Primeiro corso - Carnaval de Porto Alegre (1874) |
A
diversificação dos estudos de gênero, ocorrida nas últimas décadas, contribuiu para
a pluralidade, a inclusão e o crescimento de pesquisas sobre homens e
masculinidades neste campo de estudo (CONNELL, 2016). Surgidas no bojo das
discussões da segunda onda do movimento feminista, entre os anos de 1960 e 1980,
nos Estados Unidos, forneceram base para o que se passou a chamar de Men’s Studies. A partir disso, diversos pesquisadores e pesquisadoras,
nacionais e estrangeiros, passaram a se dedicar ao tema (HEILBORN;
CARRARA, 1998; OLIVEIRA, 1998; PRIORE, 2013; CONNELL, 2013), fornecendo
subsídios para a construção de uma agenda em prol da igualdade de gênero para o
século XXI (ONU, 2020). Afinal, esta é uma mudança que, necessariamente,
envolve os homens.
Para isso, é preciso que examinemos como eles “têm sido compreendidos, a
política dos ‘movimentos masculinistas’, os interesses divididos, de homens e
meninos, em relações de gênero, e o que as pesquisas apontam quanto a cambiante
e conflituosa construção social de masculinidades” (CONNELL, 2016, p. 91).
Neste
sentido, o presente trabalho busca analisar a história do carnaval de Porto Alegre com ênfase nas representações das masculinidades, tendo como ponto de
partida o gênero como categoria relacional de análise. O ano de 1873 foi um
marco no carnaval de Porto Alegre: nasciam as sociedades carnavalescas
Esmeralda e Os Venezianos. Tais agremiações pretendiam mudar a cara dos
festejos na capital gaúcha, instaurando um novo modelo de festa - o carnaval
veneziano, com préstitos e bailes fechados a seus sócios. Além de modernizar e moralizar os festejos,
substituindo as brincadeiras de entrudo por uma comemoração que fosse
“civilizada”, “moderna” e representante dos novos tempos, o carnaval veneziano
trouxe novos protagonistas para a festa - os jovens esmeraldinos e venezianos –
relegando às mulheres a função de espectadoras. Dessa forma, nosso objetivo é averiguar as
representações de masculinidade apresentada pelo discurso da imprensa
porto-alegrense a partir da instauração do carnaval veneziano. Ao problematizar
a construção social das masculinidades na Porto Alegre do século XIX,
evidenciaremos que essa reforma carnavalesca serviu como reforço das
hierarquias dominantes do masculino, nas quais os homens passaram não só a
executar, como a representar o próprio carnaval, dentro de um ideal de
modernidade.
O
gênero, segundo Connell (2016, p. 34), envolve “um vasto processo formativo na
história, ao mesmo tempo criativo e violento, no qual corpos e culturas estão
igualmente em jogo e são constantemente transformados”. Neste sentido,
masculinidades e feminilidades são “constructos sociais e culturalmente
forjados, rizomáticos, relacionais, interdependentes e de múltiplas definições.
Por isso, o caráter histórico, datado e político do gênero” (SILVA, 2015, p. 10). Nesta construção social naturalizada que constitui as
masculinidades e as feminilidades, introjetamos
construções históricas, sociais e culturais que evidenciam inúmeras
desigualdades e hierarquias, produzindo significados e testemunhando práticas
de diferentes gradações, sendo isto um “produto de um trabalho incessante (e,
como tal, histórico) de reprodução para qual contribuem agentes específicos
[...] e instituições, famílias, Igreja, Escola, Estado” (BOURDIEU, 2011, p. 46)
e, acrescentaríamos o carnaval.
A
masculinidade, portanto, é “uma configuração de prática em torno da posição dos
homens na estrutura das relações de gênero, [salientando que há] mais de uma
configuração desse tipo em qualquer ordem de gênero de uma sociedade” (CONNELL,
1995, p. 189). Desta
forma, seria errôneo pensarmos em masculinidade, posto estas multiplicidades, e
sim, em masculinidades, pois “diferentes masculinidades são produzidas no mesmo
contexto social [e] qualquer forma particular de masculinidade é, ela própria,
internamente complexa e até mesmo contraditória” (CONNELL, 1995,
p. 189). Existe, contudo,
um modelo central, a masculinidade hegemônica, que se distingui de outras
masculinidades, especialmente das masculinidades subordinadas, estilos
considerados impróprios. Desta forma, a masculinidade hegemônica seria a normativa,
arraigada no plano discursivo, “incorpora a forma mais honrada de ser um homem,
ela exige que todos os outros homens se posicionem em relação a ela e legitima
ideologicamente a subordinação global das mulheres aos homens”, embora apenas
uma minoria dos homens talvez a adote (CONNELL; MESSERCHMIDT, 2013, p. 245). O
conceito de masculinidade hegemônica busca “dar conta da
dinâmica de poder inscrita nas relações de gênero [...] [pois] representa a
estrutura de poder das relações sexuais, buscando excluir qualquer variação de
comportamento masculino que não se adeque a seus preceitos” (OLIVEIRA, 1998, p.
105).
