Masculinidades e carnaval na Porto Alegre do último quartel do século XIX

Primeiro corso - Carnaval de Porto Alegre (1874)

Caroline P. Leal*
Resumo: O presente trabalho busca apresentar uma interpretação da história do carnaval de Porto Alegre por meio dos estudos de gênero. No ano de 1873 nasciam as sociedades carnavalescas Esmeralda e Os Venezianos. Além de modernizar e moralizar os festejos, substituindo as brincadeiras de entrudo por uma comemoração que fosse “civilizada”, “moderna” e representante dos novos tempos, o carnaval veneziano trouxe novos protagonistas para a festa - os jovens esmeraldinos e venezianos – relegando às mulheres a função de espectadoras. Nosso objetivo é averiguar as representações de masculinidade apresentadas pelo discurso da imprensa porto-alegrense a partir da instauração do carnaval veneziano. Ao problematizar a construção social das masculinidades na Porto Alegre do século XIX, evidenciamos que o movimento reformista do carnaval serviu como reforço das hierarquias dominantes do masculino, nas quais os homens passaram não só a executar, como a representar o próprio carnaval, dentro de um ideal de modernidade. 
Palavras-chave: carnaval, gênero, masculinidades.

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A diversificação dos estudos de gênero, ocorrida nas últimas décadas, contribuiu para a pluralidade, a inclusão e o crescimento de pesquisas sobre homens e masculinidades neste campo de estudo (CONNELL, 2016). Surgidas no bojo das discussões da segunda onda do movimento feminista, entre os anos de 1960 e 1980, nos Estados Unidos, forneceram base para o que se passou a chamar de Men’s Studies. A partir disso, diversos pesquisadores e pesquisadoras, nacionais e estrangeiros, passaram a se dedicar ao tema (HEILBORN; CARRARA, 1998; OLIVEIRA, 1998; PRIORE, 2013; CONNELL, 2013), fornecendo subsídios para a construção de uma agenda em prol da igualdade de gênero para o século XXI (ONU, 2020). Afinal, esta é uma mudança que, necessariamente, envolve os homens. Para isso, é preciso que examinemos como eles “têm sido compreendidos, a política dos ‘movimentos masculinistas’, os interesses divididos, de homens e meninos, em relações de gênero, e o que as pesquisas apontam quanto a cambiante e conflituosa construção social de masculinidades” (CONNELL, 2016, p. 91). 

Neste sentido, o presente trabalho busca analisar a história do carnaval de Porto Alegre com ênfase nas representações das masculinidades, tendo como ponto de partida o gênero como categoria relacional de análise. O ano de 1873 foi um marco no carnaval de Porto Alegre: nasciam as sociedades carnavalescas Esmeralda e Os Venezianos. Tais agremiações pretendiam mudar a cara dos festejos na capital gaúcha, instaurando um novo modelo de festa - o carnaval veneziano, com préstitos e bailes fechados a seus sócios. Além de modernizar e moralizar os festejos, substituindo as brincadeiras de entrudo por uma comemoração que fosse “civilizada”, “moderna” e representante dos novos tempos, o carnaval veneziano trouxe novos protagonistas para a festa - os jovens esmeraldinos e venezianos – relegando às mulheres a função de espectadoras. Dessa forma, nosso objetivo é averiguar as representações de masculinidade apresentada pelo discurso da imprensa porto-alegrense a partir da instauração do carnaval veneziano. Ao problematizar a construção social das masculinidades na Porto Alegre do século XIX, evidenciaremos que essa reforma carnavalesca serviu como reforço das hierarquias dominantes do masculino, nas quais os homens passaram não só a executar, como a representar o próprio carnaval, dentro de um ideal de modernidade.

O gênero, segundo Connell (2016, p. 34), envolve “um vasto processo formativo na história, ao mesmo tempo criativo e violento, no qual corpos e culturas estão igualmente em jogo e são constantemente transformados”. Neste sentido, masculinidades e feminilidades são “constructos sociais e culturalmente forjados, rizomáticos, relacionais, interdependentes e de múltiplas definições. Por isso, o caráter histórico, datado e político do gênero” (SILVA, 2015, p. 10). Nesta construção social naturalizada que constitui as masculinidades e as feminilidades, introjetamos construções históricas, sociais e culturais que evidenciam inúmeras desigualdades e hierarquias, produzindo significados e testemunhando práticas de diferentes gradações, sendo isto um “produto de um trabalho incessante (e, como tal, histórico) de reprodução para qual contribuem agentes específicos [...] e instituições, famílias, Igreja, Escola, Estado” (BOURDIEU, 2011, p. 46) e, acrescentaríamos o carnaval.

A masculinidade, portanto, é “uma configuração de prática em torno da posição dos homens na estrutura das relações de gênero, [salientando que há] mais de uma configuração desse tipo em qualquer ordem de gênero de uma sociedade” (CONNELL, 1995, p. 189). Desta forma, seria errôneo pensarmos em masculinidade, posto estas multiplicidades, e sim, em masculinidades, pois “diferentes masculinidades são produzidas no mesmo contexto social [e] qualquer forma particular de masculinidade é, ela própria, internamente complexa e até mesmo contraditória” (CONNELL, 1995, p. 189). Existe, contudo, um modelo central, a masculinidade hegemônica, que se distingui de outras masculinidades, especialmente das masculinidades subordinadas, estilos considerados impróprios. Desta forma, a masculinidade hegemônica seria a normativa, arraigada no plano discursivo, “incorpora a forma mais honrada de ser um homem, ela exige que todos os outros homens se posicionem em relação a ela e legitima ideologicamente a subordinação global das mulheres aos homens”, embora apenas uma minoria dos homens talvez a adote (CONNELL; MESSERCHMIDT, 2013, p. 245). O conceito de masculinidade hegemônica busca “dar conta da dinâmica de poder inscrita nas relações de gênero [...] [pois] representa a estrutura de poder das relações sexuais, buscando excluir qualquer variação de comportamento masculino que não se adeque a seus preceitos” (OLIVEIRA, 1998, p. 105).

