Resumo: Neste artigo abordamos a história do carnaval de Porto Alegre, do início do século XX - representado pelas sociedades carnavalescas Esmeralda e Venezianos - através da ótica dos estudos de gênero. As mulheres, de Evas pecadoras, passaram a figurar como Marias, recatadas e redentoras, e são alçadas ao símbolo de regeneração moral do carnaval. As rainhas das agremiações são alegorias dessa transformação. Nosso objetivo é discutir as representações de mulher elaboradas pelo discurso carnavalesco, centrados na figura da rainha da sociedade carnavalesca, ao analisar os versos proferidos pelas referidas agremiações, publicados na imprensa da época. A Análise de Discurso foi utilizada como ferramenta para a busca de sentido das mensagens sociais contidas nos versos. Com esse estudo pretendemos mostrar que abordar a História por meio das relações de gênero nos permite fortalecer as resistências à supremacia dos discursos de poder dos sistemas de representação androcêntricos, ao evidenciar as representações sobre as mulheres que legitimaram a hierarquização dos gêneros ao longo do tempo. Palavras-chave: História das Mulheres; Gênero; Carnaval; representação feminina; dominação masculina.
A História das Mulheres ganhou expressão a partir da década de 1970, buscando descortinar as mulheres do passado e problematizar a constituição histórica e social da condição feminina. Ampliando a discussão na década de 1980, o debate introduziu a discussão a respeito da categoria gênero, ao enfatizar os aspectos culturais relacionados às diferenças sexuais. Além disso, o termo também passou a ser empregado na História enquanto uma categoria de análise, ou seja, “entender a importância, os significados e a atuação das relações e representações de gênero no passado, suas mudanças e permanências dentro dos processos históricos e suas influências nesses mesmos processos” (PINSKY, 2009, p.162). Desde então, o campo dos estudos de gênero cresceu, incluindo além das pesquisas sobre mulheres, feminismos, estudos que versam sobre os homens, as masculinidades, os estudos queer (CONNELL, 2013; OLIVEIRA, 1998; BUTLER, 2002; LOURO, 2004; NICHOLSON, 2000). Embora seja notável o avanço do campo da História das Mulheres e dos Estudos de Gênero nas últimas décadas, o tema suscita, ainda hoje, muitos debates e controvérsias, até mesmo por quem a ele se dedica, encontrando, por vezes, dificuldades em se legitimar (FERREIRA; CORONEL, 2017), apesar de sua inegável contribuição.
O presente trabalho parte de dois conceitos fundamentais: gênero e representação. No que se refere ao primeiro partilhamos dos pressupostos elaborados por Joan Scott, para quem o gênero é o saber a respeito das diferenças sexuais, “um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e [...] o primeiro modo de dar significados às relações de poder” (SCOTT, 1990, p.15). Nessa perspectiva o significado de “ser mulher” ou de identidades e papeis – mãe, moça de família, boa esposa – são entendidos “como situações produzidas, reproduzidas e/ou transformadas ao longo do tempo” (PINSKY, 2009, p.163). Por representação entendemos os “sistemas de interpretação que regem nossa relação com o mundo e com os outros – orientam e organizam condutas e comunicações sociais” (TEDESCHI, 2012, p.30). Essas representações estão presentes nos mais variados espaços da vida social, como por exemplo, no carnaval. É neste sentido que, essa festa nos permite enxergar a diversidade das atividades práticas e representacionais que compõem o mundo das relações estabelecidas entre homens e mulheres. Entendidas aqui como “construções e invenções práticas e discursivas de cada temporalidade na qual elas se deram ou ocorreram e na qual foram nomeadas, instituídas e legitimadas” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 145), nos possibilitará discutir as representações de mulher elaboradas pelo discurso carnavalesco, na Porto Alegre do início do século XX.