Outro conceito importante no
desenvolvimento de nossas ideias é o de representação, ou seja, os “sistemas de
interpretação que regem nossa relação com o mundo e com os outros – orientam e
organizam condutas e comunicações sociais” (TEDESCHI, 2012, p. 30). É o
instrumento por meio do qual os indivíduos criam um significado para o mundo
social. De acordo com Chartier, tal conceito é um componente essencial dos
discursos – práticas munidas de intencionalidade e interesses específicos (CHARTIER,
1991).
Desta forma, para discutir as
representações de masculinidade da Porto Alegre oitocentista por meio do
carnaval, nos valeremos da imprensa escrita. Utilizaremos o jornal como fonte
histórica, buscando desvendar o sentido da escrita jornalística em dois tempos,
“um objetivo que interpreta o texto escrito efetivamente e outro subjetivo que
precisa entender aquilo que não aparece escrito, mas é possível identificar à
luz do contexto histórico”, pois conforme aponta Sosa (2007, p.12) “o estudo da
imprensa necessita do reconhecimento do que está em torno dela, já que essa
mesma imprensa está invariavelmente atrelada ao seu tempo histórico”. É neste
sentido que como
metodologia foi empregado princípios da Análise de Discurso, buscando extrair o
efeito de sentido dos discursos veiculados pelo respectivo periódico. Ao
entendermos o discurso como uma construção social, que reflete a visão de mundo
de seus produtores em relação à sociedade em que vivem, ele deve ser analisado
considerando seu contexto histórico-social e suas condições de produção, pois “cabe
ao analista procurar apreender a construção discursiva dos referentes”
(ORLANDI, 1994, p. 53),
À vista disso, o jornal
A Reforma, entre os anos de 1873 a
1875, foi a principal referência desta pesquisa. Periódico vinculado aos
representantes das elites políticas locais que desejavam maior autonomia em
relação ao governo central, A Reforma
foi o pioneiro no jornalismo político-partidário rio-grandense, assumindo o
papel de difusor da doutrina dos liberais (RÜDIGER, 1993). Fundado em 1869, por
Gaspar Silveira Martins, seu acervo encontra-se no Museu de Comunicação Social
Hipólito José da Costa, em Porto Alegre/RS. Seus integrantes, além de estarem
ligados ao Partido Liberal, participavam de outros grupos como o Partenon
Literário e o Centro abolicionista de Porto Alegre (SILVA, 1986) e, muitos de
seus membros, foram adeptos do carnaval veneziano, associando-se à Esmeralda ou
aos Venezianos, como por exemplo: Aurélio Veríssimo de Bittencourt, Antonio
Lara Fontoura, Norberto A. Vasques, Inácio de Vasconcelos, Germano Hasslocher e
Joaquim Antônio Vasques.
Carnaval veneziano e masculinidades
Era Domingo de carnaval do ano de 1873. Desjanais, pseudônimo de Joaquim Antônio Vasques,[2] em sua coluna publicada no jornal A Reforma saudava “o dia da folia, da loucura, do regozijo, da mais ampla liberdade” e discorria sobre o surgimento do carnaval veneziano:
Em Veneza, milhares de gôndolas flutuam galhardas, atravessando os numerosos canais, saudando o soberbo palácio dos Doges e o Leão de São Marcos. Foi ali que o Carnaval imperou e enraizou-se como em parte alguma do mundo. Foi ali, na rainha do Adriático, que a festa carnavalesca alcançou o maior grau de magnificência e brilhantismo (A Reforma, Porto Alegre, 23 de fevereiro de 1873).
Ao destacar sua disseminação para as demais cidades europeias - “de Veneza a Milão, de Milão a Roma, de Roma a Florença a viagem é curta, e o carnaval ali floresceu” - ressaltava sua chegada à América, onde “até os ingleses, povo que não gosta de expansões, se entregam às alegrais do Carnaval”, e ao Rio de Janeiro, cidade em que o carnaval já tinha “interesse e importância”. Ou seja, lá já havia
um grande número de sociedades carnavalescas [que] capricham na ostentação com que se apresentam em seus ruidosos passeios, na fertilidade das lembranças extravagantes, no gosto e riqueza com que preparam os teatros e as ruas por onde tem de transitar o préstito folgazão. Os três dias de carnaval são três dias de pleno regozijo, em que numerosa população sai à rua, ávida de riso e de prazer (A Reforma, Porto Alegre, 23 de fevereiro de 1873, p. 2)[3].