Outro conceito importante no desenvolvimento de nossas ideias é o de representação, ou seja, os “sistemas de interpretação que regem nossa relação com o mundo e com os outros – orientam e organizam condutas e comunicações sociais” (TEDESCHI, 2012, p. 30). É o instrumento por meio do qual os indivíduos criam um significado para o mundo social. De acordo com Chartier, tal conceito é um componente essencial dos discursos – práticas munidas de intencionalidade e interesses específicos (CHARTIER, 1991).

Desta forma, para discutir as representações de masculinidade da Porto Alegre oitocentista por meio do carnaval, nos valeremos da imprensa escrita. Utilizaremos o jornal como fonte histórica, buscando desvendar o sentido da escrita jornalística em dois tempos, “um objetivo que interpreta o texto escrito efetivamente e outro subjetivo que precisa entender aquilo que não aparece escrito, mas é possível identificar à luz do contexto histórico”, pois conforme aponta Sosa (2007, p.12) “o estudo da imprensa necessita do reconhecimento do que está em torno dela, já que essa mesma imprensa está invariavelmente atrelada ao seu tempo histórico”. É neste sentido que como metodologia foi empregado princípios da Análise de Discurso, buscando extrair o efeito de sentido dos discursos veiculados pelo respectivo periódico. Ao entendermos o discurso como uma construção social, que reflete a visão de mundo de seus produtores em relação à sociedade em que vivem, ele deve ser analisado considerando seu contexto histórico-social e suas condições de produção, pois “cabe ao analista procurar apreender a construção discursiva dos referentes” (ORLANDI, 1994, p. 53),

À vista disso, o jornal A Reforma, entre os anos de 1873 a 1875, foi a principal referência desta pesquisa. Periódico vinculado aos representantes das elites políticas locais que desejavam maior autonomia em relação ao governo central, A Reforma foi o pioneiro no jornalismo político-partidário rio-grandense, assumindo o papel de difusor da doutrina dos liberais (RÜDIGER, 1993). Fundado em 1869, por Gaspar Silveira Martins, seu acervo encontra-se no Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, em Porto Alegre/RS. Seus integrantes, além de estarem ligados ao Partido Liberal, participavam de outros grupos como o Partenon Literário e o Centro abolicionista de Porto Alegre (SILVA, 1986) e, muitos de seus membros, foram adeptos do carnaval veneziano, associando-se à Esmeralda ou aos Venezianos, como por exemplo: Aurélio Veríssimo de Bittencourt, Antonio Lara Fontoura, Norberto A. Vasques, Inácio de Vasconcelos, Germano Hasslocher e Joaquim Antônio Vasques.

Carnaval veneziano e masculinidades

Era Domingo de carnaval do ano de 1873. Desjanais, pseudônimo de Joaquim Antônio Vasques,[2] em sua coluna publicada no jornal A Reforma saudava “o dia da folia, da loucura, do regozijo, da mais ampla liberdade” e discorria sobre o surgimento do carnaval veneziano:

Em Veneza, milhares de gôndolas flutuam galhardas, atravessando os numerosos canais, saudando o soberbo palácio dos Doges e o Leão de São Marcos. Foi ali que o Carnaval imperou e enraizou-se como em parte alguma do mundo. Foi ali, na rainha do Adriático, que a festa carnavalesca alcançou o maior grau de magnificência e brilhantismo (A Reforma, Porto Alegre, 23 de fevereiro de 1873).

Ao destacar sua disseminação para as demais cidades europeias - “de Veneza a Milão, de Milão a Roma, de Roma a Florença a viagem é curta, e o carnaval ali floresceu” - ressaltava sua chegada à América, onde “até os ingleses, povo que não gosta de expansões, se entregam às alegrais do Carnaval”, e ao Rio de Janeiro, cidade em que o carnaval já tinha “interesse e importância”. Ou seja, lá já havia

um grande número de sociedades carnavalescas [que] capricham na ostentação com que se apresentam em seus ruidosos passeios, na fertilidade das lembranças extravagantes, no gosto e riqueza com que preparam os teatros e as ruas por onde tem de transitar o préstito folgazão. Os três dias de carnaval são três dias de pleno regozijo, em que numerosa população sai à rua, ávida de riso e de prazer (A Reforma, Porto Alegre, 23 de fevereiro de 1873, p. 2)[3].

Entusiasta do carnaval veneziano, Desjenais expunha aos leitores os benefícios que esse tipo de comemoração proporcionava, trazendo deleite e alegria aos foliões. Afinal, segundo ele, todos podiam sair à rua, sem ficar receosos de “que uma seringa lhe esguiche água podre no peito da camisa; que de um sobrado lhe despejem uma bacia de água cheirosa, nem mesmo que uma elegante menina lhe atire um mimoso limão”. Ao advertir sobre os inconvenientes do jogo do entrudo, ressaltava que naquela cidade “já não se conhecem esses elementos de molhadelas. Só há bisnagas de fragrantes essências, que é mesmo um regalo achar um mísero mortal quem o borrife com cheiroso líquido: só há confeitos e flores para oferecer ao sexo das gentilezas” (A Reforma, Porto Alegre, 23 de fevereiro de 1873, p.2)

O entrudo foi a maneira pela qual o carnaval chegou ao Brasil, através de nossos colonizadores portugueses. Consistia numa série de brincadeiras e pilhérias que se fazia durante este período, sobretudo, o arremesso de limões de cheiro (esferas de cera em formato de laranjas/limão que continham água perfumada), água jogada de bisnagas, seringas, bacias e baldes, farinha, pó de arroz e vermelhão. O objetivo era mesmo molhar e sujar o adversário. Com o tempo passou a ser considerado um jogo bárbaro, grosseiro - pois gerava “brigas domésticas, brigas públicas, dão-se más respostas, recebem-se descomposturas, quebra-se um perna, esfola-se o nariz, - o diabo, enfim!” - e licencioso – que dava “lugar a episódios burlescos, aconchegos ternos, a que empreguemos com toda a sem-cerimônia um dos nossos cinco sentidos, coisa que nos é inteiramente proibida nos tempos comuns”, além de trazer prejuízos físico sanitários, ao andar o homem “curtindo os efeitos de uma constipação, atarefado no seu labor diário, suando em bicas, e ver-se repentinamente molhado, e bem molhado” (A Reforma, Porto Alegre, 23 de fevereiro de 1873, p.2), como advertia Desjanais. Por esses motivos deveria ser substituído por uma forma civilizada, moderna e decorosa de se comemorar os dias de Momo: o carnaval veneziano.