Por aquela época, uma transformação significativa ocorria no que tange à participação das mulheres durante os festejos de Momo. Em 1906, a fim de promover uma regeneração moral do carnaval, ressurgiam a Sociedade Carnavalesca Esmeralda e a Sociedade Carnavalesca Os Venezianos. Além de promover a ampliação dos espaços ocupados por mulheres, se observa uma significativa mudança no tocante ao discurso da imprensa e das próprias sociedades carnavalescas a seu respeito. Aquelas que participavam da festa promovida pelas referidas agremiações passaram a ser louvadas por seus comportamentos irrepreensíveis e por sua conduta moral. Neste sentido, as rainhas das sociedades carnavalescas ocuparam um lugar especial, se tornando modelos de virtude e beleza, figurando como Marias nos festejos promovidos por essas agremiações. Dessa forma, o presente artigo tem como objetivo discutir as representações de mulher elaboradas pelo discurso carnavalesco, centrado na figura da rainha da sociedade carnavalesca, analisando versos proferidos pelas referidas agremiações, publicados na imprensa da época.
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A Análise de Discurso é uma disciplina de interpretação constituída pela intersecção de teorias do conhecimento, pertencentes a áreas da linguística, do materialismo histórico e da psicanálise (ORLANDI, 2003, p.10). Rejeita a noção realista de que a linguagem é simplesmente um meio neutro de refletir, ou descrever o mundo, e uma convicção da importância central do discurso na construção da vida social (GIL, 2002, p.244). De acordo com Pêcheux (2002, p.8) é “no contato do histórico com o lingüístico, que [se] constitui a materialidade específica do discurso”.
O discurso é, portanto, segundo Orlandi (1994, p. 53), um efeito de sentido entre locutores. Discurso supõe um sistema significante e a relação deste sistema com sua exterioridade. Para a autora, “no discurso, o mundo é apreendido, trabalhado pela linguagem e cabe ao analista procurar apreender a construção discursiva dos referentes. A ideologia é, pois, constitutiva da relação do mundo com a linguagem, ou melhor, ela é condição para essa relação”. Ao entendermos o discurso como uma construção social, que reflete a visão de mundo de seus produtores em relação à sociedade em que vivem, ele só pode ser analisado considerando seu contexto histórico-social e suas condições de produção. Dessa forma, no âmbito da História das Mulheres a dimensão dos discursos, torna-se uma ferramenta importante, pois opera como “um sistema de significação, posto que intervêm ativamente na produção de significados que se atribuem ao mundo real e a partir dos quais se organiza e dá sentido à prática” (TEDESCHI,2012, p.10).
Abaixo elencamos uma série de textos produzidos pela Sociedade Carnavalesca Esmeralda e pela Sociedade Carnavalesca Os Venezianos, no intervalo de 1909 a 1911, que versavam sobre a rainha da sociedade carnavalesca . Os documentos a serem analisados eram distribuídos ou recitados durante os desfiles das respectivas sociedades e, posteriormente, publicados nos jornais.
No carnaval de 1909, além de exemplares de seu jornalzinho contendo o retrato de sua rainha, a Esmeralda distribuiu diversos versos durante seu desfile. O primeiro, A Lenda da Esmeralda, é uma exaltação à figura da rainha e a ela foi dedicado.
Um dia, uma alva Estrela, espiando além da espalda, de encontro a um monte azul, - de espanto estremeceu quando viu que passava a RAINHA ESMERALDA, mais bela do que o sol -, mais bela do que o céu!!!
Espiou e tremeu..., e tremeu e tremeu.
E não quis mais olhar, de despeito ou por balda ou porque pressentisse obumbro o brilho seu e obumbra a sua luz rolar de falda em falda!
Desde aí vem a luta entre astros e Terra – luta feita com brilho e em resplandecente guerra, onde arde o sol a pino e o solo abrasa a escalda...
É uma luta em que vence o Belo e o Belo exprime luta de astros, de luz, de sonhos e sublime, porque, enfim, é uma luta em torno da Esmeralda (A Federação, 21 de fevereiro de 1909.).
Esse excerto é uma narrativa sobre a criação da Esmeralda. Nesse início mitológico, a criação da sociedade está relacionada à existência de sua rainha que, de tão bela, fez estremecer a estrela, pois era mais formosa do que o céu e do que o sol. Tal beleza fez a estrela não querer mais olhar para a rainha, por despeito, por imperfeição ou por pressentir, abismada, o brilho da Esmeralda. Desde então se gerou uma luta entre astros e Terra, e quem venceu foi o belo, pois era uma luta em torno da Esmeralda.
