Em Porto Alegre, perseguição ao entrudo e criação das sociedades carnavalescas tentaram afastar as mulheres da folia
Domingo
de carnaval em Porto Alegre, e quem mandava na festa era o entrudo: moças e
rapazes atiravam limões de cheiro, água e farinha uns nos outros. A brincadeira
de origem ibérica era proibida pelo Código de Posturas Municipais desde 1837,
mas persistia a cada ano. Em 1873, sofreu mais um ataque público.
“Temos tantos carros na cidade e uma rapaziada
que se distingue por seu bom gosto e fino espírito (é preciso elogiá-la); por
que não havemos de organizar uma sociedade carnavalesca que enterre para sempre
o antiquário Entrudo?”, questionou Desjanais, colunista do jornal A Reforma. Atrás do pseudônimo quem
escrevia era Joaquim Antônio Vasques, deputado provincial e homem de confiança
de Gaspar Silveira Martins, o cacique supremo dos liberais gaúchos. Naquele
carnaval, sua coluna
conclamava os jovens da cidade a abandonarem a antiga brincadeira de rua de origem
ibérica e, no lugar dela, adotarem o modelo de carnaval veneziano, praticado
também em Nice e Paris – que chegara ao Rio de Janeiro em 1855.
Seu
pedido foi logo atendido: uma semana depois, surgia a primeira sociedade
carnavalesca da cidade, a Esmeralda Porto-Alegrense, e em mais dois dias veio a
segunda, Os Venezianos. Se antes o
carnaval era comemorado com muita correria e molhadelas, agora seria festejado
através de elegantes bailes e desfile de carros alegóricos.
Mas
por que o antigo festejo incomodava tanto Desjanais, as autoridades e a alta sociedade porto-alegrense? Parte da
resposta está na participação das mulheres.
Elas
eram ativas jogadoras do entrudo. Protagonistas desse carnaval, tanto as
mulheres da elite quanto as de classes populares ficavam munidas de água em
bacias e baldes nas janelas esperando os rapazes para jogarem, ou então saíam
às ruas com seus limões de cheiro para se entregar com ardor a brincadeira.
Durante
o entrudo havia grandes oportunidades de liberações sexuais. Segundo o jornal A Reforma, ele dava “ao belo sexo o
delírio das bacantes” (1875), permitindo que fosse empregado “com toda a sem
cerimônia um dos nossos cinco sentidos, coisa que nos é inteiramente proibida
nos tempos comuns” (1873). Era o entrudo um dos poucos momentos em que as
senhoritas poderiam exercer sua sexualidade de forma mais declarada? Era ele
uma ocasião de subversão da ordem sexual?
O
entrudo proporcionava a perda do controle dos pais sobre o comportamento das
mulheres, pois durante o festejo haveria o perigo dos “abraços traiçoeiros que
começam na porta da rua e iam terminar mesmo nas barbas dos senhores pais de
família”, como escreveu A Reforma em
fevereiro de 1875. Essa licenciosidade da brincadeira era justamente onde
residia sua principal reprimenda.
Em
fins do século XIX, Porto Alegre vivia um período de higienização tanto física e
quanto moral, com o estabelecimento de novos padrões de conduta e de
sociabilidade. Entre os argumentos mais utilizados pela imprensa
porto-alegrense para condenar as práticas do entrudo, estava o que atribuía ao
jogo um caráter de risco à saúde pública. Na década de 1850, a cidade havia
enfrentado ameaças de epidemias de cólera e de febre escarlatina, e os jornais valiam-se
dessa memória para amedrontar os foliões e dissuadi-los de entrudar.
Eram
tempos de perseguição sanitária e moral, e nem as damas da alta sociedade
escapavam das críticas quando se permitiam dar continuidade à brincadeira. Foi
o caso da primeira-dama da província do Rio Grande do Sul, Maria Isabel de
Souza Alvim, que teria revivido o jogo por volta de 1869. A “ex-marquesa de
Monte Alegre”, como foi chamada pelo jornal A
Reforma (em referência ao seu primeiro marido, falecido), sofreu ataques maliciosos
à sua conduta: “que esta renovação do passado fosse obra da ex-marquesa nada há
que admirar, pois é muito conhecida pelo seu ardente temperamento e
extraordinário calor”. Mulheres que ousassem entrudar eram classificadas como
imorais e despudoradas, e não poderiam servir de exemplo. Seu comportamento não
era “digno das humanas filhas do Rio Grande”.