As críticas de Desjanais ao jogo do entrudo fazem parte de uma intensa campanha jornalística de combate a essa prática, numa tentativa de remodelação das práticas carnavalescas, que visava estabelecer novos padrões de conduta e sociabilidade para homens e mulheres na cidade. Em trabalho anterior, buscamos examinar o gosto do público feminino pela brincadeira do entrudo. Observamos que as mulheres eram ativas participantes dessa brincadeira, tanto as mulheres da elite quando mulheres de classes populares (LEAL, 2008). Ficavam munidas nas sacadas esperando os rapazes para jogarem ou então saíam às ruas para se regozijarem com a brincadeira, como apontava Desjanais, ao reclamar que “nem nos bondes já se pode andar. Esperam os carros, e, das janelas, delicadas mãozinhas tiroteiam os passageiros!” (A Reforma, Porto Alegre, 23 de fevereiro de 1873).

Desta forma, a criação de uma nova prática carnavalesca pode ser entendida como uma ação moralizadora, de caráter regulamentador do comportamento das mulheres. A brincadeira do entrudo e a liberação sexual por ele facilitada permitiam que as mulheres pudessem exercer suas vontades sem maiores reprimendas. Eram as protagonistas da festa. A partir do nascimento das sociedades carnavalescas Esmeralda e Venezianos, contudo, se deu a construção de um habitus, que visava manter as mulheres “em suas ideias, percepções, práticas ou ações, dentro dos padrões de comportamento e de auto-compreensão atribuídos pelo processo de socialização do sistema de dominação” (BUTELLI, 2008, p. 135). Tanto é que Desjanais dava ênfase ao fato de que se o entrudo “não passasse do bombardeio das laranjinhas de cheiro e mesmo de alguma boa porção de pós-de-arroz, seria suportável”. O problema é que durante o jogo, “ficamos todos doidos, e entregamo-nos com furor aos excessos da folia. Nada: precisamos acabar com o Entrudo” (A Reforma, Porto Alegre, 23 de fevereiro de 1873).

Ao apontar os excessos praticados durante a folia, Desjanais suplicava pelo fim do entrudo, exclamando que:

Temos tantos carros na cidade e uma rapaziada que se distingue por seu bom gosto e fino espírito (é preciso elogiá-la); por que não havemos de organizar uma sociedade carnavalesca que enterre para sempre o antiquário Entrudo? Apareça aí um mais corajoso, tome a iniciativa, e verá que há de ser acompanhado. Se aparecer este herói, prometo desde já endeusá-lo, num discurso ad-hoc que há de ser proferido na sexta-feira gorda de 1874, por ocasião do banquete oferecido pelo Deus Baco, em regozijo à entrada da Quaresma (A Reforma, Porto Alegre, 23 de fevereiro de 1873, p. 2).

De acordo com o folhetinista, a reformulação do carnaval – com a extinção do entrudo e a organização de uma sociedade carnavalesca - seria uma incumbência masculina, uma vez que convoca a rapaziada a tomar a iniciativa. Coragem, heroísmo bom gosto e fino espírito seriam condições necessárias no processo reformista. De acordo com Connell (2013, p. 253), “as masculinidades hegemônicas podem ser construídas de forma que não correspondam verdadeiramente à vida de nenhum homem real. Mesmo assim esses modelos expressam, em vários sentidos, ideais, fantasias e desejos muito difundidos”. Neste sentido, os atributos destacados por Desjanais expressavam a configuração de uma masculinidade pautada por características de sexo, raça e classe que, ao esculpir um ideal masculino para sociedade porto-alegrense oitocentista, exercia forte controle sobre homens e mulheres[4]. Prova disso é o argumento de motivação utilizado por Desjanais a fim de que se trabalhasse para enterrar o entrudo e se criassem sociedades carnavalescas. “Olhem: no Rio Grande e Pelotas já há Carnaval. E é até vergonhoso para a mocidade porto-alegrense ter deixado a rapaziada daquelas sociedades pôr-lhes o pé na frente” (A Reforma, 23 de fevereiro de 1873). [5] Ao exigir que todos os outros homens se posicionem em relação a ela, a masculinidade hegemônica estabelece posições hierárquicas nas relações entre esses homens. Desjanais, ao fazer uma comparação com os moços das cidades de Rio Grande e de Pelotas, declarava que os de lá haviam suplantado os da capital da Província, pois teriam criado sociedades carnavalescas, sendo isso um motivo de vergonha. Ao acionar a defesa da honra do jovem porto-alegrense, Desjanais apelou para aquilo que Bourdieu define como sendo o centro de manutenção do capital simbólico masculino (BOURDIEU, 2011, p. 51).

E de fato a provocação de Desjanais fora aceita. Poucos dias após, em 1º de março de 1873, foi fundada a primeira sociedade carnavalesca de Porto Alegre: a Esmeralda Porto-Alegrense. Dois dias após, era a vez de aparecerem Os Venezianos. No que tange a composição social dessas agremiações sabemos que os Venezianos eram pertencentes às famílias mais abastadas, membros do alto comércio e pessoas ligadas as atividades financeiras e empresariais. Entre os esmeraldinos, por sua vez, encontravam-se modestos funcionários públicos (vinte três entre os trinta que participaram da Assembleia Fundadora da Agremiação), comerciantes (proprietários de lojas de fazenda, relojoeiros e joalheiros) e major da Guarda Nacional (LAZZARI, 1998). Essa condição mais modesta dos esmeraldinos, contudo, nunca fora apontada como desprestígio, “todos os cronistas fazem questão de declarar que ambas as associações igualaram-se em excelência na tarefa de acabar com o entrudo e promover um carnaval brilhante” (LAZZARI, 1998, p. 87). Em um artigo publicado no periódico Mercantil, um articulista ressaltava as diferenças sociais existentes na Esmeralda, estando o “profano enrodilhado com o sagrado”, mas sem desmerecer, nem tirar o brilho dessa sociedade:

Encanta a sua espécie de democracia, com quanto no seu baile transpareçam uns loges de luxo e aristocracia. Mas enfim, ali está o profano enrodilhado com o sagrado, e por isso desculpa-se.
A Esmeralda apresenta-se sempre feliz, ostentando também em parte de seus sócios certo luxo, que coaduna se perfeitamente com a simplicidade gentil da outra parte, sem, contudo desaparecer a elegância e bom gosto nos vestuários de todos (Mercantil, Porto Alegre, 01 de março de 1879, p. 1).
       A constituição social dessa associação abrangia, portanto, tanto elementos pertencentes das camadas mais abastadas, quanto indivíduos que, apesar de apresentarem condição mais modesta, vestiam-se e partilhavam da mesma elegância e bom gosto dos demais, compartilhando os mesmos “signos distintivos” (BOURDIEU, 1996) da elite econômica local. Ambas as agremiações reuniam em seus quadros indivíduos bem posicionados na sociedade, fossem eles "modestos burocratas ou ricos negociantes, jornalistas e literatos ou membros da elite política, eram jovens que estudaram em boas escolas, conseguiram bons empregos e carregaram o prestígio ascendente das suas famílias e o seu próprio para a exibição pública" (LAZZARI, 1998, p. 89).

Quase quarenta anos após o nascimento de Esmeralda e Venezianos, o jornal O Independente publicou uma crônica na qual se propunha a historiar a criação do carnaval porto-alegrense que, segundo o respectivo periódico, teria nascido justamente em função de um episódio entrudesco.

O carnaval porto-alegrense nasceu de uma bomba d’água, que o entrudo traiçoeiro, penetrando nas trincheiras que os irmãos Masson (Leopoldo e Luiz) haviam construído em um sobrado à Rua dos Andradas, em 1870, irrigando a mangueira aos transeuntes.
Um caixeiro da botica Luiz Masson, que ficava por baixo do sobrado onde se achavam os irrigadores, á cavaleiro de qualquer investida, deu entrada por uma porta falsa, que havia na escada, a qual só ele conhecia, a uma legião de entrudeiros, comandados pelo coronel Joaquim Pedro Salgado.

O assalto foi realizado de surpresa e a provisão d’água existente no sobrado, serviu para inundar a casa toda, deixando os entrincheirados como pintos depois das enxurradas. A água atravessando o assoalho e forro do piso inferior irrigou as prateleiras da farmácia Masson, estragando muitas coisas.

O caixeiro após a espetagem deu as de vila logo, para escapar da indignação do patrão.

Na quarta-feira de cinzas, o saudoso Amadeu Masson (pai) aconselhou a formação de uma sociedade para sustar o entrudo.

Nasceu então a Esmeralda, criada pelos esforços do Sr. Leopoldo Masson, que, como joalheiro, foi o seu padrinho. E logo apareceu o emulo Os Venezianos, tendo sido o primeiro carnaval um extraordinário sucesso. O entrudo foi coibido e de ano em ano foi menos jogado até que desapareceu aquele brinco bárbaro e brutal que era sempre acompanhado de crimes (O Independente, Porto Alegre, 06 de fevereiro de 1910, p.3).

O nascimento do carnaval de Porto Alegre, de acordo com a narrativa do jornal O Independente, teria se dado por causa de prejuízos financeiros que as brincadeiras do entrudo teriam causado. Amadeu Masson teria aconselhado a criação de sociedades carnavalescas a fim de “sustar o entrudo”. Seu filho, Leopoldo Masson[6], assim o fez, criando a Esmeralda Tanto Amadeu, quanto Leopoldo chegaram a presidir a Esmeralda em 1877 e 1880, respectivamente.

Do mesmo modo, a criação dos Venezianos contou com a colaboração do coronel Joaquim Pedro Salgado[7], que teve destacada participação no episódio citado acima, ao liderar uma legião de entrudeiros no ‘assalto’ à trincheira da casa Masson. Salgado foi o primeiro presidente dessa sociedade. De acordo com a narrativa, ambas as sociedades seriam “filhas do entrudo”: Leopoldo Masson que, galhardamente, molhava a todos os transeuntes de sua ‘trincheira’ fundou a Esmeralda; e Salgado, que tomara de assalto à casa Masson e encharcara os irmãos Masson, teria ajudado na criação dos Venezianos.

A iniciativa para a organização de uma sociedade carnavalesca partiu, portanto, conforme fora sugerido por Desjanais – dos homens “de fino espírito”, dos “filhos da boa gente” da cidade. A decisão dos irmãos Masson e de Joaquim Pedro Salgado de fundarem Esmeralda e Venezianos, respectivamente, foi saudada como uma reforma de costumes que traria o progresso para a cidade ao eliminar a antiga prática entrudesca:


Livre-nos Deus de outro casal de presidentes tão patusco, como aquele que já uma vez o ressuscitou [o entrudo] entre nós; estaremos livres dele para sempre. A cidade de Porto Alegre deve estar orgulhosa de reconhecer em seus filhos desta época, jovens de idéias tão adiantadas, e tão entusiastas do progresso, que não hesitaram em fazer, a porfia, tão grandes sacrifícios, a fim de extirpar do seio da mãe pátria essa feia nódoa, que a envergonhava aos olhos das nações.

Honra, pois, a essa mocidade que, em todos os cometimentos da esfera do conhecimento e da moralidade, não cedem a palma aos países mais antigamente civilizados, e que mais se distinguem nas vias do progresso humano (A Reforma, Porto Alegre, 14 de fevereiro de 1875).