Entusiasta do carnaval veneziano, Desjenais
expunha aos leitores os benefícios que esse tipo de comemoração proporcionava,
trazendo deleite e alegria aos foliões. Afinal, segundo ele, todos podiam sair
à rua, sem ficar receosos de “que uma seringa lhe esguiche água podre no peito
da camisa; que de um sobrado lhe despejem uma bacia de água cheirosa, nem mesmo
que uma elegante menina lhe atire um mimoso limão”. Ao advertir sobre os
inconvenientes do jogo do entrudo, ressaltava que naquela cidade “já não se
conhecem esses elementos de molhadelas. Só há bisnagas de fragrantes essências,
que é mesmo um regalo achar um mísero mortal quem o borrife com cheiroso
líquido: só há confeitos e flores para oferecer ao sexo das gentilezas”
(A
Reforma, Porto Alegre, 23 de fevereiro de 1873, p.2)
O entrudo foi a maneira pela qual o carnaval chegou
ao Brasil, através de nossos colonizadores portugueses. Consistia numa série de brincadeiras e
pilhérias que se fazia durante este período, sobretudo, o arremesso de limões de cheiro (esferas de cera em formato
de laranjas/limão que continham água perfumada), água jogada de bisnagas,
seringas, bacias e baldes, farinha, pó de arroz e vermelhão. O objetivo era
mesmo molhar e sujar o adversário. Com o tempo passou a ser considerado um jogo
bárbaro, grosseiro - pois gerava “brigas domésticas, brigas públicas, dão-se
más respostas, recebem-se descomposturas,
quebra-se um perna, esfola-se o nariz, - o diabo, enfim!” - e licencioso –
que dava “lugar a episódios burlescos, aconchegos ternos, a que empreguemos com
toda a sem-cerimônia um dos nossos cinco sentidos, coisa que nos é inteiramente
proibida nos tempos comuns”, além de trazer prejuízos físico sanitários, ao
andar o homem “curtindo os efeitos de uma constipação,
atarefado no seu labor diário, suando em bicas, e ver-se repentinamente
molhado, e bem molhado” (A Reforma, Porto Alegre, 23 de fevereiro de
1873, p.2), como advertia Desjanais. Por esses
motivos deveria ser substituído por uma forma civilizada, moderna e decorosa de
se comemorar os dias de Momo: o carnaval veneziano.
As críticas de Desjanais ao jogo do entrudo fazem
parte de uma intensa campanha jornalística de combate a essa prática, numa
tentativa de remodelação das práticas carnavalescas, que visava estabelecer
novos padrões de conduta e sociabilidade para homens e mulheres na cidade. Em
trabalho anterior, buscamos examinar o gosto do público feminino pela brincadeira
do entrudo. Observamos que as mulheres eram ativas participantes dessa
brincadeira, tanto as mulheres da elite quando mulheres de classes populares
(LEAL, 2008). Ficavam munidas nas sacadas esperando os rapazes para jogarem ou
então saíam às ruas para se regozijarem com a brincadeira, como apontava
Desjanais, ao reclamar que “nem nos bondes já se pode andar. Esperam os carros,
e, das janelas, delicadas mãozinhas tiroteiam os passageiros!” (A Reforma,
Porto Alegre, 23 de fevereiro de 1873).
Desta forma, a criação de uma nova
prática carnavalesca pode ser entendida como uma ação moralizadora, de caráter
regulamentador do comportamento das mulheres. A brincadeira do entrudo e a
liberação sexual por ele facilitada permitiam que as mulheres pudessem exercer
suas vontades sem maiores reprimendas. Eram as protagonistas da festa. A partir
do nascimento das sociedades carnavalescas Esmeralda e Venezianos, contudo, se
deu a construção de um habitus, que
visava manter as mulheres “em suas ideias, percepções, práticas ou ações,
dentro dos padrões de comportamento e de auto-compreensão atribuídos pelo
processo de socialização do sistema de dominação” (BUTELLI, 2008, p. 135). Tanto
é que Desjanais dava ênfase ao fato de que
se o entrudo “não passasse do bombardeio das laranjinhas de cheiro e mesmo de
alguma boa porção de pós-de-arroz, seria suportável”. O problema é que durante
o jogo, “ficamos todos doidos, e entregamo-nos com furor aos excessos da folia.
Nada: precisamos acabar com o Entrudo” (A Reforma,
Porto Alegre, 23 de fevereiro de 1873).
Ao apontar os excessos praticados durante a folia, Desjanais suplicava pelo fim do entrudo, exclamando que:
Temos tantos carros na cidade e uma rapaziada que se distingue por seu bom gosto e fino espírito (é preciso elogiá-la); por que não havemos de organizar uma sociedade carnavalesca que enterre para sempre o antiquário Entrudo? Apareça aí um mais corajoso, tome a iniciativa, e verá que há de ser acompanhado. Se aparecer este herói, prometo desde já endeusá-lo, num discurso ad-hoc que há de ser proferido na sexta-feira gorda de 1874, por ocasião do banquete oferecido pelo Deus Baco, em regozijo à entrada da Quaresma (A Reforma, Porto Alegre, 23 de fevereiro de 1873, p. 2).
De
acordo com o folhetinista, a reformulação do carnaval – com a extinção do
entrudo e a organização de uma sociedade carnavalesca - seria uma incumbência
masculina, uma vez que convoca a rapaziada a tomar a iniciativa. Coragem,
heroísmo bom gosto e fino espírito seriam condições necessárias no processo
reformista. De acordo com Connell (2013, p. 253), “as masculinidades
hegemônicas podem ser construídas de forma que não correspondam verdadeiramente
à vida de nenhum homem real. Mesmo assim esses modelos expressam, em vários
sentidos, ideais, fantasias e desejos muito difundidos”. Neste sentido, os
atributos destacados por Desjanais expressavam a configuração de uma
masculinidade pautada por características de sexo, raça e classe que, ao
esculpir um ideal masculino para sociedade porto-alegrense oitocentista, exercia
forte controle sobre homens e mulheres[4].
