Carnaval, Gênero e Dominação Masculina: Relações de Gênero no Carnaval de Porto Alegre


Amelina Chagastelles - Rainha da Esmeralda (1910)
Resumo: Este artigo pretende apresentar uma análise a respeito das relações de gênero percebidas através do carnaval de Porto Alegre, a partir do renascimento das sociedades carnavalescas Esmeralda e Venezianos (1906-1914). Gostaríamos de apresentar como se estabeleceram relações de poderes a partir desta festividade, apontando para os significados construídos para a participação das mulheres no carnaval.
Palavras-chaves: gênero, carnaval, dominação masculina.
Caroline P. Leal

            Março de 1906! Ressurgem em Porto Alegre duas antigas sociedades carnavalescas – Esmeralda e Venezianos. Essas duas associações haviam sido fundadas no último quartel do século XIX , mas acabaram encerrando suas atividades duas décadas depois, para então ressurgirem nos festejos carnavalescos da cidade de Porto alegre, já no século XX.
A partir desse episódio – renascimento de Esmeralda e Venezianos – percebemos que a participação e a visualização a respeito das mulheres no carnaval também se modificariam. Podemos afirmar que “Evas” darão lugar à “Marias”, na busca de uma construção de um carnaval distinto e do reforço das hierarquias dominantes do masculino. Este artigo, portanto, visa apresentar como se estabeleceram relações de poderes a partir desta festividade, apontando para os significados construídos para a participação das mulheres no carnaval de Porto Alegre[1].




O surgimento da Sociedade Carnavalesca Esmeralda e da Sociedade Carnavalesca Os Venezianos, no ano de 1873, se deu em um momento em que era desejada uma modificação na participação das mulheres durante os festejos carnavalescos na cidade de Porto Alegre, a fim de promover uma readequação das condições e lugares socialmente desejáveis a elas. Com o nascimento dessas duas associações se teve a introdução de um novo modelo de carnaval, no qual essas agremiações rendiam preito a Momo, aos moldes de Veneza, com préstitos e bailes. Nesse novo modelo de carnaval as mulheres tiveram seus espaços limitados, pois ele seria promovido pelos homens dessas agremiações, sendo a função das mulheres, assistir ao desfile, aplaudi-lo e atirar flores aos rapazes que desfilavam (LEAL, 2008, p. 54-71).
O novo festejo veio em combate ao entrudo – brincadeira de origem ibérica que consistia em várias práticas, como a pregação de mentiras de pilhérias e, sobretudo, em molhar e sujar o adversário, o que aqui ocorria com maior frequência – no qual as mulheres tinham ativa participação, sendo as protagonistas da festa. John Luccock, viajante inglês que andou por esses pagos, em 1808, assim registrou:ficar de tocaia nas janelas e ensopar passantes distraídos era um dos prazeres prediletos das donzelas da terra, ainda mais se as vítimas fossem estrangeiro”(FERREIRA, 1970, p.10).
Além disso, o entrudo, por permitir um maior contato corporal e com isso a sexualidade feminina ser exercida com maior facilidade, era visto como um jogo licencioso. Aquiles Porto alegre, que fora membro de ambas as associações, em suas memórias a respeito da brincadeira, afirmava que: “[...]quanto moço poeta, quanto namorado maldoso, quanto D. João disfarçado não se servia do limão de cheiro para em declaração de amor espremendo-o com a intenção maliciosa, no colo ebúrneo, decotado, tentador de sua Dulcinéia encantadora?” (PORTO ALEGRE, 1994, p. 87). A brincadeira do entrudo e a liberação sexual por ele facilitada permitiam as mulheres também exercerem suas vontades sem maiores reprimendas.
A mudança para as sociedades carnavalescas e a intenção de extinção dessa prática era, dessa forma, uma forma de moralização do carnaval. A partir do nascimento das sociedades carnavalescas Esmeralda e Venezianos se deu a construção de um habitus, que visava manter as mulheres “em suas ideias, percepções, práticas ou ações, dentro dos padrões de comportamento e de auto-compreensão atribuídos pelo processo de socialização do sistema de dominação”(BUTELLI, 2008, p. 135). Elas sairiam do protagonismo que apresentavam nos jogos das molhadelas para a passividade de assistir ao préstito veneziano.
