Sociedade Carnavalesca Os Congos e o carnaval veneziano
Aproximações entre os Congos, Esmeralda e Venezianos
Charge de Araújo Guerra, publicada em O Século, a respeito do desfile da Esmeralda do ano de 1883 (Ferreira, 1970, p. 57)
Singularidades do carnaval dos Congos
A questão abolicionista
Como vimos acima, o objetivo da festa dos Congos ia além da comemoração carnavalesca. Eles promoviam uma série de atividades com a intenção de arrecadar fundos para a compra de alforria de escravos. Tal atitude era vista com aprovação pela imprensa e motivo de elogios à agremiação. O jornal O Mercantil, em 1883, publicou a seguinte nota: "Congos - Esta sociedade carnavalesca dá amanhã no Theatro de Variedades um espetáculo variado, cujo produto será aplicado à libertação de um ou mais escravos, conforme o pecúlio que arrecadar. A ideia é generosa e filantrópica, sendo por isso digna de encômios aquela sociedade". (O Mercantil, 1 de fevereiro de 1883, p. 2)[1]Em Porto Alegre, a partir da década de 1880, houve uma intensificação do movimento abolicionista. Entre os anos de 1883 e 1884, a propaganda abolicionista foi amplamente discutida na imprensa local, bem como surgiram diversas sociedades emancipacionistas: Sociedade Emancipadora Rio Branco, Seção Abolicionista do Partenon Literário, Centro Abolicionista, entre outras. Os partidos políticos (Liberal, Conservador e Republicano) também concordavam com a necessidade da abolição da escravidão, embora discordassem da maneira como isso deveria ocorrer: através de contratos de serviço entre os senhores e os escravos, da espera dos efeitos da Lei do Ventre Livre ou de emancipações voluntárias de particulares, ou ainda da libertação imediata sem indenização (Zubaran, 2009, p. 6).
Nesse momento é interessante ressaltar que boa parte dos homens que promoveram essa modificação no carnaval de Porto Alegre, a partir da introdução do carnaval veneziano, eram homens da política local, bem como membros de instituições como o Partenon Literário, por exemplo.[2] O Centro Abolicionista, por sua vez, foi “fundado em 1883, pela iniciativa dos liberais Joaquim de Salles Torres Homem e Júlio César Leal, ambos da seção abolicionista do Partenon Literário e sob a presidência do coronel Joaquim Pedro Salgado”, um dos fundadores e por vezes presidente da Sociedade Carnavalesca Os Venezianos. O referido centro foi quem “assumiu a liderança da campanha abolicionista em Porto Alegre” (Zubaran, 2009, p. 7). Além de Pedro Salgado, encontramos outros membros do Centro Abolicionista que também eram integrantes do “novo carnaval”: Antônio Lara Fontoura, Norberto A. Vasques − irmão do presidente da Esmeralda em 1881, Joaquim Antonio Vasques, e membro da comissão dos festejos externos − Inácio de Vasconcelos, Aurélio Veríssimo Bittencourt.
Isso, de certa forma, ajuda a explicar a boa aceitação da S. C. Os Congos e da sua “generosa e filantrópica” ideia. A angariação de fundos para a compra de alforrias era uma boa maneira de abolir essa “instituição maligna”; afinal, liberais, conservadores e republicanos dissidentes reunidos no Centro Abolicionista concordavam com a “ideia de liberdade condicional a ser indenizada através dos contratos de serviço”. Em agosto de 1884, por exemplo, o referido centro criou “comissões de libertação para percorrer os bairros e subúrbios da capital, dirigindo-se de casa em casa, para persuadir os donos de escravos urbanos a libertarem seus escravos e conceder-lhes cartas de alforria” (Zubaran, 2009, p. 7). Dessa forma, os eventos promovidos pela S. C. Os Congos, bem como sua exibição no carnaval, vinham ao encontro dos ideais defendidos por boa parte daqueles que pretenderam reformar a festa: eram os “ares da modernidade”.
Assim como esmeraldinos e venezianos, os Congos publicavam nos jornais o seu programa carnavalesco. O que segue é o convite para um espetáculo a ocorrer no Teatro de Variedades, a fim de arrecadar fundos para a libertação de uma escrava. Vejamos:
1. Ouvertura pela banda musical dos Congos.
2. A marcha do Rei dos Congos e entrada da sociedade que dançará os estilos e canto do seu país.
3. Execução do grande dobrado Liberal SantoAmarense, pelo professor Gungo Moquiche Caqueriquiche Pitafango, no seu instrumento Bando nion, e mais peças do seu vastíssimo repertório.