Prova disso é o argumento de motivação utilizado por Desjanais a fim de que se
trabalhasse para enterrar o entrudo e se criassem sociedades carnavalescas.
“Olhem: no Rio Grande e Pelotas já há Carnaval. E é até vergonhoso para a
mocidade porto-alegrense ter deixado a rapaziada daquelas sociedades pôr-lhes o
pé na frente” (A
Reforma, 23 de
fevereiro de 1873).
[5] Ao exigir que todos os outros
homens se posicionem em relação a ela, a masculinidade hegemônica estabelece
posições hierárquicas nas relações entre esses homens. Desjanais, ao fazer uma
comparação com os moços das cidades de Rio Grande e de Pelotas, declarava que os
de lá haviam suplantado os da capital da Província, pois teriam criado
sociedades carnavalescas, sendo isso um motivo de vergonha. Ao acionar a defesa
da honra do jovem porto-alegrense, Desjanais apelou para aquilo que Bourdieu
define como sendo o centro de manutenção do capital simbólico masculino
(BOURDIEU, 2011, p. 51).
E de fato a provocação de Desjanais fora aceita. Poucos dias após, em 1º de março de 1873, foi fundada a primeira sociedade carnavalesca de Porto Alegre: a Esmeralda Porto-Alegrense. Dois dias após, era a vez de aparecerem Os Venezianos. No que tange a composição social dessas agremiações sabemos que os Venezianos eram pertencentes às famílias mais abastadas, membros do alto comércio e pessoas ligadas as atividades financeiras e empresariais. Entre os esmeraldinos, por sua vez, encontravam-se modestos funcionários públicos (vinte três entre os trinta que participaram da Assembleia Fundadora da Agremiação), comerciantes (proprietários de lojas de fazenda, relojoeiros e joalheiros) e major da Guarda Nacional (LAZZARI, 1998). Essa condição mais modesta dos esmeraldinos, contudo, nunca fora apontada como desprestígio, “todos os cronistas fazem questão de declarar que ambas as associações igualaram-se em excelência na tarefa de acabar com o entrudo e promover um carnaval brilhante” (LAZZARI, 1998, p. 87). Em um artigo publicado no periódico Mercantil, um articulista ressaltava as diferenças sociais existentes na Esmeralda, estando o “profano enrodilhado com o sagrado”, mas sem desmerecer, nem tirar o brilho dessa sociedade:
Encanta a sua espécie de democracia, com quanto no seu baile transpareçam uns loges de luxo e aristocracia. Mas enfim, ali está o profano enrodilhado com o sagrado, e por isso desculpa-se.A Esmeralda apresenta-se sempre feliz, ostentando também em parte de seus sócios certo luxo, que coaduna se perfeitamente com a simplicidade gentil da outra parte, sem, contudo desaparecer a elegância e bom gosto nos vestuários de todos (Mercantil, Porto Alegre, 01 de março de 1879, p. 1).
Quase quarenta anos após o nascimento de Esmeralda e Venezianos, o jornal O Independente publicou uma crônica na qual se propunha a historiar a criação do carnaval porto-alegrense que, segundo o respectivo periódico, teria nascido justamente em função de um episódio entrudesco.
O carnaval porto-alegrense nasceu de uma bomba d’água, que o entrudo traiçoeiro, penetrando nas trincheiras que os irmãos Masson (Leopoldo e Luiz) haviam construído em um sobrado à Rua dos Andradas, em 1870, irrigando a mangueira aos transeuntes.
Um caixeiro da botica Luiz Masson, que ficava por baixo do sobrado onde se achavam os irrigadores, á cavaleiro de qualquer investida, deu entrada por uma porta falsa, que havia na escada, a qual só ele conhecia, a uma legião de entrudeiros, comandados pelo coronel Joaquim Pedro Salgado.O assalto foi realizado de surpresa e a provisão d’água existente no sobrado, serviu para inundar a casa toda, deixando os entrincheirados como pintos depois das enxurradas. A água atravessando o assoalho e forro do piso inferior irrigou as prateleiras da farmácia Masson, estragando muitas coisas.O caixeiro após a espetagem deu as de vila logo, para escapar da indignação do patrão.Na quarta-feira de cinzas, o saudoso Amadeu Masson (pai) aconselhou a formação de uma sociedade para sustar o entrudo.Nasceu então a Esmeralda, criada pelos esforços do Sr. Leopoldo Masson, que, como joalheiro, foi o seu padrinho. E logo apareceu o emulo Os Venezianos, tendo sido o primeiro carnaval um extraordinário sucesso. O entrudo foi coibido e de ano em ano foi menos jogado até que desapareceu aquele brinco bárbaro e brutal que era sempre acompanhado de crimes (O Independente, Porto Alegre, 06 de fevereiro de 1910, p.3).
O nascimento do carnaval de Porto Alegre, de acordo com a narrativa do jornal O
Independente, teria se dado por causa de prejuízos financeiros que as
brincadeiras do entrudo teriam causado. Amadeu Masson teria aconselhado a
criação de sociedades carnavalescas a fim de “sustar o entrudo”. Seu filho,
Leopoldo Masson[6],
assim o fez, criando a Esmeralda Tanto Amadeu, quanto Leopoldo chegaram a
presidir a Esmeralda em 1877 e 1880, respectivamente.