O protagonismo masculino era identificado não só na criação das sociedades carnavalescas, bem como na execução e exibição dos desfiles e bailes. Se esmeraldinos e venezianos já estavam a fazer toda essa “revolução”, ao promoverem um carnaval mais elegante e civilizado, cabia ao restante da população serem coadjuvantes da festa, ornamentando as janelas, abandonando o entrudo e atirando flores  a “nata dos moços” da terra.
As mulheres, portanto, passaram à condição de coadjuvantes das festas carnavalescas. Deveriam assistir ao desfile dos rapazes, aplaudi-los e jogar-lhes flores. O carnaval de 1875 foi descrito como animadíssimo. Esmeralda e Venezianos teriam disputado a supremacia e deste combate “deu em resultado ficar o campo juncado de ... flores, tal foi o empenho das moças em jogar-lhes lindos buquês” (FERREIRA, 1970, p.39). 
Neste primeiro ciclo das sociedades carnavalescas, o discurso a respeito do carnaval buscava inculcar coletivamente a superioridade masculina através de um discurso virilizante da folia de Momo. Fazendo uso de adjetivos como heroico e moderno, buscava-se a construção de uma festa que fazia uso de símbolos culturalmente compreendidos como masculinos, da qual as mulheres não fariam parte, exceto como apreciadoras. Mesmo com tamanho controle, as mulheres continuaram a brincar o entrudo, inclusive nos bailes promovidos por essas sociedades, e passaram a participar da organização e execução dos festejos.
Ao chegar à década de oitenta daquela centúria, Esmeralda e Venezianos ingressariam em crises que as afastariam do carnaval. Entre os argumentos utilizados para esse fim, estava a permanência do gosto feminino pelas molhadelas. Os Venezianos, em 1882, enfatizava seu incômodo com a permanência do entrudo, “fonte de quanta constipação, pneumonia e tifo, há, que flagela e dissipa a humanidade!...” (Jornal do Comércio, 18 de fevereiro de 1882, p.2). Mas o que mais lhes horrorizava era “ver que esta plêiade de epidemias dimana de delicadas e alvas mãozinhas que parecem fadadas para derramarem consolações sobre a humanidade sofredora!!!...”(Jornal do Comércio, 18 de fevereiro de 1882, p.2). Eram Evas a pecar no paraíso!
Com o desaparecimento das sociedades carnavalescas Esmeralda e Venezianos e o aparecimento de novas formas de brincar a festa – que passou a ser promovida por outros atores não pertencentes às elites da cidade –, os jornalistas da capital demonstravam um grande descontentamento com o festejo. O jornal O Independente, alertava para uma “licenciosa libertinagem que vai aos poucos corrompendo a nossa juventude, em uma ameaça feroz e real às bases sacratíssimas do lar, à moral da família que é o fundamento do edifício social. Todas essas considerações vem a propósito de festa pagã e lúbrica do carnaval” (O Independente, 9 de março de 1905, p.3). Tal insatisfação também residia no perigo da “contaminação social” proporcionada pelo carnaval, sobretudo, na figura do entrudo, que além de ser “bastante ofensivo dos bons costumes” (Correio do Povo, 04 de março de 1900, p.2) estava sendo feito “não já entre parceiros, mas, o que mais é, entre tout le monde...” (Correio do Povo, 04 de março de 1900, p.2).