Vemos que nessa mensagem não há um sujeito específico. Há um narrador da lenda que não se identifica nem como indivíduo, nem como no coletivo. Para narrar essa fábula, se utiliza de referências à natureza – elementos como sol, estrela e montes – e coloca em evidência a presença feminina para o surgimento da Esmeralda, sobretudo, por sua beleza.
Se olharmos, contudo, para o processo que levou à criação do carnaval porto-alegrense - assim chamava a imprensa quando do nascimento de Esmeralda e Venezianos - veremos um protagonismo masculino. Desjenais , na coluna Folhetim do jornal A Reforma, no Domingo de carnaval do ano de 1873, dias antes da criação das referidas agremiações, conclamava a rapaziada porto-alegrense a organizar uma sociedade carnavalesca que “[...] enterre para sempre o antiquário Entrudo . Apareça aí um mais corajoso, tome a iniciativa, e verá que há de ser acompanhado. Se aparecer este herói, prometo desde á endeusá-lo, num discurso ad-hoc que há de ser proferido na sexta-feira gorda de 1874 [...]” (A Reforma, Porto Alegre, 23 de fevereiro de 1873). E de fato, em 1º de março de 1873, após prejuízos financeiros, causados por batalhas entrudescas, o Sr. Leopoldo Masson , seguindo os conselhos de seu pai Amadeu Masson, de “formação de uma sociedade para sustar o entrudo” (O Independente, Porto Alegre, 06 de fevereiro de 1910), teria criado a Esmeralda. O coronel Joaquim Pedro Salgado – que também estava envolvido no episódio das batalhas entrudescas - teria ajudado na formação dos Venezianos, sendo seu primeiro presidente .
É preciso salientar ainda que houve uma ausência da participação das mulheres nesse novo modelo de carnaval: protagonistas nas brincadeiras de entrudo – tanto mulheres da elite, quanto de classes populares -, no carnaval veneziano, deveriam assistir e aplaudir aos desfiles promovidos pelos homens das referidas agremiações. A readequação dos lugares e das condições femininas no carnaval foi, aliás, outro objetivo da criação de Esmeralda e Venezianos. Contudo, ao reaparecerem, naquele março de 1906, as tradicionais sociedades carnavalescas apresentaram modificações no que tange a participação das mulheres: o carnaval “reaparecia sob uma feição acentuadamente feminina” (Correio do Povo, Porto Alegre, 17 de fevereiro de 1907). Com espanto, o jornal Correio do Povo observava que “não restava a menor dúvida: era a linda, a grácil Mulher porto-alegrense que fazia o Carnaval. Por isso vinha ele tão garboso, tão gentil e tão chic. Por isso tinha sido possível o milagre de sua ressurreição (Correio do Povo, Porto Alegre, 17 de fevereiro de 1907). Verifica-se que nessa nova fase a exaltação às mulheres e sua importância na organização, na execução e na participação nos festejos carnavalescos se torna frequente.
Cada época tem seu conjunto de tipo de discursos que são usados em sua comunicação sócio-ideológicos. Entender as condições de produção desse discurso nos ajuda a compreender as transformações nas representações das mulheres, pois “não são os traços sociológicos empíricos – classe social, idade, sexo, profissão – mas as formações imaginárias que se constituem a partir das relações sociais que funcionam no discurso: a imagem que se faz de um pai, de um operário, de um presidente” (ORLANDI, 1994 p. 56) e de uma mulher comunicada a toda organismo social. Afinal, tanto homens, quanto mulheres incorporam representações e constroem suas práticas dentro de uma lógica social (BOURDIEU, 1999). Ao criar a fábula e produzir um discurso de exaltação das mulheres, colocando-as como símbolos da criação do novo carnaval, a sociedade Esmeralda estava, provavelmente, procurando moldar um passado que fosse ao encontro de novos ideais de destaque da figura feminina - o que de fato não teria ocorrido quando de seu nascimento, em 1873.