No Rio de Janeiro, os jornais, frequentemente, associavam o entrudo ao Império, fazendo duras críticas a eles. Note-se que tanto D. Pedro I, quanto seu filho D. Pedro II, parecem ter sido ardorosos jogadores (VALENÇA, 1996, p. 14) e, aos olhos de quem defendia o novo carnaval, o gosto dos monarcas por tal divertimento parecia “contribuir para que o entrudo, monarca destronado, persistisse comandando o Carnaval nas ruas” (CUNHA, 2001, p. 54). Assim, a tentativa de identificar o jogo com o imperador indicava que “a monarquia já era vista, em pleno contexto do abolicionismo e da propaganda republicana, como algo tão arcaico quanto o velho entrudo, que se combatia em nome da civilização e do progresso” (CUNHA, 2001, p. 54). Em Porto Alegre, o jornal A Reforma fazia menção ao Presidente da Província Antônio da Costa Pinto e Silva e à sua esposa, Maria Isabel de Sousa Alvim, acusados de reviver a brincadeira na cidade no carnaval de 1869[8]. As críticas ao entrudo eram também críticas à forma de governo do Brasil imperial.

No caso de Porto Alegre, contudo, as críticas ao entrudo e à monarquia se revestiram de um caráter sexista: “Que esta renovação do passado fosse obra da ex-marquesa nada há que admirar, pois é muito conhecida pelo seu ardente temperamento e extraordinário calor” (A Reforma, Porto Alegre, 15 de fevereiro de 1871)[9]. Acusada de reviver o entrudo, Maria Isabel foi atacada pelo jornal A Reforma, que em seu discurso buscava deslegitimar a prática do jogo, através da descaracterização moral da figura da mulher que o praticara; afinal aquele não era um comportamento “digno das humanas filhas do Rio Grande” (A Reforma, Porto Alegre, 15 de fevereiro de 1871). Ao criticar o comportamento de Maria Isabel no carnaval, os homens de jornal através de suas práticas discursivas contribuíam para o reforço de um sistema de subordinação feminina, ao mesmo passo em que, ao descaracterizarem a conduta de Maria Isabel, expressavam seu temor em relação ao poder exercido por aquela mulher, um poder disruptor das relações sociais,  tanto que buscava-se que ele não fosse um modelo a ser seguido por demais mulheres.

Em várias cidades do Brasil o entrudo era “considerado uma prática arcaica de comemorar os festejos dos Dias Gordos e pouco condizente com as aspirações de modernidade manifestadas no país” (SILVA, 1997, p. 186). Caracterizado como o grande inimigo da civilização, a bárbara tradição era uma feia nódoa para a cidade. A tradição, identificada com os modos de ser do passado, enraizados nos hábitos e costumes – refletida no entrudo –, passara a ser considerada inconveniente, grosseira e selvagem. Por conseguinte, deveria ser trocada pela inovação burguesa - o desfile de jovens ilustres em seus carros decorados - que representaria o avanço tecnológico e, fundamentalmente, comportamental, dos habitantes da cidade de Porto Alegre, rumo ao progresso. Segundo Touraine (1998), no século XIX, a ideia de progresso era entendida como uma nova etapa da evolução humana. Ao sair do plano das ideias e sob o uso da razão passou a organizar o todo social: políticas públicas, formas de organização do trabalho, atividade de lazer, como por exemplo, as maneiras de se brincar o carnaval.

E “nesse frenesi civilizatório não havia espaço às práticas sociais consideradas ‘grosseiras’ e ‘sujas’ como o velho entrudo” (SILVA, 1997, p. 186). Era preciso se construir uma nova imagem ideal para o carnaval. Esmeralda e Venezianos passaram a representar o progresso e a civilização. Com a chegada da Era Carnavalesca[10], Porto Alegre se equiparava aos países mais civilizados, pelo menos no que se referia às práticas carnavalescas. Era o triunfo do moderno sobre o tradicional.

Oliveira (2004, p. 19) destaca que a emergência de um ideal de masculinidade como norteador de comportamentos “assumidos no Ocidente como autenticamente masculinos” está ligado a uma série de transformações ocorridas na passagem da sociedade medieval para a sociedade moderna: a formação do Estado nacional moderno, criação de instituições como o exército, surgimento de ideais burgueses e valores de classe média, “calcados no pragmatismo dos negócios, na personalidade moderada e no culto da ciência metódico-racional” (OLIVEIRA, 2004, p. 19). Esses fatores contribuíram para a modelação do moderno ideal masculino, que emerge como “a síntese mais fiel desses mesmos valores, transformando-se num verdadeiro mito e, dessa forma, influenciando também aquele grupo de instituições que possibilitou a sua emergência” (OLIVEIRA, 2004, p. 21). É neste sentido que se percebe o ideário da modernidade, tendo em vista a noção do inabalável progresso, conduzindo discursivamente o processo reformista do carnaval de Porto Alegre e contribuindo para a construção social de uma masculinidade enquanto mito efetivo da sociedade moderna. Inúmeras características, vistas como qualidades sobre as quais a própria sociedade gostaria de se autoprojetar, foram associadas ao masculino e caracterizariam os homens que haveriam de promover as mudanças no carnavalde Porto Alegre: “jovens de ideias tão adiantadas”, “entusiastas do progresso”, repletos de “conhecimento e moralidade”. Eram esses jovens homens modernos que estariam trazendo para a cidade o progresso, a civilização, os ares da modernidade, representados através da folia de Momo, afinal “modernidade e a valorização de características assumidas como masculinas andam juntas” (OLIVEIRA, 2004, p. 21)  [11].

No Brasil, com a troca de regime, ganhou força o discurso de regeneração e moralidade, uma vez que se “reforçou representações culturais que associavam o Império com a decadência e o passado, e a República com a regeneração e o futuro” (MISKOLCI, 2012, p. 40). Desta forma, se associava o entrudo à libertinagem, ao Império e ao atraso; enquanto o carnaval, à moralidade, à República e ao progresso. Ao mesmo passo em que as representações acerca do jogo do entrudo estariam associadas às mulheres e as do carnaval veneziano aos homens, promovendo uma reconfiguração da festa pautada por uma ordem de gênero, que subordinava as mulheres e tudo que a elas era associado. Logo, entrudo = mulheres X sociedades = homens, numa relação de contraposição de feminino/masculino X entrudo/sociedades, onde (a) feminino implica (b) entrudo e (não a) masculino implica (não b) sociedades?

 Quadro 1 – Quadro comparativo Entrudo x Sociedades Carnavalescas.