No início do século XX, contudo, Esmeralda e Venezianos iriam ressurgir. Essa sua segunda fase, porém, foi marcada por uma série de diferenças em relação ao seu primeiro ciclo, sobretudo no que tange à participação feminina: as mulheres passaram a ser convocadas a organizar o carnaval da cidade e sua participação era enaltecida pelos jornais da capital; elas passaram a ser louvadas por seus comportamentos irrepreensíveis e pela sua conduta moral, livrando a cidade daquela concupiscência deflagrada na virada do século. Observamos que, neste segundo ciclo, as mulheres que participavam das sociedades eram, normalmente, filhas de importantes membros da elite porto-alegrense, sobretudo da elite política e militar. Evidenciamos ainda que, a partir desse momento, a inculcação da ordem simbólica de dominação masculina se deu de modo diferente, não mais pela exaltação do discurso viril do carnaval, mas através da consagração das mulheres, ressaltando-se características “femininas do carnaval”. Quando do reaparecimento da Esmeralda, em 1907, o Correio do Povo louvava o retorno do carnaval[2], que reaparecia com a mesma aparência de antigamente, porém com algumas particularidades. Segundo o jornal, “vinha Ele, senão com a mesma cara, com o mesmo aspecto de outrora”. Porém, ao olhar mais detidamente, reparava em “certas minudências”: “o Carnaval reaparecia sob uma feição acentuadamente feminina”. Com espanto, observava que “não restava a menor dúvida: era a linda, a grácil Mulher porto-alegrense que fazia o Carnaval. Por isso vinha ele tão garboso, tão gentil e tão chic. Por isso tinha sido possível o milagre de sua ressurreição” (Correio do Povo, 17 de fevereiro de 1907, p.4).
Apesar de uma aparente liberdade das mulheres, na qual elas podiam se reunir para organizar o festejo, desfilar, participar dos bailes, sendo exaltadas por tal participação, acreditamos que o que houve foi um reforço dessa dominação masculina. Desta forma, as mulheres que participavam das sociedades abdicaram de maiores momentos de liberdade oferecidos pelas brincadeiras do entrudo em troca da consagração e aplauso oferecidos pelos apreciadores das referidas agremiações carnavalescas após seu ressurgimento. Eram as Marias envaidecidas a regenerar o carnaval!
Ressalta-se, assim, uma modificação tanto na participação feminina no festejo, quanto nos atributos que lhes eram designados: num primeiro momento, elas participavam apenas como espectadoras e embelezadoras da festa, foram atacadas por serem as responsáveis pelo fim do carnaval civilizado, por se deixarem levar pelo atrevido entrudo. Foram uma das causas do fracasso do carnaval elegante por serem as maiores entusiastas com tão “perniciosa” brincadeira. Depois, com o renascimento das sociedades carnavalescas, passaram a organizar os festejos burlescos, e acima de tudo, representavam a figura do bom carnaval, da moral e bons costumes, a representação da regeneração moral do carnaval. Desta forma, as referências feitas pelo meio jornalístico nos permitiram problematizar o processo de transformação que ocorreu nas relações de gênero durante os festejos carnavalescos em Porto Alegre, ao mostrar homens e mulheres mudando de posição na festa, bem como os significados construídos para ambas as participações.
Entendemos gênero, tal qual Joan Scott para quem ele é o saber a respeito das diferenças sexuais, “um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e [...] o primeiro modo de dar significados às relações de poder” (SCOTT, 1990, p.15), pois esse conhecimento funda significados sobre as diferenças corpóreas, sendo primeiro campo por meio do qual o poder é articulado. De acordo com a autora, “as mudanças na organização das relações sociais correspondem sempre a mudanças nas representações de poder, mas a direção da mudança não segue necessariamente um único sentido” (SCOTT, 1990, p.14). Dessa forma, o gênero demandaria quatro aspectos fundamentais a saber: os símbolos, os conceitos normativos, uma noção de política e referências às instituições bem como a organização social e por fim a identidade subjetiva. Este processo de construção das relações de gênero pode ser usado para examinar qualquer processo social, como no caso aqui em questão, o carnaval.
O carnaval é uma festa repleta de simbologia, na qual os signos “culturalmente disponíveis que evocam representações simbólicas” (SCOTT, 1990, p.14) se fazem presentes a todo instante. As representações simbólicas invocadas em seus contextos específicos permitem que percebamos os símbolos de modo dicotômico, antipodal: tais signos estão carregados de juízos de valor e se aplicam à figura feminina. As mulheres, de acordo com seu comportamento – percebido como adequado ou não em determinado contexto histórico –, são rotuladas como Evas ou Marias, purificadas ou poluídas, inocentes ou corrompidas(SCOTT, 1990, p.14). Nesse sentido, apontado por Scott, podemos observar que, durante os festejos carnavalescos em Porto Alegre, as atitudes femininas podiam ser louvadas e reverenciadas pelos jornais ou recriminadas com acusações em torno da moralidade e da licenciosidade. Todavia, devemos salientar que não acreditamos em um consenso social relacionado a quais deveriam ser as posturas adequadas para essas mulheres, pelo contrário, percebemos um conflito no qual muitas delas continuavam a adotar práticas que não seriam, segundo o discurso da época, adequadas às moças do Rio Grande.
