa. As Marias do carnaval passaram a ocupar um lugar de
destaque. Todavia, essas sociedades carnavalescas estavam calcadas em relações
de poder muito sólidas, estabelecidas a partir de uma ampla participação de
militares e membros destacados da elite porto-alegrense, que faziam da moral e
dos bons costumes uma bandeira a ser erguida. Afinal, nosso carnaval era um
carnaval familiar, distinto, repleto de bons moços e gentis senhoras.
Procuramos demonstrar o quanto essas redes
de poder influenciaram na moralização das festas carnavalescas e na
participação das mulheres nesses festejos. As Evas do século XIX e seu
permissivo jogo de entrudo haviam dado lugar, pelo menos no carnaval das
sociedades, às “joias de valia suprema”, de caráter ilibado e moral irretocada.
Esse era o carnaval que esmeraldinos e venezianos propunham: uma festa de
elite, onde as filhas e mulheres dos seus sócios pudessem participar sem correr
os “riscos” da licenciosidade e da permissividade de outrora. Eram as Evas e as
Marias nas redes do poder!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOURDIEU,
Pierre, Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004, p.158.
BOURDIEU,
Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
BOURDIEU,
Pierre. Sobre o poder simbólico. In : O poder simbólico. Lisboa : DIFEL,
1989. p. 7-15.
BUTELLI, Felipe Gustavo. Ritos e
igualdade de gênero: uma análise da potencialidade de construção de
(des)igualdade de gênero nos ritos. Horizonte, Belo Horizonte, v. 6, n.
12, p.127-143, jun. 2008.
FERREIRA ,Athos Damasceno. O Carnaval pôrto-alegrense no século XIX.
Porto Alegre: Livraria do Globo, 1970.
LEAL, Caroline P. As Mulheres no Reinado de Momo:lugares e condições femininas no
carnaval de Porto Alegre (1869-1885). Dissertação de Mestrado, PPGH/PUCRS,
Porto Alegre, 2008.
LEAL, Caroline P. Festas Carnavalescas da Elite de Porto Alegre: Evas
e Marias nas redes do poder (1906-1914), Tese de Doutorado, PPGH/PUCRS,
Porto Alegre, 2013.
PORTO ALEGRE, Achylles.
História Popular de Porto Alegre. Porto Alegre, EU/Porto Alegre, 1994.
SCOTT. Joan. Gênero: uma categoria de
análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.16, n.2,
jul/dez 1990.
Texto apresentado originalmente no Encontro GT de Gênero/ANPUH, UFES, 2014.
Texto apresentado originalmente no Encontro GT de Gênero/ANPUH, UFES, 2014.
[1]
Gostaríamos de salientar que sabemos que existiam outras formas de comemoração
do carnaval e que as mulheres participaram de diferentes maneiras do festejo. Nosso
trabalho se centra na análise do carnaval proposto pela elite da cidade de
Porto Alegre.
[2] Gostaríamos
de ressaltar que havia outras formas de comemoração do período carnavalesco. No
entanto, para boa parte da imprensa porto-alegrense, se não havia Esmeralda e
Venezianos, não havia carnaval.
[3]
Evidenica-se também as margens de liberdade de muitos indivíduos diante dos
sistemas normativos - que foram propalados pelos festejos carnavalescos - e das
possibilidades de sua época. Encontramos muitas mulheres que, se analisarmos
sua vida privada, que não se amoldaram aos espaços e lugares destinados a elas,
questionando, de certa forma, a dominação masculina.