4. Cena Cômica Balia Queimada representada pelo primeiro crivão Paleguá Mongonguê.
Intervalo de 15 minutos
5. Uma lindíssima ouvertura pela mesma banda.
6. Canto e dança pelos Gallegos.
7. Dança de moleques infernais.
8. Finalizará o espetáculo com uma chistosa pantomina.
Nos dias 5 e 6, haverá espetáculos, os quais serão inteiramente variados com outras cenas.
No espetáculo de terça-feira 6, será entregue em plena cena a carta de liberdade à escrava, e nessa ocasião o orador da sociedade fará ouvir aos espectadores um breve discurso relativamente aos sentimentos que os sócios congos possuem.
E, pois, esta fraca corporação, empenhará todo o seu esforço para as pessoas que assistirem às suas soirrés fiquem satisfeitas; pelo que ficarão todos os sócios eternamente agradecidos pela coadjuvação que lhes dispensarem.
Um primeiro elemento a ser destacado nesse programa é a declaração de que na festa promovida pela agremiação estaria presente o então presidente da província, Barão de Sousa Lima,[3]e da rainha e diretora da Esmeralda. Isso evidencia a aceitação que os Congos tinham, não só entre a imprensa e o público da época, mas também entre autoridades, bem como o endosso exercido pela sociedade pioneira. A campanha abolicionista efetuada pela agremiação estava concernente ao modo como as autoridades e o novo carnaval viam a questão. Não é à toa que, ao findar o programa, os carnavalescos chamam o povo para olhar o progresso.
De acordo com Santos (1998, p. 22), a modernidade é um modo de civilização burguesa e secularizada que pode “ser caracterizada pela fé inabalável na razão, pela crença indestrutível na ideia de progresso e pela oposição resoluta à tradição”. A tradição é identificada por ele “aos modos de pensar, de sentir e de agir que permanecem tributários do passado, enraizados nos hábitos e nos costumes”. A modernidade seria não simplesmente sinônimo de modernização e progresso tecnológico, que separa as coisas em avançado e atrasado; mas, sim, como um modo de vida, o nosso ideário de civilização, que tenta buscar explicações para os problemas do cotidiano e que se definiria por um “jogo de signos, de costumes, de cultura que resultaram de mudanças técnicas, científicas e políticas ocorridas desde o século XVI” (Baudrillard, 1982, p. 28). Nesse ideal de modernidade, entrudo e escravidão não eram vistos com bons olhos: os Congos, com seu carnaval, estavam a trabalhar em prol da solução de ambos os problemas. O jornal O Mercantil, por exemplo, ao descrever os festejos carnavalescos daquele ano de 1883, ao se referir aos Congos, salientava, justamente, as apresentações que foram feitas em prol da “manumissão de um infeliz privado de liberdade, filantrópica ideia que sobremodo muito honra a mocidade que compõe a dita sociedade” (O Mercantil, 7 de fevereiro de 1883, p. 3), demonstrando sua aprovação tanto à festa que estavam a promover, quanto aos componentes da referida agremiação.
Aceitos e apoiados por boa parte da sociedade porto-alegrense (autoridades políticas, sociedades carnavalescas, imprensa), neste ano de 1883, os Congos fizeram vários espetáculos a fim de angariar fundos para a compra de alforrias. No último evento, celebrado no dia 11 de fevereiro, entregaram a carta que libertava a escrava Maria Delfina (Ferreira, 1970, p. 72). Em seu programa pediam que: "Ião araguá o ibôme, ebilimimi ao moflorum, oti fum-fum: quer dizer que o publico porto-alegrense não deixe passar despercebido este ato solene e tão filantrópico que vamos praticar; e que esta sociedade espera que lhe dispensem as mesmas simpatias e coadjuvação que recebeu nos festejos carnavalescos, pelo que desde já agradece do coração a todos os que coadjuvarem nesta modesta festa" (O Mercantil, 9 de fevereiro de 1883, p. 3).