ENTRUDO

SOCIEDADES CARNAVALESCAS

Império

República

Decadência

Progresso

Passado

Futuro

Barbárie

Civilização

Imoralidade

Regeneração

Mulheres

Homens

 O certo é que, a partir do carnaval veneziano, com a criação de Esmeralda e Venezianos, os jovens homens da elite porto-alegrense - “a nata dos moços da nossa sociedade, a boa gente da terra” (FERREIRA, 1970, p. 32) - passaram a exercer o protagonismo nas atividades carnavalescas. Seu pertencimento social, bem como o fato de terem sido “os iniciadores da reforma, [...] que visando mais um progresso, firmaram a abolição do entrudo e concorreram gostosos para o abrilhantamento da festa carnavalesca” (A Reforma, Porto Alegre, 19 de fevereiro de 1874), dava-lhes o “direito a todas as atenções dos habitantes, aos quais cabe também de sua parte secundá-los no abrilhantamento das festas carnavalescas” (FERREIRA, 1970, p. 32).

O protagonismo masculino era identificado não só na criação das sociedades carnavalescas, como na execução dos festejos. A exibição nos préstitos que percorreriam as principais ruas da cidade era exclusiva aos jovens esmeraldinos e venezianos.  Ao restante da população cabia ser coadjuvante da festa, pois "importante e agradável deve ser o passeio carnavalesco se, como é uso em todas as cidades civilizadas, os moradores ornamentarem as suas testadas convenientemente; e se, embelezarem as suas janelas com damascos e outros enfeites; e se, finalmente, em vez do limão prejudicial, jogarem flores". (FERREIRA, 1970, p. 32).

Às mulheres, por sua vez, fora relegada uma posição de passividade frente aos festejos carnavalescos. De ativas jogadoras do entrudo a espectadoras dos préstitos promovidos pelos “mascarados esmeraldinos e venezianos”. Sua função passara a ser atirar flores durante a exibição dos jovens carnavalescos, conforme registrava a imprensa no carnaval de 1875, ao destacar que “combate magnífico [nas exibições de Esmeralda e Venezianos] que deu em resultado ficar o campo juncado de ... flores, tal foi o empenho das moças em jogar-lhes lindos buquês” (FERREIRA, 1970, p. 39).

Entendemos que o controle dos corpos e do comportamento das mulheres foi um catalisador para a mudança de costumes que se estava a executar nessa reforma carnavalesca. De acordo com Careli (1997, p. 74), “os papéis desempenhados pela mulher eram essenciais à sobrevivência dos grupos, o sexo feminino deveria ser controlado de forma a colocar-se sob a tutela do masculino [...]”. O novo carnaval permitiria esse controle, o entrudo não. Desta forma, buscando atrair a atenção do “sexo mimoso, aquele que tem o dom de todas as graças, que é o enlevo das festas, a alma da vida” para o novo carnaval, os jovens esmeraldinos dirigiam seu discurso a ele:

Morreriam todas as galas e os festejos do carnaval se lhe faltasse o encanto peculiar à mulher, à mulher brasileira, sobretudo adorável pela beleza, sedutora pela graça e simplicidade de seu coração, que só sabe abrir-se aos amores santos, às festas civilizadoras, como são aquelas que promove e leva a efeito a “Esmeralda” (A Reforma, Porto Alegre, 14 de fevereiro de 1875, p. 2).

Além de atribuir características para um ideal de masculinidade, o novo carnaval definia um modelo de mulher: bela, graciosa, simples e casta; bem como estabelecia a conduta a ser seguida pelas moças porto-alegrense: abrir-se para as festas civilizadoras promovidas pelas sociedades carnavalescas – e não ao entrudo, que ao contrário daquelas, lhes oferecia amores profanos. E nessa significação dos atributos que compõem as identidades do masculino e do feminino, não só “as mulheres aprendem a ser femininas e submissas, e são controladas nisto, mas também os homens são vigiados na manutenção de sua masculinidade (TORRÃO FILHO, 2005, p. 139)”. Neste sentido, é importante observar que embora com distintos objetivos, o controle dos corpos e das paixões faz parte do ideário da modernidade, agindo tanto na construção das feminilidades, quanto das masculinidades. De acordo com Miskolci (2012, p. 53), o ideal de masculinidade, agenciado pelo projeto republicano, de fins do século XIX, no Rio de Janeiro, exigia o controle das paixões, autodisciplina em relação às pulsões sem regras e a educação do sentimento e do desejo. Segundo o autor,

[...]a consolidação do regime republicano é marcada por uma associação entre Estado e masculinidade que coloca à prova a capacidade de autodomínio de nossos homens de elite. Apenas aqueles que provassem seu autocontrole – uma vida regrada pelo casamento e a criação de uma família – poderiam ter reconhecido seu status de verdadeiro cidadão nacional (MISKOLCI, 2012, p. 53).

Isto posto, observamos que esmeraldinos não só estipulavam lugares e condições diferentes para as mulheres nesse novo carnaval, ao proclamarem que o sexo mimoso só se abre para amores santos, como os que a Esmeralda lhes tinha a oferecer, como se amoldavam a um ideal de masculinidade que lhes permitia o seu reconhecimento enquanto verdadeiros cidadãos. Segundo Miskolci (2012, p.43-44), o “ideal almejado de uma nação civilizada exigia formas de defesa que apontavam para a educação do desejo, seu controle e agenciamento de forma a transformar homens regidos pela paixão em homens de caráter, em suma, cidadãos nacionais”.

 É neste sentido também que interpretamos o verso distribuído pelos venezianos para a população porto-alegrense enquanto percorriam as principais ruas da cidade durante seu préstito, no ano de 1875. Chamado Profissão de Fé, nele os jovens pediam às “Castas donzelas desta terra ingente/lindas estrelas de eternal fulgor/daí hoje aos filhos da Veneza ardente/flores, sorrisos e um olhar de amor...”. As filhas da elite porto-alegrense -“belas deidades”, “virgens de brilhante alvor” - não deveriam mais se entregar ao pernicioso jogo do entrudo e sim participar do novo carnaval, aplaudindo e jogando flores aos rapazes que faziam o desfile carnavalesco. As antigas carícias, namoricos e excessos cometidos com o entrudo deveriam agora ser substituídos pelos olhares de amores trocados com rapazes “castos”, “brincalhões”, “bondosos” e “gentis”, como eles mesmos se declaravam no verso (A Reforma, Porto Alegre, 11 de fevereiro de 1875).