No que se refere aos conceitos normativos referidos por Scott, “expressos nas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas” (SCOTT, 1990, p.14), entendemos que a mudança nas estruturas políticas brasileiras – a partir do final do Império e início da República e a instauração, no Rio Grande do Sul, de um governo fortemente inspirado em um positivismo difuso – influenciou, de alguma forma, em uma transformação das relações de gênero e nos espaços e lugares ocupados pelas mulheres nos festejos carnavalescos. Isso se deve ao fato de que o modelo de carnaval aqui estudado – representado, principalmente, pelas sociedades Esmeralda e Venezianos – foi idealizado no final do século XIX, ainda no período do Império, tendo desaparecido quase que ao mesmo tempo em que esse regime político. Quando ocorre o ressurgimento dessas duas sociedades – já sob a República e com o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) ocupando a presidência do estado – percebemos uma mudança no que se refere às práticas e lugares ocupados pelas mulheres durante os festejos, tendo a participação das mulheres sofrido a mediação dos ideais de mulher difundidos pelo castilhismo e sua interpretação do pensamento positivista, bem como as diretrizes do catolicismo no Brasil (LEAL, 2013, p. 116-134)
Esses conceitos normativos que “tomam a forma típica de uma oposição binária, que afirma de maneira categórica e sem equívocos o sentido do masculino e do feminino” (SCOTT, 1990, p.14), permitem-nos, ainda, por “em evidência as interpretações do sentido dos símbolos, que se esforçam para limitar e conter suas possibilidades metafóricas” (SCOTT, 1990, p.14), possibilitando-nos enxergar como “a história posterior é escrita como se estas posições normativas fossem produto de um consenso social mais do que um conflito” (SCOTT, 1990, p.15), pois
quando as(os) historiadoras(es) buscam encontrar as maneiras pelas quais o conceito de gênero legitima e constrói as relações sociais, elas(es) começam a compreender a natureza recíproca do gênero e da sociedade e as maneiras particulares e situadas dentro de contextos específicos , pelas quais a política constrói o gênero, e o gênero constrói a política (SCOTT, 1990, p.16).
Outra questão importante no que se refere às análises acerca das relações de gênero é que não se pode reduzir o uso da categoria ao sistema de parentesco, sendo necessária a inclusão de análises de cunho político “bem como uma referência à organização social” (SCOTT, 1990, p.15). Apesar das inúmeras regras sociais que tem base numa suposta determinação biológica diferencial dos sexos, Scott defende a origem social das próprias identificações de homens e mulheres, suas identidades subjetivas, pois “os homens e as mulheres reais não cumprem sempre os termos de prescrições da sua sociedade ou das nossas categorias de análise” (SCOTT, 1990, p.15). Desta forma, devemos “examinar as maneiras pelas quais as identidades de gênero são realmente construídas e relacionar seus achados com toda uma série de atividades, de organizações e representações sociais, historicamente situados” (SCOTT, 1990, p.15).
Bourdieu, propõe que os gêneros devem ser analisados como “habitus sexuados”(BOURDIEU, 2005, p.6), ou seja, como a incorporação das disposições culturais do princípio de divisão sexual dominante sobre os agentes sociais, resultado de um extraordinário trabalho coletivo de socialização longa e contínua no qual “as identidades distintivas que a arbitrariedade cultural institui se encarnam em habitus claramente diferenciados” (BOURDIEU, 2005, p.6). As pré-disposições culturais de uma sociedade é que formariam, portanto, o que é ser homem e o que é ser mulher, pois o habitus, é o conjunto de disposições culturais incorporadas a partir das estruturas materiais de um determinado período histórico e da posição ocupada pelos diferentes agentes no espaço social, ou seja, “as estruturas mentais através das quais eles apreendem o mundo social, [que] são em essência produto da interiorização das estruturas do mundo social” (BOURDIEU, 2004, p.158),. As disposições dos agentes, as estruturas mentais através das quais eles entendem e percebem o mundo social e, por conseguinte, a si mesmos, formariam o que Bourdieu chamou de habitus, é a incorporação das estruturas sociais pelo agentes, que passa a guiar sua conduta em sociedade. Segundo Bourdieu,
a divisão entre os sexos parece estar “na ordem das coisas”, como se diz por vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela está presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas (na casa, por exemplo, cujas partes são todas “sexuadas”),em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação  (BOURDIEU, 2005, p.17).