O discurso proferido pelos Congos pedia ao público porto-alegrense a cooperação com a festa que eles promoveriam, sendo provavelmente direcionado a uma elite branca e carnavalesca, sintetizada em Esmeralda e Venezianos. Percebem-se, portanto, mais uma vez, as relações estabelecidas pelos membros da agremiação em análise e os diversos grupos sociais presentes na cidade. Ao mesmo tempo em que eles se identificavam como Congos e promoviam festas para a compra de alforria de escravos, direcionavam seu discurso e contavam com a presença de uma elite política, econômica e social branca em suas festas: eram negros e brancos, africanos, brasileiros e europeus, que não só coexistiam como estabeleciam diversas formas de interação para além se seus próprios limites étnicos (Rosa, 20. Essa inter-relação fica ainda mais evidente quando observamos o programa da festa a ser oferecida pelos Congos, transcrito anteriormente. Entre as atrações há uma profusão de referências, desde aquelas que remetem para uma tradição africana – marcha do Rei dos Congos –, passando por execuções musicais com bandoneon − instrumento musical usado na música religiosa e popular alemã, trazido por imigrantes para a região (Masella, 2015, p. 250) −,[4] até canto e dança dos galegos.[5]
A escravidão no Rio Grande do Sul foi abolida no ano seguinte a esse que parece ter sido o carnaval de maior expressividade dos Congos, em setembro de 1884. Mesmo após o fim da escravidão, ainda encontramos referências à sociedade nos jornais da capital:[6] notas da agremiação chamando os sócios para os ensaios de canto e dança e para as festas carnavalescas. Entretanto, agora não se denominam mais sociedade carnavalesca, mas clube carnavalesco, e não têm o mesmo destaque na imprensa.[7] Residiria a força/inserção social dos Congos na causa abolicionista?[8]
A questão identitária
O último programa dos Congos nesse carnaval de 1883 começava com a seguinte frase: “Ião araguá o ibôme, ebilimimi ao moflorum, oti fum-fum”, provavelmente em língua pertencente ao tronco linguístico banto.[9] Os carnavalescos fizeram questão de explicar à população o significado: chamá-los para “causa abolicionista filantrópica” que estavam a praticar. Esse fato evidencia, em nosso ponto de vista, um dos elementos mais interessantes dos Congos, a questão da afirmação identitária trazida pela agremiação.Sabemos que, no período analisado, eles não foram o único grupo que brincou o carnaval a exaltar suas origens. Alexandre Lazzari (1998, p. 202), em sua dissertação de mestrado, já salientava o quanto o exemplo de Esmeralda e Venezianos havia frutificado e inspirado o nascimento de outras sociedades carnavalescas: “Germânia, Congos, Liborinhos e Roxa Saudade, entre outros, respectivamente reuniram membros da colônia alemã, libertos, empregados no comércio e moradores do terceiro distrito da cidade”. E que, embora esses grupos tenham adotado o modelo de préstito carnavalesco proposto por esmeraldinos e venezianos, eles o “adaptaram ao sentido da afirmação de uma identidade própria e da aspiração ao reconhecimento público. Tanto a Germânia quanto os Congos reivindicavam ser representantes de uma cultura estrangeira que por seu intermédio integrava-se à nacionalidade brasileira”.
Entre os Congos, contudo, tal afirmação tenha um quê a mais: expliquemos. Sabemos que toda diáspora em si é desagregadora de laços comunitários, provoca a dispersão e o esfacelamento de identidades e referências de grupo daqueles que foram suas vítimas. No caso em questão, da diáspora africana, os indivíduos que foram forçados a virem para o Novo Mundo foram aqui escravizados, subalternizados. No caso do Rio Grande do Sul, e mais especificamente de Porto Alegre, tal omissão foi tamanha que se invisibilizou a importância de africanos e seus descendentes na formação do Brasil meridional (Leite, 1996; Xavier, 2009).[10] Ao participarem do carnaval e ganharem reconhecimento por essa participação, os Congos conseguiram deixar a sua marca na festa, exaltando suas origens e trazendo elementos africanos para ela. Promoveram, assim, não só uma reconstrução de seus laços de sociabilidade e de referências comunitárias, como contribuíram para a formação de uma cultura diaspórica em terras transatlânticas.
Como salientamos anteriormente, não conseguimos rastrear os nomes dos componentes da agremiação, a fim de descobrir quem eram exatamente, seus locais de origem, bem como os sentidos que eles próprios davam ao seu carnaval. Mas o próprio nome escolhido para a agremiação já apontava para essa questão da afirmação identitária e de reconstrução dos laços de sociabilidade, nos quais se estabeleceu uma relação direta com a sua origem centro-africana: assim como imigrantes alemães em Porto Alegre criaram a sociedade Germânia, africanos e/ou seus descendentes criaram os Congos.
Stuart Hall (2003), ao pensar a identidade cultural, estabelece um entendimento em que os valores culturais são mantidos como elementos permeáveis às mudanças empreendidas pelas migrações territoriais. O autor considera que as culturas são abertas e compõem-se em meio às diásporas, expressando-se como um tributo que reinventa as tradições. Essa constatação revela que as culturas não são puras. Isso fornece às tradições um conteúdo sincrético, em que se pode observar a incorporação de outros valores culturais e a manutenção de aspectos vinculados às origens étnico-raciais (apud Rodrigues, 2012).
