Recatadas de Momo

Em Porto Alegre, perseguição ao entrudo e criação das sociedades carnavalescas tentaram afastar as mulheres da folia

Rainha Venezianos 1885
Domingo de carnaval em Porto Alegre, e quem mandava na festa era o entrudo: moças e rapazes atiravam limões de cheiro, água e farinha uns nos outros. A brincadeira de origem ibérica era proibida pelo Código de Posturas Municipais desde 1837, mas persistia a cada ano. Em 1873, sofreu mais um ataque público.
“Temos tantos carros na cidade e uma rapaziada que se distingue por seu bom gosto e fino espírito (é preciso elogiá-la); por que não havemos de organizar uma sociedade carnavalesca que enterre para sempre o antiquário Entrudo?”, questionou Desjanais, colunista do jornal A Reforma. Atrás do pseudônimo quem escrevia era Joaquim Antônio Vasques, deputado provincial e homem de confiança de Gaspar Silveira Martins, o cacique supremo dos liberais gaúchos. Naquele carnaval, sua coluna conclamava os jovens da cidade a abandonarem a antiga brincadeira de rua de origem ibérica e, no lugar dela, adotarem o modelo de carnaval veneziano, praticado também em Nice e Paris – que chegara ao Rio de Janeiro em 1855.
Seu pedido foi logo atendido: uma semana depois, surgia a primeira sociedade carnavalesca da cidade, a Esmeralda Porto-Alegrense, e em mais dois dias veio a segunda, Os Venezianos. Se antes o carnaval era comemorado com muita correria e molhadelas, agora seria festejado através de elegantes bailes e desfile de carros alegóricos.
Mas por que o antigo festejo incomodava tanto Desjanais, as autoridades e a alta sociedade porto-alegrense? Parte da resposta está na participação das mulheres.
Elas eram ativas jogadoras do entrudo. Protagonistas desse carnaval, tanto as mulheres da elite quanto as de classes populares ficavam munidas de água em bacias e baldes nas janelas esperando os rapazes para jogarem, ou então saíam às ruas com seus limões de cheiro para se entregar com ardor a brincadeira.
Durante o entrudo havia grandes oportunidades de liberações sexuais. Segundo o jornal A Reforma, ele dava “ao belo sexo o delírio das bacantes” (1875), permitindo que fosse empregado “com toda a sem cerimônia um dos nossos cinco sentidos, coisa que nos é inteiramente proibida nos tempos comuns” (1873). Era o entrudo um dos poucos momentos em que as senhoritas poderiam exercer sua sexualidade de forma mais declarada? Era ele uma ocasião de subversão da ordem sexual?
O entrudo proporcionava a perda do controle dos pais sobre o comportamento das mulheres, pois durante o festejo haveria o perigo dos “abraços traiçoeiros que começam na porta da rua e iam terminar mesmo nas barbas dos senhores pais de família”, como escreveu A Reforma em fevereiro de 1875. Essa licenciosidade da brincadeira era justamente onde residia sua principal reprimenda.
Em fins do século XIX, Porto Alegre vivia um período de higienização tanto física e quanto moral, com o estabelecimento de novos padrões de conduta e de sociabilidade. Entre os argumentos mais utilizados pela imprensa porto-alegrense para condenar as práticas do entrudo, estava o que atribuía ao jogo um caráter de risco à saúde pública. Na década de 1850, a cidade havia enfrentado ameaças de epidemias de cólera e de febre escarlatina, e os jornais valiam-se dessa memória para amedrontar os foliões e dissuadi-los de entrudar.
Eram tempos de perseguição sanitária e moral, e nem as damas da alta sociedade escapavam das críticas quando se permitiam dar continuidade à brincadeira. Foi o caso da primeira-dama da província do Rio Grande do Sul, Maria Isabel de Souza Alvim, que teria revivido o jogo por volta de 1869. A “ex-marquesa de Monte Alegre”, como foi chamada pelo jornal A Reforma (em referência ao seu primeiro marido, falecido), sofreu ataques maliciosos à sua conduta: “que esta renovação do passado fosse obra da ex-marquesa nada há que admirar, pois é muito conhecida pelo seu ardente temperamento e extraordinário calor”. Mulheres que ousassem entrudar eram classificadas como imorais e despudoradas, e não poderiam servir de exemplo. Seu comportamento não era “digno das humanas filhas do Rio Grande”.
Quando surgem as sociedades carnavalescas, alteram-se os lugares e as condições atribuídas às mulheres. O clamor público de Desjanais pela criação das sociedades carnavalescas é dirigido aos rapazes: que aparecesse “aí um mais corajoso, tome a iniciativa, e verá que há de ser acompanhado. Se aparecer este herói, prometo desde já endeusá-lo, num discurso ad-hoc que há de ser proferido na sexta-feira gorda de 1874, por ocasião do banquete oferecido pelo Deus Baco, em regozijo à entrada da Quaresma”.  Não à toa, foram dois grupos de rapazes que se reuniram e criaram as sociedades Esmeralda e Venezianos. Nesse novo modelo de carnaval, o protagonismo passa a ser masculino. Os rapazes organizarão o festejo (préstitos e bailes) e desfilarão pelas ruas da cidade.
O carnaval de 1875, o segundo após o surgimento dessas associações, foi descrito como animadíssimo pelos jornais da cidade. Esmeralda e Venezianos teriam disputado a supremacia e deste combate “deu em resultado ficar o campo juncado de... flores, tal foi o empenho das moças em jogar-lhes lindos buquês”. Em vez de se envolverem em correrias e se atirarem líquidos e limões de cheiros, às mulheres agora cabia apenas o papel de expectadoras, apreciando o desfile e atirando aos jovens flores como sinal de aprovação.  
Nesse novo lugar passivo, elas começaram a receber outros adjetivos. No carnaval de 1875, foram distribuídos versos – chamados “puffs” – para a população, enquanto as sociedades percorriam as ruas da capital da província. O enredo da sociedade Venezianos chamava-se “Profissão de Fé”, e deixava claro o comportamento que a mulher deveria ter durante a folia:
Belas Deidades que sorris de amores
às brandas auras desse céu azul,.
anjos na forma - no perfume, flores,
curvando a haste às virações do sul...