A Porto Alegre do início do século XX era uma cidade politicamente identificada com os ideais positivistas de governo, moldados pelo Partido Republicano Riograndense (PRR). José Montaury, homem de confiança de Júlio de Castilhos estava no comando da cidade desde 1897 (FRANCO, 2006). As analisar as festas de Esmeralda e Venezianos - a partir de seu renascimento, em 1906 - veremos que há uma série de significados que correspondem a doutrina inspiradora do partido que governava o Estado e sua capital. A moral social era um deles. O renascimento das tradicionais sociedades promoveria, aos olhos da imprensa, uma regeneração moral dos festejos carnavalescos: “Porto Alegre é uma exceção. Seu Carnaval é um ressumbramento de arte e galanteria, de elegância e moralidade”, de acordo com o jornal Correio do Povo (Porto Alegre, 10 de fevereiro de 1910). Essa correspondência também é evidente no que tange a participação das mulheres nos festejos, ao tornar a regeneração moral do carnaval uma tarefa a ser desempenhada pelas mulheres.
Outra correspondência evidente era relação entre o catolicismo e a experiência positivista que se consolidava em Porto Alegre. Neste sentido, apresentamos o segundo verso distribuído pela Esmeralda naquele carnaval de 1909, Nossa Senhora.
Vai passar a Rainha – a nossa Grã Senhora
Virgem Nossa Senhora Imaculada e Casta
- qual a santa de um ádro, ao resplendor da aurora
Ou qual mago Santélmo a quem o mar se afasta!
Virgem Nossa Senhora Aparecida em vasta
Nuvem d’ouro e de sonho a qual o sol rubora.
Virgem Santa Maria, a cujos pés se arrasta
A multidão que geme e a Sua Graça implora...
Virgem Santa do Céu! Como ela é bela e moça
E como, feito d’alma, o seu olhar se adoça
E se expande e se estende e sobre nós se reflora!
Ei-la!... Deixem passar o seu ardor singelo!
Abram alas!... Avante, ó devotos do belo:
Vai passar a Rainha – a Nossa Grã Senhora! ( A Federação, Porto Alegre, 21 de fevereiro de 1909)
O verso era, igualmente, uma consagração à figura da rainha. Era uma exaltação à sua passagem durante o desfile da Esmeralda, tal qual uma procissão religiosa. O emissor da mensagem se projeta na 3ª pessoa do singular, como um narrador anunciando a passagem da soberana. Desta vez, as referências são de cunho religioso – Grã-Senhora, Nossa Senhora, Nossa Senhora Aparecida, Virgem Santa Maria –, se dirigindo ao receptor como a um fiel, a assistir a procissão: devotos do belo, arrastando-se aos pés da Grã-Senhora. Assim como fiéis aos pés da santa se jogam, os que assistiam ao desfile da sociedade imploravam por sua graça. Imaculada, casta, santa, virgem. A soberana era igualada a Virgem Maria. O símbolo do carnaval porto-alegrense era agora uma mulher virginal (a palavra virgem foi utilizada quatro vezes no verso).
Na busca por essa regeneração moral da sociedade, a Esmeralda apelou para a simbologia do catolicismo. No que se refere ao papel das mulheres, tanto o positivismo quanto o catolicismo tinham posições semelhantes. Se, aparentemente, o positivismo e a Igreja Católica opunham-se frontalmente, pois “o primeiro fundamentava-se em princípios científicos, enquanto que o segundo em teológicos” (ISMÉRIO, 2007, p.2), nas questões ligadas “à família, propriedade e moral, ambos tinham discursos semelhantes” (Ibid, p.2). De acordo com Arthur Isaía (1998, p. 46) o estado forte, o antiliberalismo, a política moralizadora e o conservadorismo eram pontos de intersecção entre o positivismo e o catolicismo, dois sistemas de ideias alicerçados em parâmetros opostos. Tanto um, quanto o outro, pregavam a reforma moral da sociedade. Enquanto o positivismo acreditava que isso deveria ocorrer através da reforma do processo educativo; o catolicismo via a caminho da cristianização social.