O Congo foi um importante Estado africano, não só pela influência que teve sobre os demais povos da região, mas pela quantidade de relatos que nos chegaram sobre o país (Vansina, 2010, p. 647). Situado na margem meridional do baixo rio Congo, se formou, aproximadamente no século XV, a partir da mistura, por meio de casamentos, de uma elite tradicional (as candas) com uma elite nova, descendentes de grupos vindos do noroeste, da outra margem do rio, que se instalaram na região (os muchicongos) (Souza, 2014, p. 38). Quando os portugueses ali chegaram, a partir de 1483, “encontraram uma sociedade hierarquizada, com aglomerados populacionais que funcionavam como capitais regionais e uma capital central, na qual o mani Congo [...] vivia em construções grandiosas, cercado de mulheres e filhos, conselheiros, escravos e ritos”. Portugal logo percebeu a potencialidade do parceiro comercial e manteve, por mais de três séculos, “relações comerciais e políticas pautadas pela independência das duas sociedades”, tendo por fim controlado a região, que hoje corresponde ao norte de Angola. O comércio, principalmente de escravos, e o controle das minas eram seus principais interesses no Congo[11] (Souza; Vainfas, 1998, p. 4).
Transferidos involuntariamente para o Novo Mundo, os cativos tiveram um importante papel na formação e na transformação da cultura atlântica. A congada, festa típica de algumas regiões brasileiras, que se disseminou durante o século XIX, é um bom exemplo. Nessa festa, grupos de negros saíam às ruas cantando, dançando e representando a coroação do rei de Congo. Eram coroados na igreja, pelo padre da irmandade que os abrigava. Depois, os reis desfilavam com seus séquitos pelos bairros em que moravam, mas também pelos espaços mais nobres da cidade, ostentando suas roupas especiais, o mais luxuosas possível (Souza, 2005, p. 88). De acordo com Marina de Mello e Souza, "acompanhando os reis e suas cortes vinham tocadores de instrumentos de origem tanto europeia quanto africana: diferentes tipos de tambores, pianos de dedo, marimbas, instrumentos de corda, além dos que dançavam com passos e gestos tipicamente africanos, descritos com espanto e repugnância pela maioria dos registros. Muitas vezes, junto aos personagens reais com trajes de estilo europeu, vinham outros, vestidos de maneiras africanas, envoltos em peles, carregados de colares, pulseiras, guizos, e penas na cabeça à semelhança dos sacerdotes centro-africanos. As músicas tinham ritmos africanos e as letras misturavam palavras africanas com um português com gramática e sintaxe alteradas". (Souza, 2006, p. 18)
De acordo com a referida autora, a festa de coroação do rei do Congo é, portanto, um produto do encontro de culturas africanas e da cultura ibérica, que incorporou elementos de ambas em uma nova formação cultural, na qual símbolos ganharam novos sentidos, abrindo espaço para a construção de identidades e a expressão de poderes. Segundo ela, essa festa a cada ano rememorava um mito fundador de uma comunidade católica negra, na qual a África ancestral era invocada em sua versão cristianizada, representada pelo reino de Congo (Souza, 2006, p. 18). Parte dos elementos apresentados por Souza nas congadas também podem ser observados no carnaval proposto pela agremiação em análise. No ano de 1884, por exemplo, o jornal A Federação noticiava que “os Congos seguiam logo após a Esmeralda e formavam em diversas carroças, indo à frente o rei congo com sua corte” (A Federação, 10 de março de 1884, p. 2). Se olharmos os programas apresentados anteriormente, veremos que entre as atrações programadas estava “a marcha do rei dos Congos e a entrada da sociedade que dançará os estilos e canto do seu país”, bem como referências ao seu idioma (O Mercantil, 3 de fevereiro de 1883, p. 3). A S. C. os Congos apresentava uma versão de carnaval veneziano, mas africanizado!
Embora saibamos que o momento de consolidação da designação de rei do Congo nos reinados negros existentes no Brasil coincida com o incremento de africanos embarcados nos portos da região do antigo reino do Congo (Souza, 2005, p. 82), no momento não temos como afirmar que os membros da agremiação tinham essa mesma origem em comum, ainda que tenhamos ciência de que 71% dos que em Porto Alegre chegavam, via Rio de Janeiro, vinham da África centro ocidental, com predomínio de escravos Benguela e Angola; 26% da África ocidental e o restante da África oriental (Berute, 2006). [12] De qualquer forma, a referência ao reino, bem como a coroação do rei Congo remete para uma ideia de África construída no Novo Mundo que não só dava visibilidade a essa parcela da população, como permitia que novas identidades fossem construídas a partir de sua origem africana em comum. A identidade congo aparece como um aglutinador de elementos identitários que antes talvez fossem inexistentes, mas que agora se tornam fundamentais. Dessa forma, seus desfiles pelas ruas da cidade eram um momento de celebração de sua africanidade, no qual invocavam símbolos de autorreconhecimento e pertencimento àquele espaço e teciam, assim, um novo senso de comunidade.
