Carnaval de Porto Alegre cariocalizado?

        Ao se pensar em carnaval logo nos vem à mente os desfiles de Escolas de Samba. Apresentações contagiantes, alas muito bem vestidas, bateria tocando com força e um samba-enredo cantado a plenos pulmões. De norte a sul do Brasil, seja Manaus ou Uruguaiana, o carnaval espetáculo das Escolas de Samba é um modelo consolidado em território nacional desde os anos 1980. Esse tipo de desfile, surgido no Rio de Janeiro, é bem anterior à construção do Sambódromo da Marquês de Sapucaí e teve forte impacto na formação da cultura carnavalesca nacional. Em Porto Alegre especificamente, o foco da minha análise, essa mudança nos moldes de celebrar o carnaval ocorreu entre as décadas de 1960 e 1970, em um termo que cunhei, durante minha pesquisa sobre o tema, como cariocalização. Para compreender a extensão desse termo e de como essas mudanças afetaram os festejos é necessário analisar em primeiro lugar o contexto em que se inseria o carnaval de Porto Alegre durante a metade do século XX.

        A celebração do carnaval em Porto Alegre nas décadas de 1950 e 1960 se assemelhava, em aspectos gerais, ao restante do Brasil. A festa, que se originou na cidade como Entrudo no século XVIII e passou por clubes e grandes sociedades no final do século XIX, adentrou o século XX com o surgimento de cordões e blocos ocupando as áreas centrais e boêmias da capital gaúcha. Embora essa descrição possa ser comum a outras localidades do país, já era possível observar alguns regionalismos e elementos da cultura local que influenciavam a forma de comemorar os dias de Momo na cidade. Na década de 1940, mesma década em que surgiu o grupo carnavalesco mais antigo da cidade ainda em atividade, os Bambas da Orgia, também foram criadas as primeiras Tribos Carnavalescas. Se assemelhando em estrutura aos blocos e conjuntos, as Tribos Carnavalescas tinham características muito particulares de montar suas apresentações. Ao invés de estandarte, havia a bandeira, não levada por um casal, mas sim por um solitário guardião. As Tribos não entoavam sambas enredo, cantavam hinos. Suas apresentações e ritmos eram próprios. Uma das primeiras a serem criadas, em 1945, foram Os Caetés, logo seguidos por Xavantes, Bororós, Iracemas (esta composta apenas por mulheres) e os Comanches, a única ainda em atividade atualmente.

        Outra característica que diferenciava o carnaval de Porto Alegre dos demais diz respeito aos locais em que se celebravam os desfiles. Durante as quatro noites de festa a cidade se coloria por completo, ou seja, não havia apenas um local de desfile, eram múltiplos pontos em que se reuniam as Escolas de Samba pela cidade. Ao longo do período pré-carnaval as associações de bairro, em conjunto com os comerciantes locais e a prefeitura municipal, organizavam coretos e locais para desfiles das agremiações carnavalescas. Iluminavam as ruas, montavam pequenas arquibancadas ao longo da principal via de cada bairro, organizavam troféus e premiações em dinheiro para as contemplar as Escolas campeãs. No início da década de 1960 existiam pela cidade mais de 25 coretos registrados publicamente para receber as Escolas de Samba como por exemplo o da Rua Santana (conduzido até os anos 1990 por Maria Bravo), do IAPI, da Vila Jardim, entre muitos outros. Havia também o coreto da prefeitura, localizado na Av. Borges de Medeiros. Não existia um desfile oficial, cada Escola era campeã de um coreto específico, sem haver distinção hierárquica entre os locais. Porém no início da década de 1960 esse cenário começou a ser alterado.

        O segundo mandato do prefeito José Loureiro da Silva, entre 1960 e 1964, foi marcado por uma série de reformas urbanas e sociais na cidade. Desde a abertura de vias e construção de novas escolas municipais até mudanças na estrutura administrativa da cidade. Uma delas ligou-se intimamente com o carnaval. No final do ano de 1961 foi criado o Conselho Municipal de Turismo (COMTUR), órgão responsável por fazer o planejamento e gestão dos eventos turísticos da capital, na qual foram incluídos os desfiles carnavalescos. Para entendimento do poder público as Escolas de Samba e seus desfiles representavam um potencial turístico para a cidade e por tal motivo resolveram investir na festa.