Castas donzelas desta terra ingente,
lindas estrelas de eternal fulgor,
daí hoje aos filhos da Veneza ardente,
flores, sorrisos e um olhar de amor...

Eles são todos galhofeiros entes,
castos, bondosos e gentis até...
Se são devotos, santarrões e crentes,
é bem que ouçais... “Profissão de Fé”!

[...]Mas eles crêem nos olhares puros
de vós, ó virgem de brilhante alvor,
nesses cabelos divinais, escuros,
onde se enreda apaixonado amor...
Crêem no colo que alabastro imita,
nesses contornos palpitando assim...
Crêem nos laços da serosa fita
e nesses lábios de eternal rubim!...[...]

Por isso, ó virgens desta terra ingente,
que sois estrelas de eternal fulgor,
daí hoje aos filhos da Veneza ardente,
flores, sorrisos... e um olhar de amor.

Se no jogo do entrudo as mulheres seriam as despudoradas e concupiscentes folionas, na festa promovida pelas sociedades carnavalescas elas eram descritas como “belas deidades”, “castas donzelas” e “virgens de brilhante alvor” que se entregavam aos “amores santos” da Venezianos. As carícias, namoricos e excessos cometidos com a antiga brincadeira deveriam agora ser substituídos pelos olhares de amores trocados com rapazes castos, brincalhões, bondosos e gentis, como eles se autodeclaravam.
O surgimento das sociedades carnavalescas em Porto Alegre coincide com uma tentativa de adequação da postura das mulheres durante o reinado de Momo. Esperava-se delas um comportamento que fosse casto e imaculado, sem as malícias do entrudo. Era a exaltação do recato e da moral como condutas ideais para o gênero feminino.
De lascivas e promíscuas a virgens de brilhante alvor. Do protagonismo nas ruas e nas janelas à passividade de aplaudir os bailes e desfiles. A mudança na forma de se comemorar o carnaval enquadrou as folionas da cidade em um novo cenário. Mas isso não duraria muito. Mulheres se recusariam a seguir as condições impostas pela sociedade, desafiando as normas e passando a participar ativamente da festa, além de permanecerem fiéis aos antigos costumes entrudescos. Por mais que se tente regulá-lo ao longo do tempo, o carnaval não perde seu espírito libertário e questionador de convenções. Nessa festa, sempre haverá lugar para as mulheres.

Olhos
Mulheres que ousassem entrudar eram classificadas como imorais e despudoradas. Seu comportamento não era “digno das humanas filhas do Rio Grande”.

Na festa promovida pelas sociedades carnavalescas elas eram descritas como “belas deidades”, “castas donzelas” e “virgens de brilhante alvor”.


Saiba mais
LAZZARI, Alexandre. Coisas para o povo não fazer: carnaval em Porto Alegre (1870-1915). Edunicamp: Campinas, 2001.

FERREIRA, Athos Damasceno. O Carnaval pôrto-alegrense no século XIX. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1970.

Artigo publicado originalmente na Revista de História da Biblioteca Nacional, v. 11, p. 64, 2016.

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