O catolicismo da primeira metade do século XX, a fim de conquistar o mundo espiritualmente, usava uma estratégia de cunho missionário. Isso coincidiu e coexistiu no Rio Grande do Sul com o messianismo castilhista, que também era imbuído de um objetivo de regeneração social. Desta forma, o castilhismo desenvolveu um padrão de relacionamento com o catolicismo baseado em um modus vivendi harmônico. O catolicismo era aceito como força legitimadora e capaz de colaborar com o acatamento social requerido para a vigência da ordem. Por outro lado, o catolicismo via com simpatia uma experiência governamental fundada em princípios como a “moralidade como forma administrativa, o apelo à ordem, o desdém à consulta popular como principio legitimante e realizador do bem comum, o antiliberalismo e, principalmente, o prestigio e a liberdade desfrutados pela religião no castilhismo”(ISAÍA,1998, p.70).
Outra questão importante é que, no positivismo, a “virgem católica”, “alegoria da Igreja, transformou-se na “virgem mãe”, alegoria da Humanidade. Os positivistas possuíam consciência da tradição católica no Brasil e da mariolatria, consequentemente, as mulheres católicas constituíam um público privilegiado para sua doutrina e para o projeto social que almejavam” (CALEIRO,2002, p. 2). Em consonância a essa simbologia, a Esmeralda comparava a rainha da sociedade à Nossa Senhora e à Virgem Santa Maria.
Para o catolicismo, a mulher, a fim de “seguir a nobre missão de difundir a fé católica deveria possuir moral inspirada no modelo da Virgem Maria, mãe de Jesus Cristo, símbolo de mulher sem mácula que se dispôs a seguir os desígnios de Deus, sem nunca questioná-los” (Ibid., p.3). Desta forma, ao comparar a rainha da sociedade carnavalescas à “Virgem Santa Maria”, a Esmeralda buscava exaltar o sentido de pureza desse carnaval, expressando a santidade e inocência da rainha, símbolo da festa. Naquele verso, a Esmeralda utilizou-se de um vocabulário e de ícones religiosos pertencentes ao catolicismo para expressar, através da figura da rainha, uma imagem modelar para as mulheres.
A Virgem Maria e Clotilde de Vaux eram, segundo Ismério (1998, p.3), “modelos de perfeição e sacrifício feminino e, ao serem comparados, demonstram pontos em comum tanto na sua construção simbólica como na sua representação ou signo”. Isso, segundo a autora “vem a comprovar que Comte foi influenciado pelo pensamento medieval católico nas questões relacionadas à moral, organização da família e modelo de conduta de mulher, pois a Igreja foi a grande divulgadora e mantenedora de uma mentalidade de cunho machista e conservador” (ISMÉRIO, 1998, p.3). Desta forma, pode-se afirmar que o positivismo “deu continuidade as ideias católicas e vice versa, particularmente no que tange à manutenção de uma hierarquia das relações de gênero pautadas, sobretudo, nas diferenças de natureza humana entre homens e mulheres” (OGANDO, 2010, p.5).
A referência à Nossa Senhora e à virgem Maria, como forma de exaltar a presença da rainha carnavalesca, evidencia a forte mudança que houve nas representações de mulher com o renascer das sociedades carnavalescas. Nos tempos do entrudo, ainda no século XIX, uma polêmica sobre a proibição do jogo teve como protagonista Maria Isabel de Sousa Alvim, esposa do Presidente da Província do Rio Grande do Sul, Antonio da Costa Pinto e Silva. Acusada de fazer reviver o jogo, foi moralmente atacada pelo jornal A Reforma: “Que esta renovação do passado fosse obra da ex-marquesa nada há que admirar, pois é muito conhecida pelo seu ardente temperamento e extraordinário calor” (A Reforma, Porto Alegre, 15 de fevereiro de 1871). A fim de criticar a brincadeira do entrudo e por questões políticas de seu tempo, a imprensa porto-alegrense utilizou adjetivos a fim de desqualificar moralmente. Maria Isabel de Sousa Alvim; afinal aquele não era um comportamento “digno das humanas filhas do Rio Grande” (A Reforma, Porto Alegre, 15 de fevereiro de 1871).