        Um ponto importante que é necessário salientar diz respeito às notícias e documentos referentes à criação do COMTUR. Estes divergem muito sobre sua finalidade, o que é uma situação um tanto quanto usual para pesquisadores do carnaval de Porto Alegre. A documentação oficial existente sobre os festejos carnavalescos, disponível no Arquivo Histórico Municipal Moyses Vellinho, é escassa e rara até o ano de 1973, e acaba sendo necessário ao pesquisador buscar em outras fontes para obter informações que possam preencher algumas lacunas. E acaba que essas informações muitas vezes acabam não sendo inteiramente corretas. A criação do COMTUR é um exemplo dessa situação, a imprensa da época noticiou sua criação como uma entidade criada para fazer a gestão dos festejos carnavalescos, enquanto a documentação oficial existente não menciona essa como uma de suas competências.

        Voltando ao contexto do carnaval de Porto Alegre, o desfile das Escolas de Samba seria o pontapé inicial para o ano turístico na capital. E tal mudança teria início no ano de 1962. Então era necessário inovar, destacando apenas um único coreto como o oficial de celebração. O escolhido era o da Av. Borges de Medeiros, visto que aquele já era organizado pela prefeitura municipal. Porém a principal patrocinadora do carnaval desde 1955, e permaneceu como tal até o final da década de 1960, era a empresa de bebidas Refrigerantes Sul Riograndense. Para o ano de 1962 a empresa já havia escolhido um local próprio para o desfile, nas Av. Eduardo (atual Av. Presidente Roosevelt). Reportagens exibidas nos jornais da época convidaram a população a prestigiar apenas o desfile oficial na Av. Borges de Medeiros, o que fez o público lotar as arquibancadas espalhadas ao longo da avenida durante o carnaval. Só que as Escolas de Samba, por sua vez, não totalmente adeptas a esse novo modelo proposto e visando a premiação mais significativa entregue pela Refrigerantes Sul Riograndense, foram desfilar na Av. Eduardo, frustrando a multidão que se reunia no centro da cidade. A confusão do carnaval de 1962 foi tamanha que a empresa publicou um pedido formal de desculpas à cidade, ocupando página inteira do jornal de maior circulação da cidade na época.

        O que temos registrado nos arquivos e aquilo que foi possível coletar a partir de fontes da época, é que o ano de 1962 é um divisor de águas na forma em que se celebrava o carnaval de Escola de Samba em Porto Alegre. Embora reconhecesse a importância e se envolvesse em algum grau com parte da organização, foi apenas com a criação do COMTUR que a prefeitura passou a ativamente gerenciar e validar o carnaval como um produto cultural da cidade. E essa relação acabou ocasionando uma série de mudanças na execução da festa.

     Embora ainda estivéssemos a duas décadas do início do período conhecido como “Carnaval Espetáculo” no Rio de Janeiro, a prefeitura de Porto Alegre já via o potencial turístico no carnaval. A alocação da gestão da festa para o COMTUR, e posteriormente em 1973 a Empresa Portoalegrense de Turismo (EPATUR), solidificaram essa relação e caracterizaram com sucesso a festa a partir do seu potencial turístico. As alterações na forma de celebrar o carnaval de Escola de Samba em Porto Alegre tem esse contexto institucional que se relaciona intrinsecamente com as mudanças culturais.

      Compreendido o contexto no qual se insere o carnaval de Porto Alegre no seu aspecto administrativo é necessário entender a sua relação social. Diferentemente do Rio de Janeiro, em que as Escolas de Samba foram surgindo com uma identificação muito forte no local de criação (ex. Mangueira com o Morro da Mangueira, Acadêmicos do Salgueiro com o Morro do Salgueiro, entre outras) em Porto Alegre as Escolas acabaram sendo criadas e arregimentando componentes e torcedores a partir das suas relações sociais e de afeto. Ao longo das décadas de 1950 e 1960 foram criadas uma série de agremiações como os Embaixadores do Ritmo (1950), Fidalgos e Aristocratas (1950), Imperadores do Samba (1959), Academia de Samba Praiana (1960), Trevo de Ouro (1960), Acadêmicos da Orgia (1960), Copacabana (1962), sendo a grande parte delas identificadas com os bairros boêmios da cidade - Cidade Baixa, Centro Histórico e Ilhota, por exemplo. Essa condição ajuda a corroborar a ideia de comemorar o carnaval na cidade como um todo. Em paralelo, não é possível ignorar as trocas entre Rio de Janeiro e Porto Alegre, através do trânsito de pessoas entre essas cidades, especialmente as mobilidades provenientes das forças armadas.