Outro dado interessante para pensarmos a presença da S. C. Os Congos no carnaval da elite de Porto Alegre, bem como para entendermos esse novo senso de comunidade e os laços de solidariedade entre os africanos no Brasil, nos trouxe Paulo Moreira (2007), ao analisar as cartas de alforria em Porto Alegre. O autor demonstrou que, nessa cidade, os africanos se alforriavam mais que os crioulos, sobretudo os procedentes da África central atlântica, destacando a sua capacidade de estabelecer laços entre si, de construírem afinidades étnicas imprescindíveis para a compra de suas liberdades. Os apontamentos do autor vão ao encontro daquilo que procuramos identificar como as singularidades da festa promovida pelos Congos, tanto no que tange à afirmação identitária, quanto ao intuito de arrecadação de fundos para a compra de suas liberdades.
É a partir dessa perspectiva que apresentamos esse último programa de carnaval, publicado pela S. C. Os Congos, ainda em 1883, no qual anunciavam a festa que realizariam para arrancar da escravidão um parceiro e que, ao nosso ver, sintetiza todos os elementos – desde as similitudes até as particularidades − que procuramos demonstrar ao longo deste artigo. Vejamos:
Agora nosso turo ficá siperando qui essi genti qui é fio dessa tera, não bai deixá di parecê, proquê Papai di Nosso qui tá ni céu ade judá a Papai e Mamãi di fio di tera, aquere qui fá quarijuvá nosso, ni esse borabadá.
Pressita tenção!!
Siri programa bai se distribuída pro meio di esse couza qui tá casando seripece ni quagueça di gente tura i qui si chamá - Terefone - i esse di diztribuição di esse quaqué áde tê rugá ni Romingo, 4 di febrera di ano qui tá caminhando.
Embora muito provavelmente os membros da S. C. Os Congos não fossem representantes da elite citadina, o que pudemos perceber é que a agremiação estava em conformidade com os ideais propagados pelo novo carnaval: era a modernidade em Porto Alegre – combate ao rude e grosseiro entrudo, através de seu desfile veneziano; festejos em prol do fim da escravidão, mas de um fim ordenado, uma liberdade condicional e indenizada; invenções tecnológicas: o telefone, da Guiné, de Zambezi a Porto Alegre.
Dessa forma, angariaram um reconhecimento público – da imprensa, das autoridades, das coirmãs. Tal aceitação permitiu que esse grupo mantivesse seus espaços de sociabilidade, nos quais suas manifestações culturais puderam ser vividas, experienciadas, reinventadas; permitiu que eles se dessem a ver e fossem vistos. E “dando sua cara” ao carnaval veneziano, contribuíram para construção de uma cultura transatlântica, na qual novas identidades foram criadas, mas tiveram como particularidade sua origem africana.
Considerações finais
A título de conclusão, gostaríamos de compartilhar algumas indagações a partir da presença dos Congos no carnaval de Porto Alegre e possíveis legados dessa resistência negra: teria alguma relação a S. C. Os Congos, seus componentes, e a origem do samba em Porto Alegre?[15] Teria a sua participação no carnaval veneziano influenciado de alguma forma as festas atuais de Porto Alegre no formato das escolas de samba e de quem faz o festejo na cidade? Seria esse atual carnaval fruto do encontro dessas culturas, protagonizado pelos Congos, no qual elementos foram incorporados e símbolos ressignificados, permitindo a construção de uma nova formação cultural, marcadamente brasileira?Buscamos, portanto, apresentar alguns aspectos da trajetória da S. C. Os Congos. Uma agremiação composta por membros da população negra de Porto Alegre, que celebravam o carnaval no modelo veneziano e figuraram entre a elite carnavalesca da cidade. Ao longo do texto, procuramos mostrar os pontos de aproximação com as agremiações pioneiras, Esmeralda e Venezianos, o modelo de festa por eles adotado (préstitos de gala e burlesco, programas carnavalescos, centralização na figura masculina) e sua inserção no ideal da modernidade. Destacamos ainda as particularidades dessa sociedade, como o carnaval em prol da causa abolicionista e uma questão identitária de matriz africana expressa em seus festejos
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