A construção das desigualdades de gênero como algo natural, legitimando as diferenças entre homens e mulheres é edificada através de discursos desde a Antiguidade, e vem “construindo um sujeito com identidade determinada, impondo através das relações de poder, verdades sobre ele”(TEDESCHI, 2012, p.15). Joan Scott (1992, p.77) ressalta que é através das relações de poder que se explica as desigualdades entre os gêneros, provenientes das relações de dominação e subordinação. As mulheres, em função de seu comportamento – percebido como adequado ou não em determinado contexto histórico –, são rotuladas como Evas ou Marias, purificadas ou poluídas, inocentes ou corrompidas (SCOTT, 1990, p.14). Neste sentido, observamos que o comportamento da ex-marquesa, durante os festejos carnavalescos em Porto Alegre, foi recriminado pelos jornais, com acusações em torno da moralidade e da licenciosidade. Ela não teve uma prática carnavalesca condizente com o discurso que passara a ser construído, a fim de adequar a participação das mulheres no carnaval, retirando-as do protagonismo nas brincadeiras de entrudo e as colocando numa posição de passividade no carnaval veneziano. Em função disso, ela foi severamente criticada, passando a representar a “Eva carnavalesca”, responsável pela introdução/retorno do pecado/entrudo.
Além de Maria Isabel, outras mulheres – fossem elas da elite ou de classes populares – seguiram jogando o entrudo. Até mesmo nos bailes promovidos por Esmeralda e Venezianos era comum o emprego de bisnagas, limões de cheiro e pó de arroz, tanto que os organizadores pediam que “lá no salão do baile não apareça uma única bisnaga. Morra o entrudo. Viva o Carnaval” ( Mercantil , Porto Alegre, 31 de janeiro de 1879, p.3). Quando da falência das agremiações, a insistência das mulheres nas brincadeiras entrudescas foi apontada como um dos fatores responsáveis pelo colapso do carnaval veneziano. Em seu programa de carnaval de 1881, os Venezianos lamentavam que
[...] não tem podido abolir a perniciosa bisnaga, fonte de quanta constipação, pneumonia e tifo, há, que flagela e dissipa a humanidade!...
E o que mais horroriza, é ver que esta plêiade de epidemias dimana de delicadas e alvas mãozinhas que parecem fadadas para derramarem consolações sobre a humanidade sofredora!!!... (Jornal do Commercio, Porto Alegre, 18 de fevereiro de 1882, p.2).
Se na primeira fase de Esmeralda e Venezianos as mulheres foram atacadas moralmente por comportamentos considerados indevidos durante o carnaval, acusadas de falirem as sociedades carnavalescas, por permanecerem fiéis às licenciosas brincadeiras de entrudo, com o renascer das sociedades carnavalescas, em 1906, passaram a ser exaltadas, por exemplar castidade. Houve, portanto, uma significativa mudança na representação das carnavalescas: de “Evas” despudoradas e lascivas entrudeiras, à “Marias”, castas e donzelas rainhas do carnaval. Se a “a desobediência de Eva foi a causa da morte para ela própria e para toda a humanidade, [...] [Maria] pela sua obediência foi causa da salvação para si própria e para toda a humanidade. (...) O nó da desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria”, a incorporação da dominação (TEDESCHI, 2012, p.61).
Se Maria Isabel foi a causa da morte do carnaval em Porto Alegre, as rainhas das sociedades carnavalescas simbolizavam a sua salvação através da moralidade representada na figura das jovens que eram escolhidas para esse posto. É neste sentido que acreditamos que a pesquisa histórica não deva se restringir a descrição das transformações das condições das mulheres, os lugares que ocuparam ou não no espaço social, nem tão pouco às relações entre os gêneros nas diferentes épocas. É preciso desvendar as visões de masculino e feminino presentes e atuantes no processo histórico, “estabelecer, para cada período, o estado dos sistemas de agentes e das instituições [...] que com pesos e medidas diversas em diferentes momentos, contribuíram para arrancar da História, mais ou menos completamente, as relações de dominação masculina”. (BOURDIEU, 1999, p.103)
Em A Rainha, verso escrito por Raul Totta e distribuído em panfletos durante o desfile do carnaval de 1910, a Esmeralda endeusava a figura de sua soberana, Alcinda Lewis:
Sobre o trono real de perola e de gema,
O áureo cetro na mão, esparsa a regia coma,
Entre os louros da glória, Ela, serena, assoma,
Toda cheia de graça, e de beleza extrema.