Do mesmo modo, a criação dos Venezianos
contou com a colaboração do coronel Joaquim Pedro Salgado[7],
que teve destacada participação no episódio citado acima, ao liderar uma legião
de entrudeiros no ‘assalto’ à trincheira da casa Masson. Salgado foi o primeiro
presidente dessa sociedade. De acordo com a narrativa, ambas as sociedades
seriam “filhas do entrudo”: Leopoldo Masson que, galhardamente, molhava a todos
os transeuntes de sua ‘trincheira’ fundou a Esmeralda; e Salgado, que tomara de
assalto à casa Masson e encharcara os irmãos Masson, teria ajudado na criação
dos Venezianos.
A iniciativa para a organização de uma sociedade carnavalesca partiu, portanto, conforme fora sugerido por Desjanais – dos homens “de fino espírito”, dos “filhos da boa gente” da cidade. A decisão dos irmãos Masson e de Joaquim Pedro Salgado de fundarem Esmeralda e Venezianos, respectivamente, foi saudada como uma reforma de costumes que traria o progresso para a cidade ao eliminar a antiga prática entrudesca:
Livre-nos Deus de outro casal de presidentes tão patusco, como aquele que já uma vez o ressuscitou [o entrudo] entre nós; estaremos livres dele para sempre. A cidade de Porto Alegre deve estar orgulhosa de reconhecer em seus filhos desta época, jovens de idéias tão adiantadas, e tão entusiastas do progresso, que não hesitaram em fazer, a porfia, tão grandes sacrifícios, a fim de extirpar do seio da mãe pátria essa feia nódoa, que a envergonhava aos olhos das nações.Honra, pois, a essa mocidade que, em todos os cometimentos da esfera do conhecimento e da moralidade, não cedem a palma aos países mais antigamente civilizados, e que mais se distinguem nas vias do progresso humano (A Reforma, Porto Alegre, 14 de fevereiro de 1875).
No
Rio de Janeiro, os jornais, frequentemente, associavam o entrudo ao Império,
fazendo duras críticas a eles. Note-se que tanto D. Pedro I, quanto seu filho
D. Pedro II, parecem ter sido ardorosos jogadores (VALENÇA, 1996, p. 14) e, aos
olhos de quem defendia o novo carnaval, o gosto dos monarcas por tal
divertimento parecia “contribuir para que o entrudo, monarca destronado,
persistisse comandando o Carnaval nas ruas” (CUNHA, 2001, p. 54). Assim, a
tentativa de identificar o jogo com o imperador indicava que “a monarquia já
era vista, em pleno contexto do abolicionismo e da propaganda republicana, como
algo tão arcaico quanto o velho entrudo, que se combatia em nome da civilização
e do progresso” (CUNHA, 2001, p. 54). Em Porto Alegre, o jornal A Reforma fazia menção ao Presidente da
Província Antônio da Costa Pinto e Silva e à sua esposa, Maria Isabel de Sousa
Alvim, acusados de reviver a brincadeira na cidade no carnaval de 1869[8].
As críticas ao entrudo eram também críticas à forma de governo do Brasil imperial.
No
caso de Porto Alegre, contudo, as críticas ao entrudo e à monarquia se
revestiram de um caráter sexista: “Que esta renovação do passado fosse obra da
ex-marquesa nada há que admirar, pois é muito conhecida pelo seu ardente
temperamento e extraordinário calor” (A
Reforma, Porto Alegre, 15 de fevereiro de 1871)[9].
Acusada de reviver o entrudo, Maria Isabel foi atacada pelo jornal A Reforma, que em seu discurso buscava
deslegitimar a prática do jogo, através da descaracterização moral da figura da
mulher que o praticara; afinal aquele não era um comportamento “digno
das humanas filhas do Rio Grande” (A Reforma, Porto Alegre, 15 de fevereiro de
1871). Ao criticar o comportamento de Maria Isabel no carnaval, os homens de
jornal através de suas práticas discursivas contribuíam para o reforço de um
sistema de subordinação feminina, ao mesmo passo em que, ao descaracterizarem a
conduta de Maria Isabel, expressavam seu temor em relação ao poder exercido por
aquela mulher, um poder disruptor das relações sociais, tanto que buscava-se que ele não fosse um
modelo a ser seguido por demais mulheres.
Em várias cidades do Brasil o entrudo
era “considerado uma prática arcaica de comemorar os festejos dos Dias Gordos e
pouco condizente com as aspirações de modernidade manifestadas no país” (SILVA,
1997, p. 186). Caracterizado como o grande inimigo da civilização, a bárbara
tradição era uma feia nódoa para a cidade. A tradição, identificada com os
modos de ser do passado, enraizados nos hábitos e costumes – refletida no
entrudo –, passara a ser considerada inconveniente, grosseira e selvagem. Por
conseguinte, deveria ser trocada pela inovação burguesa - o desfile de jovens
ilustres em seus carros decorados - que representaria o avanço tecnológico e,
fundamentalmente, comportamental, dos habitantes da cidade de Porto Alegre,
rumo ao progresso. Segundo Touraine (1998), no século XIX, a ideia de progresso
era entendida como uma nova etapa da evolução humana. Ao sair do plano das
ideias e sob o uso da razão passou a organizar o todo social: políticas
públicas, formas de organização do trabalho, atividade de lazer, como por
exemplo, as maneiras de se brincar o carnaval.