Desta forma, como a própria Scott ressalta, os “conceitos de gênero estruturam a percepção e a organização concreta e simbólica de toda a vida social” (SCOTT, 1990, p.16) e as diferenças sobre os corpos são chamadas a “testemunhar as relações sociais e as realidades que não tem nada a ver com a sexualidade” (SCOTT, 1990, p.16).
Como dissemos o conceito de gênero proposto por Scott se articula com a noção de poder. Bourdieu define poder simbólico como “esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo o exercem” (BOURDIEU, 1989, p.5). Segundo esse autor, as mulheres, desde o nascimento, por serem mulheres, são tratadas como objetos cuja função é manter o capital simbólico – especialmente a honra – em poder dos homens. Assim, desde o nascimento, introjetamos construções culturais que evidenciam inúmeras desigualdades e hierarquias, produzindo significados e testemunhando práticas de diferentes gradações. Esse poder simbólico é exercido nas mais diversas instituições e apreendido por nós como algo natural, sendo a dominação masculina entendida como uma estrutura invariável, necessariamente incorporada por ambos os sexos.
O poder simbólico, portanto, é construtor da realidade que conhecemos, ao mesmo passo que também é construído por ela e se eterniza através dos instrumentos de dominação simbólica, como por exemplo, os mitos, as lendas, as ideologias. No caso aqui em análise, tal poder simbólico pode ser percebido nas comemorações carnavalescas: versos entregues às rainhas; discursos jornalísticos em honra às mulheres, bem como as mais diversas honrarias feitas a elas. No ano de 1909, por exemplo, a rainha da Esmeralda, Laura Paes Brasil, foi comparada a Nossa Senhora. A respectiva sociedade, durante seu desfile, distribuiu um verso com esse título:
Vai passar a Rainha – a nossa Grã Senhora
Virgem Nossa Senhora Imaculada e Casta
- qual a santa de um ádro, ao resplendor da aurora
Ou qual mago Santélmo a quem o mar se afasta!

Virgem Nossa Senhora Aparecida em vasta
Nuvem d’ouro e de sonho a qual o sol rubora.
Virgem Santa Maria, a cujos pés se arrasta
A multidão que geme e a Sua Graça implora...

Virgem Santa do Céu! Como ela é bela e moça
E como, feito d’alma, o seu olhar se adoça
E se expande e se estende e sobre nós se reflora!
Ei-la!... Deixem passar o seu ardor singelo!

Abram alas!... Avante, ó devotos do belo:
Vai passar a Rainha – a Nossa Grã Senhora! (A Federação, 21 de fevereiro de 1909)

O carnaval do início do século XX (1906- 1914), em Porto Alegre, representado por Esmeralda e Venezianos, estava, portanto, centralizado e figurado sobre o gênero feminino, servindo tal centralização para o reforço de uma dominação masculina. Tal afirmação é efetuada a partir da evidência de que a participação das mulheres nesta festa foi determinada por uma influência de redes de poder existentes no seio dessas sociedades carnavalescas, fortalecidas pelos poderes civis e militares de seus dirigentes.
Em ambos os períodos se construiu distintos símbolos e significados culturais a respeito das diferenças sexuais, muitas vezes utilizados para a compreensão não só do carnaval, mas de todo universo daquela sociedade. Afinal, o saber sobre os corpos femininos e masculinos e a criação de determinadas características (a santa e a pecadora para elas e heroico para eles) sobre estes corpos foi uma forma de hierarquizar estas relações e está imbricado nas redes de poder.