De acordo com Oliveira (2004, p.21), nas mudanças de ideais de masculinidade do medievo para a modernidade, “o ideal de amor platônico, por exemplo, está relacionado diretamente com a transformação do cavaleiro em cavalheiro, e será fundamental para que o ideal da família burguesa, baseado no matrimônio, passe a imperar e a modelar um novo ideal masculino”. É interessante ressaltar que o novo modelo de carnaval permitia acionar o capital social de seus associados em prol de se conseguir matrimônios, uma vez que, os bailes carnavalescos promovidos por essas associações eram frequentados só pela elite da capital, sendo uma oportunidade interessante de se iniciar relacionamentos que, muitas vezes, acabavam em casamentos, sem o perigo dos “abraços traiçoeiros que começam na porta da rua e iam terminar mesmo nas barbas dos senhores pais de família” (A Reforma, Porto Alegre, 14 de fevereiro de 1875), oferecido pela brincadeira do entrudo. Talvez tenha sido o caso de João da Matta Coelho e de Miguelina de Castro Werna e Bilstein. Miguelina, filha de Miguel de Werna e Bilstein - presidente da Esmeralda, em 1883 - foi rainha da agremiação no ano anterior, aos 14 anos de idade[12]. Em 1886, em oratório particular, se casou com João da Matta Coelho (A Federação, Porto Alegre, 30 de novembro de 1886), sócio dos Venezianos, chegou a ser tesoureiro e vice-presidente da agremiação.  

Desjanais prometera um discurso de endeusamento a ser proferido na sexta-feira gorda de 1874 ao herói que instaurasse o carnaval veneziano em Porto Alegre. Se de fato ele fez, infelizmente não conseguimos averiguar. Os heroicos esmeraldinos e venezianos, contudo, foram lembrados no ano de 1875 e comparados a ardorosos cavaleiros de tempos medievais.


Como os antigos paladinos da Idade Média, que batiam-se galhardamente só para receberem em troca um sorriso, ou uma lembrança grata da dama de suas afeições, assim também venezianos e esmeraldinos, à porfia, se atiram à luta, aspirando, como único galardão, a uma recepção estrondosa, a uma manifestação de simpatia; mas as suas armas são mais delicadas, e a sua causa é mais nobre que a daqueles, pois eles batem-se pela civilização, pela inoculação de ideias adiantadas, enquanto que aqueles somente o faziam para satisfazerem um capricho pessoal, sem fim algum, nobre, que os justificassem.
Nós saudamos com verdadeiro entusiasmo os iniciadores e sustentadores dessa ideia grandiosa (A Reforma, Porto Alegre, 08 de fevereiro de 1875).

Assim como os heróis da Idade Média - que se enfrentavam em troca de um sorriso - venezianos e esmeraldinos também se empenhavam pela manifestação de simpatia das jovens porto-alegrense, afinal não seria fácil extirpar o velho entrudo em seu duelo civilizador.

De acordo com Oliveira (2004, p. 25), à medida que a burguesia se apropria da ritualística do duelo medieval, a “ênfase na bravura, na ousadia e no destemor desloca-se paulatinamente para a questão da firmeza, do autocontrole e da contenção”. No ideal de masculinidade enunciado pelo carnaval veneziano, a bravura do nobre medieval foi transferida ao controle das pulsões sexuais - propiciadas pelo entrudo - que esmeraldinos e venezianos abdicavam em prol da “civilização” e de “ideias adiantadas”.

Considerações finais

Ao longo do artigo buscamos discutir o processo reformista do carnaval porto-alegrense e sua contribuição para a construção social de um ideal de masculinidade. Queria-se trocar a brincadeira tradicional, por outra considerada mais moderna e civilizada, inspirada em modelos europeus e já praticada na Corte e em outras cidades do Rio Grande. Esmeraldinos e venezianos, os filhos da “boa gente”, seriam os condutores dessa reforma de costumes, que demarcava os papéis de gênero que deveriam ser assumidos na festa: aos homens, caberia a ativa participação nos préstitos carnavalescos; enquanto para as mulheres fora relegada uma posição de passividade, sendo delas esperada uma estrondosa recepção ou uma manifestação de simpatia pelas festas executadas por esmeraldinos e venezianos.

As representações construídas pela imprensa porto-alegrense, sobretudo do jornal A Reforma, acerca dos homens que participavam das sociedades carnavalescas traziam atributos qualitativos que nos remetem a um ideal de masculinidade da modernidade: jovens de ideias adiantadas que travavam uma luta pela civilização a fim de extirpar o entrudo dos hábitos da população. Corajosos, seriam verdadeiros heróis que, ao controlar suas paixões, trabalhariam em prol da manutenção da ordem social.  Ao deixarem de ser regidos pelas paixões entrudescas, propunham “amores santos” e “festas civilizadoras”, provando seu autocontrole e buscando domínio sobre o comportamento das mulheres. Desta forma, poderiam ser reconhecidos como verdadeiros cidadãos.

Ao modelar atitudes, comportamentos, práticas e sentimentos a serem seguidos pelos homens da cidade, a exaltação de um discurso varonil do carnaval contribuiu para a inculcação da ordem simbólica de dominação masculina, que excluía tanto as mulheres, quanto os homens que não partilhassem dos mesmos signos distintivos de sexo, raça e classe social. Desta forma, podemos concluir que as mudanças propostas no processo reformista do carnaval da Porto Alegre do século XIX serviram para um reforço das hierarquias dominantes do masculino, nas quais os homens passaram não só a executar, como esse próprio modelo de masculinidade passou a representar o carnaval, dentro de um ideal de modernidade.