Cinge-lhe a augusta fronte o brilhante diadema,
E aureolada de luz fulgente e policroma,
Ela o povo deslumbra e a forma estranha toma
De uma jóia real de valia suprema.
O fogo do delírio os corações escalda.
Bem alto tremulando, a vitoria proclama
O verde pavilhão da rutila Esmeralda.
Há pelo espaço em fora alaridos de trompa.
Por entre a multidão, que ardentemente a aclama
Ela passa triunfal na majestosa pompa (A Federação, Porto Alegre, 09 de fevereiro de 1910).
No referido verso se descrevia a passagem triunfal da rainha. E o povo, novamente, a aclamar. Utilizando-se de palavras que remetiam à realeza – trono, cetro, diadema, augusta fronte, majestosa – Raul Totta ressalta a superioridade da rainha esmeraldina, “joia real de valia suprema”. Alcinda Lewis era filha de José Ebwank Lewis e Carlota Cabral, e neta do cenógrafo que preparou os carros para a primeira exibição da sociedade, em 1874, o Sr. João Manoel Barreto Lewis, (Registro de batismo de Montenegro, Livro 8, folha 91, Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre). Nascida em 19 de fevereiro de 1898, em Montenegro, Alcinda foi rainha aos doze anos. E, embora tão jovem, o jornal O Independente se admirava com o seu desenvolvimento - pois “já parece uma moça completa” - e, sobretudo, com sua “organização moral”, que estava “de acordo com a figura física: inteligente a toda prova, extraordinariamente vivaz e, não obstante sua juvenilidade, tem o propósito e a correção das moças completas” (O Independente, 06 de fevereiro de 1910).
Figura 1 Alcinda Lewis. Rainha da Esmeralda (1910).
Fonte: O Independente, Porto Alegre, 06 de fevereiro de 1910.
Alguns anos após essa exibição, Alcinda se casou com Gustavo Leyraud Filho, igualmente sócio da Esmeralda. No ano em que ela foi rainha da sociedade, Gustavo foi membro da comissão responsável pelo baile burlesco (A Federação, 17 de fevereiro de 1910). Tal fato nos permite supor que o carnaval era também um momento para o encontro das famílias, podendo contribuir para enlaces e futuros matrimônios. O casamento, mais do que um espaço próprio para uma sexualidade saudável, era para os positivistas o alicerce da organização social. O santuário da mulher era o lar, onde ela exercia seus deveres e orientava seus entes queridos (ISMÉRIO, 2007, p.6). Isto posto, infere-se que os festejos carnavalescos de Esmeralda e Venezianos possibilitavam romances regulamentados pelo ordenamento familiar, sob os auspícios domésticos e contribuíam para o controle e a submissão das mulheres. Ao contrário da famigerada brincadeira do entrudo, que permitia “abraços traiçoeiros que começam na porta da rua e iam terminar mesmo nas barbas dos senhores pais de família” (A Reforma, 14 de fevereiro de 1875).
O próximo verso foi distribuído do carro da rainha esmeraldina no carnaval de 1911. Clarins sonoros anunciavam a chegada da soberana:
Clarins sonoros num clangor glorioso
Vibram de novo da vitoria o canto!
Alas abri o vulto majestoso
Que surge agora o verde manto!
Ei-la, Rainha Excelsa! Vede o encanto!
Que envolve o seu perfil esplendoroso...
Vendo-a formosa assim, cheio de espanto
No azul do céu desmaia o sol radioso!
Cinge-lhe a fronte a coroa triunfante!
E o próprio momo [grifo meu] se extasia diante
Da esmeraldina olímpica grandeza!
Flor ideal irmã gêmea da Graça!
Cobri de flores essa Luz que passa;
Majestade do cetro e da beleza (A Federação, Porto Alegre, 02 de março de 1911).