E “nesse frenesi civilizatório não havia
espaço às práticas sociais consideradas ‘grosseiras’ e ‘sujas’ como o velho
entrudo” (SILVA, 1997, p. 186). Era preciso se construir uma nova imagem ideal
para o carnaval. Esmeralda e Venezianos passaram a representar o progresso e a
civilização. Com a chegada da Era Carnavalesca[10],
Porto Alegre se equiparava aos países mais civilizados, pelo menos no que se
referia às práticas carnavalescas. Era o triunfo do moderno sobre o
tradicional.
Oliveira (2004, p. 19) destaca que a
emergência de um ideal de masculinidade como norteador de comportamentos
“assumidos no Ocidente como autenticamente masculinos” está ligado a uma série
de transformações ocorridas na passagem da sociedade medieval para a sociedade
moderna: a formação do Estado nacional moderno, criação de instituições como o
exército, surgimento de ideais burgueses e valores de classe média, “calcados no
pragmatismo dos negócios, na personalidade moderada e no culto da ciência
metódico-racional” (OLIVEIRA, 2004, p. 19). Esses fatores contribuíram para a
modelação do moderno ideal masculino, que emerge como “a síntese mais fiel
desses mesmos valores, transformando-se num verdadeiro mito e, dessa forma,
influenciando também aquele grupo de instituições que possibilitou a sua
emergência” (OLIVEIRA, 2004, p. 21). É neste sentido que se percebe o ideário
da modernidade, tendo em vista a noção do inabalável progresso, conduzindo
discursivamente o processo reformista do carnaval de Porto Alegre e contribuindo
para a construção social de uma masculinidade enquanto mito efetivo da
sociedade moderna. Inúmeras características, vistas como qualidades sobre as
quais a própria sociedade gostaria de se autoprojetar, foram associadas ao
masculino e caracterizariam os homens que haveriam de promover as mudanças no carnavalde Porto Alegre: “jovens de ideias tão adiantadas”, “entusiastas do progresso”,
repletos de “conhecimento e moralidade”. Eram esses jovens homens modernos que
estariam trazendo para a cidade o progresso, a civilização, os ares da
modernidade, representados através da folia de Momo, afinal “modernidade e a
valorização de características assumidas como masculinas andam juntas” (OLIVEIRA,
2004, p. 21) [11].
No Brasil, com a troca de regime, ganhou
força o discurso de regeneração e moralidade, uma vez que se “reforçou
representações culturais que associavam o Império com a decadência e o passado,
e a República com a regeneração e o futuro” (MISKOLCI, 2012, p. 40). Desta
forma, se associava o entrudo à libertinagem, ao Império e ao atraso; enquanto
o carnaval, à moralidade, à República e ao progresso. Ao mesmo passo em que as
representações acerca do jogo do entrudo estariam associadas às mulheres e as
do carnaval veneziano aos homens, promovendo uma reconfiguração da festa
pautada por uma ordem de gênero, que subordinava as mulheres e tudo que a elas
era associado. Logo, entrudo = mulheres X sociedades = homens, numa relação de
contraposição de feminino/masculino X entrudo/sociedades, onde (a) feminino
implica (b) entrudo e (não a) masculino implica (não b) sociedades?
ENTRUDO |
SOCIEDADES CARNAVALESCAS |
Império |
República |
Decadência |
Progresso |
Passado |
Futuro |
Barbárie |
Civilização |
Imoralidade |
Regeneração |
Mulheres |
Homens |
O protagonismo masculino era identificado não só na criação das sociedades carnavalescas, como na execução dos festejos. A exibição nos préstitos que percorreriam as principais ruas da cidade era exclusiva aos jovens esmeraldinos e venezianos. Ao restante da população cabia ser coadjuvante da festa, pois "importante e agradável deve ser o passeio carnavalesco se, como é uso em todas as cidades civilizadas, os moradores ornamentarem as suas testadas convenientemente; e se, embelezarem as suas janelas com damascos e outros enfeites; e se, finalmente, em vez do limão prejudicial, jogarem flores". (FERREIRA, 1970, p. 32).
Às
mulheres, por sua vez, fora relegada uma posição de passividade frente aos
festejos carnavalescos. De ativas jogadoras do entrudo a espectadoras dos
préstitos promovidos pelos “mascarados esmeraldinos e venezianos”. Sua função
passara a ser atirar flores durante a exibição dos jovens carnavalescos,
conforme registrava a imprensa no carnaval de 1875, ao destacar que “combate
magnífico [nas exibições de Esmeralda e Venezianos] que deu em resultado ficar o
campo juncado de ... flores, tal foi o empenho das moças em jogar-lhes lindos
buquês” (FERREIRA, 1970, p. 39).