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[2] Joaquim Antônio Vasques foi pagador do Exército na Guerra do Paraguai, Inspetor Fiscal da Fazenda Provincial e deputado provincial pelo Partido Liberal de 1873 a 1876. Foi homem de confiança de Gaspar Silveira Martins, o cacique supremo dos liberais gaúchos, sendo seu Oficial de Gabinete quando este esteve no Ministério da Fazenda do Império, em 1878 (MARTINS, 1978). Segundo Lazzari (1998, p. 85), “não consta que ele houvesse participado da fundação da Sociedade Carnavalesca Esmeralda em 1873”. Entretanto, o mesmo foi sócio e chegou a presidir a sociedade na gestão de 1880/1881 (Mercantil, Porto Alegre, 16 de fevereiro de 1880, p.2).
[3] Em 1855, se organiza no Rio de Janeiro, o Congresso das Sumidades Carnavalescas, considerada a primeira sociedade carnavalesca do país. Idealizado por um grupo de oitenta foliões da elite carioca, celebrou o carnaval aos moldes de Veneza, fazendo desfiles pelas ruas da cidade, fantasiados com os mais diversos temas e fantasias luxuosas ao estilo europeu. De acordo com Álvares (2014, p. 17), “o primeiro clube carnavalesco do Rio de Janeiro representou o choque entre a Desordem do Entrudo e a dignificação da folia, explicitada pela venezificação do carnaval carioca”.
[4] De acordo com Connell (2013, p.253), “a ambiguidade em processos de gênero talvez seja importante de ser reconhecida como um mecanismo de hegemonia. Considere-se como uma definição idealizada de masculinidade é constituída em um processo social. Num nível societal mais amplo [...], há uma circulação de modelos de conduta masculina admirável, que são exaltados pelas igrejas, narrados pela mídia de massa ou celebrados pelo Estado. Tais modelos se referem (mas também em vários sentidos as distorcem) às realidades cotidianas da prática social”.
[5] Em Pelotas, a partir de 1860, já havia sociedades carnavalescas, quando a elite começou a introduzir o Carnaval Veneziano ou Grande Carnaval, mais refinado e civilizado. Caracterizado pelos suntuosos carros alegóricos e bailes de máscara. Nesse período se estabeleceu um conflito entre a festa selvagem do entrudo - praticada pela população em geral - e a folia de exibição organizada pela elite (BARRETO, 2003).
[6] Leopoldo Masson nasceu no Rio de Janeiro em 1845. Em 1871, já em Porto Alegre, inaugurou sua relojoaria em parceria com outro esmeraldino (Inácio Geyer) e estabeleceu um negócio de sucesso, consolidando o nome Casa Masson como tradição e referência em termos de joias, pedras preciosas, ótica e relógios em Porto Alegre (SPALDING, 1973).
[7] Joaquim Pedro Salgado nasceu em Alegrete em 20 de maio de 1835. Foi militar, membro do Partido Liberal e várias vezes deputado provincial e geral. Morreu no Rio de Janeiro em 12 de março de 1906. Casou-se com Maria Josefa Artayeta Palmeiro, com quem teve Joaquim Pedro Salgado Filho (PORTO ALEGRE, 1917).
[8] É interessante ressaltar que em função do medo de epidemias que se abateram sobre a cidade – sobretudo a de cólera , em 1855 – o jogo do entrudo não foi praticado em Porto Alegre por mais de uma década, tendo retornado no carnaval de 1869 (LEAL, 2008).
[9] O jornal chama Maria Isabel de Sousa Alvim de ex-marquesa em referência a seu casamento anterior. Em primeiras núpcias ela foi casada com José da Costa Carvalho, o Marquês d Monte Alegre. Político influente no Brasil Imperial, importante membro do Partico Conservador, fez parte da Regência Trina que governou o país no período regencial. Após sua morte, Maria Isabel se casa em segundas núpcias com Antônio da Costa Pinto e Silva, primo do Marquês (LEAL, 2008).
[10]As sociedades carnavalescas chegaram a instalar um “novo calendário”, passando a contar o tempo a partir do nascimento desse novo carnaval, como por exemplo, em 1878, quando Os Venezianos, em seu programa publicaram: “o programa abaixo para os festejos, com que pretende solenizar o Carnaval do ano V da era carnavalesca [...]” (Mercantil, Porto Alegre, 02 de março de 1878, p.3).
[11]Cabe ressaltar que modernidade é aqui entendida não simplesmente como sinônimo de modernização e progresso tecnológico, que separa as coisas em avançado e atrasado; mas, sim, como um modo de vida, o nosso ideário de civilização, que tenta buscar explicações para os problemas do cotidiano e que se definiria por um “jogo de signos, de costumes, de cultura que resultaram de mudanças técnicas, científicas e políticas ocorridas desde o século XVI” (BAUDRILLARD, 1982, p. 28). Esse discurso da modernidade perpassava o restante da elite da capital, sobretudo se observarmos que havia membros das sociedades carnavalescas que eram participantes de outras instituições como, por exemplo, o Partenon Literário. Essa associação literária, fundada em 1868, compartilhava as mesmas ideias de modernidade, que foram difundidas através do carnaval. Miguel Werna, Aquylles Porto Alegre, Cristiano Kramer, Damasceno Vieira, Nicolau Vicente Pereira, Hilário Ribeiro, Norberto Vasques, Gustavo Vianna, foram alguns membros comuns a essas agremiações.
[12] É interessante ressaltar que, com o passar dos anos, as mulheres irão ocupar outros lugares no carnaval veneziano, além daqueles que se lhes havia destinado quando do nascimento de Esmeralda e Venezianos. De plateia à partícipes, elas irão organizar os bailes e desfiles, desfilarão nos préstitos promovidos pelas agremiações e serão escolhidas para serem rainhas das referidas sociedades carnavalescas (LEAL, 2008).

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Publicado originalmente em:

LEAL, C. P. Masculinidades e carnaval na Porto Alegre do último quartel do século XIX. Revista Crítica Histórica, [S. l.], v. 11, n. 22, p. 281–300, 2020. DOI: 10.28998/rchv11n22.2020.0013. Disponível em: https://www.seer.ufal.br/index.php/criticahistorica/article/view/10507. Acesso em: 25 dez. 2021.

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