A despeito de, comumente, o carnaval ser interpretado como um espaço para a desconstrução de categorias estruturantes – no qual o Brasil se situaria fora do tempo, fora do espaço, em comunhão com o extraordinário –, vemos que, no início do século, em Porto
Alegre, isso não se verificou. Pelo contrário, houve um reforço dessas hierarquias e dos valores apreendidos socialmente, no que tange à relação entre homens e mulheres. Hierarquias que foram incorporadas por elas, ao decidirem abandonar as brincadeiras do entrudo – espaço no qual elas resistiam a essas imposições e exerciam seus “poderes” – em troca de elogiosas e exaltadas aparições como ícones do reinado de Momo[3].
Enfim, no segundo ciclo das sociedades carnavalescas Esmeralda e Os Venezianos, as mulheres passaram a ter uma participação mais destacada, seja na organização dos préstitos e bailes, seja no discurso da imprensa. As Marias do carnaval passaram a ocupar um lugar de destaque. Todavia, essas sociedades carnavalescas estavam calcadas em relações de poder muito sólidas, estabelecidas a partir de uma ampla participação de militares e membros destacados da elite porto-alegrense, que faziam da moral e dos bons costumes uma bandeira a ser erguida. Afinal, nosso carnaval era um carnaval familiar, distinto, repleto de bons moços e gentis senhoras.
Procuramos demonstrar o quanto essas redes de poder influenciaram na moralização das festas carnavalescas e na participação das mulheres nesses festejos. As Evas do século XIX e seu permissivo jogo de entrudo haviam dado lugar, pelo menos no carnaval das sociedades, às “joias de valia suprema”, de caráter ilibado e moral irretocada. Esse era o carnaval que esmeraldinos e venezianos propunham: uma festa de elite, onde as filhas e mulheres dos seus sócios pudessem participar sem correr os “riscos” da licenciosidade e da permissividade de outrora. Eram as Evas e as Marias nas redes do poder!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIEU, Pierre, Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004, p.158.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
BOURDIEU, Pierre. Sobre o poder simbólico. In : O poder simbólico. Lisboa : DIFEL, 1989. p. 7-15.
BUTELLI, Felipe Gustavo. Ritos e igualdade de gênero: uma análise da potencialidade de construção de (des)igualdade de gênero nos ritos. Horizonte, Belo Horizonte, v. 6, n. 12, p.127-143, jun. 2008.
FERREIRA ,Athos Damasceno. O Carnaval pôrto-alegrense no século XIX. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1970.
LEAL, Caroline P. As Mulheres no Reinado de Momo:lugares e condições femininas no carnaval de Porto Alegre (1869-1885). Dissertação de Mestrado, PPGH/PUCRS, Porto Alegre, 2008.
LEAL, Caroline P. Festas Carnavalescas da Elite de Porto Alegre: Evas e Marias nas redes do poder (1906-1914), Tese de Doutorado, PPGH/PUCRS, Porto Alegre, 2013.
PORTO ALEGRE, Achylles. História Popular de Porto Alegre. Porto Alegre, EU/Porto Alegre, 1994.
SCOTT. Joan. Gênero: uma categoria de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.16, n.2, jul/dez 1990.

Texto apresentado originalmente no Encontro GT de Gênero/ANPUH, UFES, 2014.



[1] Gostaríamos de salientar que sabemos que existiam outras formas de comemoração do carnaval e que as mulheres participaram de diferentes maneiras do festejo. Nosso trabalho se centra na análise do carnaval proposto pela elite da cidade de Porto Alegre.
[2] Gostaríamos de ressaltar que havia outras formas de comemoração do período carnavalesco. No entanto, para boa parte da imprensa porto-alegrense, se não havia Esmeralda e Venezianos, não havia carnaval.
[3] Evidenica-se também as margens de liberdade de muitos indivíduos diante dos sistemas normativos - que foram propalados pelos festejos carnavalescos - e das possibilidades de sua época. Encontramos muitas mulheres que, se analisarmos sua vida privada, que não se amoldaram aos espaços e lugares destinados a elas, questionando, de certa forma, a dominação masculina.