Entendemos que o controle dos corpos e do comportamento das mulheres foi um catalisador para a mudança de costumes que se estava a executar nessa reforma carnavalesca. De acordo com Careli (1997, p. 74), “os papéis desempenhados pela mulher eram essenciais à sobrevivência dos grupos, o sexo feminino deveria ser controlado de forma a colocar-se sob a tutela do masculino [...]”. O novo carnaval permitiria esse controle, o entrudo não. Desta forma, buscando atrair a atenção do “sexo mimoso, aquele que tem o dom de todas as graças, que é o enlevo das festas, a alma da vida” para o novo carnaval, os jovens esmeraldinos dirigiam seu discurso a ele:
Morreriam todas as galas e os festejos do carnaval se lhe faltasse o encanto peculiar à mulher, à mulher brasileira, sobretudo adorável pela beleza, sedutora pela graça e simplicidade de seu coração, que só sabe abrir-se aos amores santos, às festas civilizadoras, como são aquelas que promove e leva a efeito a “Esmeralda” (A Reforma, Porto Alegre, 14 de fevereiro de 1875, p. 2).
Além de atribuir características para um ideal de masculinidade, o novo carnaval definia um modelo de mulher: bela, graciosa, simples e casta; bem como estabelecia a conduta a ser seguida pelas moças porto-alegrense: abrir-se para as festas civilizadoras promovidas pelas sociedades carnavalescas – e não ao entrudo, que ao contrário daquelas, lhes oferecia amores profanos. E nessa significação dos atributos que compõem as identidades do masculino e do feminino, não só “as mulheres aprendem a ser femininas e submissas, e são controladas nisto, mas também os homens são vigiados na manutenção de sua masculinidade (TORRÃO FILHO, 2005, p. 139)”. Neste sentido, é importante observar que embora com distintos objetivos, o controle dos corpos e das paixões faz parte do ideário da modernidade, agindo tanto na construção das feminilidades, quanto das masculinidades. De acordo com Miskolci (2012, p. 53), o ideal de masculinidade, agenciado pelo projeto republicano, de fins do século XIX, no Rio de Janeiro, exigia o controle das paixões, autodisciplina em relação às pulsões sem regras e a educação do sentimento e do desejo. Segundo o autor,
[...]a consolidação do regime republicano é marcada por uma associação entre Estado e masculinidade que coloca à prova a capacidade de autodomínio de nossos homens de elite. Apenas aqueles que provassem seu autocontrole – uma vida regrada pelo casamento e a criação de uma família – poderiam ter reconhecido seu status de verdadeiro cidadão nacional (MISKOLCI, 2012, p. 53).
Isto posto,
observamos que esmeraldinos não só estipulavam lugares e
condições diferentes para as mulheres nesse novo carnaval, ao proclamarem que o sexo mimoso só se abre
para amores santos, como os que a Esmeralda lhes tinha a oferecer, como
se amoldavam a um ideal de masculinidade que lhes permitia o seu reconhecimento
enquanto verdadeiros cidadãos. Segundo Miskolci
(2012, p.43-44), o “ideal almejado de uma
nação civilizada exigia formas de defesa que apontavam para a educação do
desejo, seu controle e agenciamento de forma a transformar homens regidos pela
paixão em homens de caráter, em suma, cidadãos nacionais”.
É neste sentido também que interpretamos o
verso distribuído pelos venezianos para a população porto-alegrense enquanto
percorriam as principais ruas da cidade durante seu préstito, no ano de 1875.
Chamado Profissão de Fé,
nele os jovens pediam às “Castas donzelas desta terra ingente/lindas estrelas
de eternal fulgor/daí hoje aos filhos da Veneza ardente/flores, sorrisos e um
olhar de amor...”. As filhas da elite porto-alegrense -“belas deidades”,
“virgens de brilhante alvor” - não deveriam mais se entregar ao pernicioso jogo
do entrudo e sim participar do novo carnaval, aplaudindo e jogando flores aos
rapazes que faziam o desfile carnavalesco. As antigas carícias, namoricos e
excessos cometidos com o entrudo deveriam agora ser substituídos pelos olhares
de amores trocados com rapazes “castos”, “brincalhões”, “bondosos” e “gentis”,
como eles mesmos se declaravam no verso (A
Reforma, Porto Alegre, 11 de fevereiro de 1875).
De acordo com Oliveira (2004, p.21), nas
mudanças de ideais de masculinidade do medievo para a modernidade, “o ideal de
amor platônico, por exemplo, está relacionado diretamente com a transformação
do cavaleiro em cavalheiro, e será fundamental para que o ideal da família
burguesa, baseado no matrimônio, passe a imperar e a modelar um novo ideal masculino”.
É interessante ressaltar que o novo modelo de carnaval permitia acionar o
capital social de seus associados em prol de se conseguir matrimônios, uma vez
que, os bailes carnavalescos promovidos por essas associações eram frequentados
só pela elite da capital, sendo uma oportunidade interessante de se iniciar
relacionamentos que, muitas vezes, acabavam em casamentos, sem o perigo dos
“abraços traiçoeiros que começam na porta da rua e iam terminar mesmo nas
barbas dos senhores pais de família” (A
Reforma, Porto Alegre, 14 de fevereiro de 1875), oferecido pela brincadeira
do entrudo. Talvez tenha sido o caso de João da Matta Coelho e de Miguelina de Castro Werna e
Bilstein. Miguelina, filha de Miguel de Werna e Bilstein - presidente da
Esmeralda, em 1883 - foi rainha da agremiação no ano anterior, aos 14 anos de
idade[12].