Quando
surgem as sociedades carnavalescas, alteram-se os lugares e as condições
atribuídas às mulheres. O clamor público de Desjanais pela criação das
sociedades carnavalescas é dirigido aos rapazes: que aparecesse “aí um mais
corajoso, tome a iniciativa, e verá que há de ser acompanhado. Se aparecer este
herói, prometo desde já endeusá-lo, num discurso ad-hoc que há de ser proferido
na sexta-feira gorda de 1874, por ocasião do banquete oferecido pelo Deus Baco,
em regozijo à entrada da Quaresma”. Não
à toa, foram dois grupos de rapazes que se reuniram e criaram as sociedades
Esmeralda e Venezianos. Nesse novo modelo de carnaval, o protagonismo passa a
ser masculino. Os rapazes organizarão o festejo (préstitos e bailes) e
desfilarão pelas ruas da cidade.
O
carnaval de 1875, o segundo após o surgimento dessas associações, foi descrito
como animadíssimo pelos jornais da cidade. Esmeralda e Venezianos teriam
disputado a supremacia e deste combate “deu em resultado ficar o campo juncado
de... flores, tal foi o empenho das moças em jogar-lhes lindos buquês”. Em vez
de se envolverem em correrias e se atirarem líquidos e limões de cheiros, às
mulheres agora cabia apenas o papel de expectadoras, apreciando o desfile e
atirando aos jovens flores como sinal de aprovação.
Nesse
novo lugar passivo, elas começaram a receber outros adjetivos. No carnaval de 1875,
foram distribuídos versos – chamados “puffs”
– para a população, enquanto as sociedades percorriam as ruas da capital da
província. O enredo da sociedade Venezianos chamava-se “Profissão de Fé”, e deixava claro o comportamento que a
mulher deveria ter durante a folia:
Belas Deidades que sorris de amores
às brandas auras desse céu azul,.
anjos na forma - no perfume,
flores,
curvando a haste às virações do
sul...
Castas donzelas desta terra
ingente,
lindas estrelas de eternal fulgor,
daí hoje aos filhos da Veneza
ardente,
flores, sorrisos e um olhar de
amor...
Eles são todos galhofeiros entes,
castos, bondosos e gentis até...
Se são devotos, santarrões e
crentes,
é bem que ouçais... “Profissão de
Fé”!
[...]Mas eles crêem nos olhares
puros
de vós, ó virgem de brilhante
alvor,
nesses cabelos divinais, escuros,
onde se enreda apaixonado amor...
Crêem no colo que alabastro imita,
nesses contornos palpitando
assim...
Crêem nos laços da serosa fita
e nesses lábios de eternal
rubim!...[...]
Por isso, ó virgens desta terra
ingente,
que sois estrelas de eternal
fulgor,
daí hoje aos filhos da Veneza
ardente,
flores, sorrisos... e um olhar de
amor.
Se
no jogo do entrudo as mulheres seriam as despudoradas e concupiscentes
folionas, na festa promovida pelas sociedades carnavalescas elas eram descritas
como “belas deidades”, “castas donzelas” e “virgens de brilhante alvor” que se
entregavam aos “amores santos” da Venezianos. As carícias, namoricos e excessos
cometidos com a antiga brincadeira deveriam agora ser substituídos pelos
olhares de amores trocados com rapazes castos, brincalhões, bondosos e gentis,
como eles se autodeclaravam.
O
surgimento das sociedades carnavalescas em Porto Alegre coincide com uma
tentativa de adequação da postura das mulheres durante o reinado de Momo. Esperava-se
delas um comportamento que fosse casto e imaculado, sem as malícias do entrudo.
Era a exaltação do recato e da moral como condutas ideais para o gênero
feminino.
De
lascivas e promíscuas a virgens de brilhante alvor. Do protagonismo nas ruas e
nas janelas à passividade de aplaudir os bailes e desfiles. A mudança na forma
de se comemorar o carnaval enquadrou as folionas da cidade em um novo cenário. Mas
isso não duraria muito. Mulheres se recusariam a seguir as condições impostas
pela sociedade, desafiando as normas e passando a participar ativamente da
festa, além de permanecerem fiéis aos antigos costumes entrudescos. Por mais
que se tente regulá-lo ao longo do tempo, o carnaval não perde seu espírito
libertário e questionador de convenções. Nessa festa, sempre haverá lugar para
as mulheres.
Olhos
Mulheres
que ousassem entrudar eram classificadas como imorais e despudoradas. Seu
comportamento não era “digno das humanas filhas do Rio Grande”.
Na
festa promovida pelas sociedades carnavalescas elas eram descritas como “belas
deidades”, “castas donzelas” e “virgens de brilhante alvor”.
Saiba
mais
LAZZARI, Alexandre. Coisas para o povo não fazer: carnaval em Porto Alegre (1870-1915).
Edunicamp: Campinas, 2001.
FERREIRA, Athos Damasceno. O Carnaval pôrto-alegrense no século XIX.
Porto Alegre: Livraria do Globo, 1970.
Artigo publicado originalmente na Revista de História da Biblioteca Nacional, v. 11, p. 64, 2016.