    Destaca-se também o surgimento da Academia de Samba Praiana em especial pois suas características assemelhavam-se muito com as Escolas de Samba cariocas. Por muitos anos se creditou a Praiana o título de “1ª Escola de Samba de Porto Alegre” pois em suas primeiras apresentações já era possível observar elementos de desfile que diferenciavam-se das demais. É o caso das alas organizadas, de um enredo conectado com fantasias e alegorias e até aspectos musicais que se assemelhavam àqueles procedentes de algumas agremiações cariocas.

        Uma vez controlando a organização e realização da festa, o COMTUR passou a implementar uma série de mudanças a partir do carnaval de 1963, tentando evitar o fiasco ocorrido no ano anterior. A primeira delas foi a definição de um desfile oficial, com o apoio da principal empresa patrocinadora, o que permitiu oferecer às Escolas de Samba uma premiação mais robusta. Também passaram a incluir os desfiles das Escolas de Samba no calendário turístico da cidade, fazendo a festa ser a abertura do calendário turístico da cidade, junto ao concurso “Rainha das Piscinas”.

        Porém a mudança proposta pelo COMTUR que causou o maior impacto e mudança na forma de celebrar o carnaval em Porto Alegre foi o corte de apoio financeiro para os coretos de bairro. As Escolas e Tribos carnavalescas passaram a focar seus desfiles e apresentações apenas no desfile oficial, pois os valores das premiações e o destaque de mídia e cobertura jornalística era mais expressivo que os coretos. O público dos bairros também passou a se deslocar em direção ao desfile oficial, primeiro na Av. Borges de Medeiros até 1969 e depois por Rua João Alfredo (1970-1973), Av. João Pessoa (1974-1975), Av. Perimetral (1976-1985), Av. Augusto de Carvalho (1986-2003) e Complexo Cultural do Porto Seco (2004-).

     E é este o contexto que denomino como cariocalização. As mudanças na forma como se desenvolveram o carnaval de Porto Alegre não se deu exclusivamente pelo contexto sócio-político local. A influência externa foi determinante para essas mudanças. O desfile oficial do Rio de Janeiro, antes acontecido de forma espontânea na praça XI, foi transferido para a Av. Presidente Vargas na década de 1940 e a partir da década de 1960, quando passou a receber arquibancadas fixas e público pagante, consolidou esse modelo de desfile.

        A consolidação de um modelo de carnaval de Escola de Samba no país não pode ser considerado como algo danoso, embora muitos regionalismos tenham se perdido ao longo do tempo. Alguns ainda se mantêm muito fortes, como é o caso da Porta-Estandarte, elemento de destaque obrigatório e tradicional das Escolas de Samba de Porto Alegre. As transformações da cultura popular ocorrem muitas vezes a partir das mudanças sociais da sua própria comunidade, e se consolidam, na maioria das vezes, apenas se forem benéficas para tal. Embora o contexto de mudança tenha sido influenciado fortemente pelo poder público, o carnaval de Escolas de Samba de Porto Alegre incorporou elementos cariocas em sua estrutura, pois aquilo fazia sentido para a evolução da festa. A cariocalização do carnaval gaúcho aconteceu e fez parte da sua transformação na festa que conhecemos hoje.

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Helena C. Cattani é historiadora e arquivista pela UFRGS. Mestre em História pela UFRGS, com pesquisa sobre a formação do Carnaval em Porto Alegre na década de 1960. Coordenadora de memória do CETE. Foi jurada do Carnaval de Porto Alegre e cidades do interior do Rio Grande do Sul. Co-autora do livro “Imperador, eu teria tanta coisa pra dizer...”