Em 1886, em oratório particular, se casou com João da Matta Coelho (A Federação, Porto Alegre, 30 de
novembro de 1886), sócio dos Venezianos, chegou a ser tesoureiro e
vice-presidente da agremiação.
Desjanais prometera um discurso de endeusamento a ser proferido na sexta-feira gorda de 1874 ao herói que instaurasse o carnaval veneziano em Porto Alegre. Se de fato ele fez, infelizmente não conseguimos averiguar. Os heroicos esmeraldinos e venezianos, contudo, foram lembrados no ano de 1875 e comparados a ardorosos cavaleiros de tempos medievais.
Como os antigos paladinos da Idade Média, que batiam-se galhardamente só para receberem em troca um sorriso, ou uma lembrança grata da dama de suas afeições, assim também venezianos e esmeraldinos, à porfia, se atiram à luta, aspirando, como único galardão, a uma recepção estrondosa, a uma manifestação de simpatia; mas as suas armas são mais delicadas, e a sua causa é mais nobre que a daqueles, pois eles batem-se pela civilização, pela inoculação de ideias adiantadas, enquanto que aqueles somente o faziam para satisfazerem um capricho pessoal, sem fim algum, nobre, que os justificassem.Nós saudamos com verdadeiro entusiasmo os iniciadores e sustentadores dessa ideia grandiosa (A Reforma, Porto Alegre, 08 de fevereiro de 1875).
Assim
como os heróis da Idade Média - que se enfrentavam em troca de um sorriso - venezianos
e esmeraldinos também se empenhavam pela manifestação de simpatia das jovens porto-alegrense,
afinal não seria fácil extirpar o velho entrudo em seu duelo civilizador.
De acordo com Oliveira (2004, p. 25), à medida que a burguesia se apropria da ritualística do duelo medieval, a “ênfase na bravura, na ousadia e no destemor desloca-se paulatinamente para a questão da firmeza, do autocontrole e da contenção”. No ideal de masculinidade enunciado pelo carnaval veneziano, a bravura do nobre medieval foi transferida ao controle das pulsões sexuais - propiciadas pelo entrudo - que esmeraldinos e venezianos abdicavam em prol da “civilização” e de “ideias adiantadas”.
Considerações finais
Ao
longo do artigo buscamos discutir o processo reformista do carnaval
porto-alegrense e sua contribuição para a construção social de um ideal de
masculinidade. Queria-se trocar a brincadeira tradicional, por outra
considerada mais moderna e civilizada, inspirada em modelos europeus e já
praticada na Corte e em outras cidades do Rio Grande. Esmeraldinos e
venezianos, os filhos da “boa gente”, seriam os condutores dessa reforma de
costumes, que demarcava os papéis de gênero que deveriam ser assumidos na festa:
aos homens, caberia a ativa participação nos préstitos carnavalescos; enquanto para
as mulheres fora relegada uma posição de passividade, sendo delas esperada uma
estrondosa recepção ou uma manifestação de simpatia pelas festas executadas por
esmeraldinos e venezianos.
As representações construídas pela imprensa porto-alegrense, sobretudo do jornal A Reforma, acerca dos homens que participavam das sociedades carnavalescas traziam atributos qualitativos que nos remetem a um ideal de masculinidade da modernidade: jovens de ideias adiantadas que travavam uma luta pela civilização a fim de extirpar o entrudo dos hábitos da população. Corajosos, seriam verdadeiros heróis que, ao controlar suas paixões, trabalhariam em prol da manutenção da ordem social. Ao deixarem de ser regidos pelas paixões entrudescas, propunham “amores santos” e “festas civilizadoras”, provando seu autocontrole e buscando domínio sobre o comportamento das mulheres. Desta forma, poderiam ser reconhecidos como verdadeiros cidadãos.
Ao modelar atitudes, comportamentos,
práticas e sentimentos a serem seguidos pelos homens da cidade, a exaltação de
um discurso varonil do carnaval contribuiu para a inculcação da
ordem simbólica de dominação masculina, que excluía tanto as mulheres, quanto
os homens que não partilhassem dos mesmos signos distintivos de sexo, raça e
classe social. Desta
forma, podemos concluir que as mudanças propostas no processo reformista do
carnaval da Porto Alegre do século XIX serviram para um reforço das hierarquias
dominantes do masculino, nas quais os homens passaram não só a executar, como esse
próprio modelo de masculinidade passou a representar o carnaval, dentro de um
ideal de modernidade.
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Publicado originalmente em:
LEAL, C. P. Masculinidades e carnaval na Porto Alegre do último quartel do século XIX. Revista Crítica Histórica, [S. l.], v. 11, n. 22, p. 281–300, 2020. DOI: 10.28998/rchv11n22.2020.0013. Disponível em: https://www.seer.ufal.br/index.php/criticahistorica/article/view/10507. Acesso em: 25 dez. 2021.