Feita na terceira pessoa do singular, a narração da passagem da rainha buscava enaltecer a figura mais importante do carnaval, pois até Momo (na terceira estrofe do verso) se deslumbrava com tamanha grandeza, graça e beleza. O verso mandava abrir alas para a figura majestosa da excelsa rainha esmeraldina e utilizava-se de um tom soberbo para essa descrição. Mais uma vez, temos referências a elementos da natureza: a rainha do carnaval era a flor ideal. Associações entre as mulheres e a natureza foram frequentes ao longo da História. De acordo com Ortner (apud OSTOS, 2009, p.160) as funções física/biológicas femininas facilitaram essa co-relação e “as mulheres acabaram por ser consideradas pela cultura dominante como seres subordinados ao signo do biológico, aos ritmos dos seus corpos, que as impediriam de libertar-se do jugo da matéria”. Há de se pontuar ainda que, desde a Antiguidade, os discursos médico e filosófico produziram uma descrição de mulher a partir de sua constituição biológico, que reforçam o caráter natural da identidade feminina, legitimando sua inferioridade (TEDESCHI, 2012).
Até o momento buscamos apreender a construção discursiva ordenada pela sociedade Esmeralda, que via na exaltação da figura feminina, sobretudo através da rainha da agremiação, um meio de atribuir novos sentidos à participação das mulheres no carnaval Os venezianos, por sua vez, também contribuíram para a construção desse sistema de significação. Em seu desfile, no ano de 1909, em um carro em formato de gôndola, vinha sentado a sua poupa, o Sr. Pedro Guimarães Junior, entoando a seguinte canção:
Enquanto a gôndola segue
Sob o clarão do luar,
No céu palpitam estrelas,
Gemem as ondas do mar
E a nossa altiva Rainha
Conquistando corações
Marcha no carro da Glória
Ao ruído das ovações.
Das açucenas, dos lírios,
Todo o perfume se evola
Enquanto a rosa faceira
Em carrinho abre a corola
Para brindar a rainha
Dos venezianos a estrela
A quem os anjos da terra
Curvam-se todos ao vê-la.
Marchemos, pois, gondoleiros,
Sob o clarão do luar,
Enquanto brilham estrelas
E as ondas gemem no mar.
Um adeus de despedida
Deixemos como lembrança
E sigamos à Vitoria
Sobre as asas da Esperança (A Federação, Porto Alegre, 25 de fevereiro de 1909)
Os venezianos cantavam a marcha dos gondoleiros para sua rainha. Pedro Guimarães Júnior , na figura do enunciador, se projeta como um gondoleiro a convocar os demais para a marcha e a vitória veneziana. Novamente aparecem as referências em relação à natureza: na metáfora das flores, comparadas às açucenas e lírios, as flores mais usadas em cerimônias religiosas cristãs; bem como o poder das mulheres de influir sobre ela, as flores brindam sua passagem, gemem as ondas do mar. Aqui também a rainha ouvia as ovações, os aplausos de quem assistia aos desfiles e conquistava seus corações. Marchando no carro da glória, até mesmo os anjos terra curvavam-se para vê-la passar. Todos saudavam a estrela veneziana.
No ano seguinte, 1910, no desfile dos Venezianos, havia um carro chamado Presas do Amor. Segundo o jornal A Federação, esse era o “mais feliz e surpreendente do cortejo” (A Federação, Porto Alegre, 09 de fevereiro de 1910). Nele tudo “revelava inspiração feliz, gosto na interpretação e doce poesia na escolha dos menores detalhes” (A Federação, Porto Alegre, 09 de fevereiro de 1910). Havia juntamente um esquadrão de cupidinhos que o guarneciam e “davam-lhe ainda mais realce e lhe punha uma nota única de elegância e chique” (A Federação, Porto Alegre, 09 de fevereiro de 1910). Desse carro, eram distribuídos os seguintes versos:
Eis-me aqui, levo uma bela,
Vai comigo uma donzela
A quem eu dedico amor.
Pobre vitima inocente,
De quem cupido, inclemente,
Logo se fez de senhor!
Não é ela unicamente,
A donzela resplendente,
Que eu quero sempre beijar;
A armadilha está armada
E mais alguma adorada,
Virá a mim se entregar .(A Federação, Porto Alegre, 09 de fevereiro de 1910).
A presa do amor era representada por uma jovem. Vítima inocente do cupido, que dela se fez senhor. Nesta declaração de amor, o emissor, que fala na primeira pessoa do singular (EU), dedica seu amor a essa jovem, como também a alguma outra que possa a ele se entregar. Diferentemente dos outros versos, este possui um tom mais jocoso e malicioso por parte do emissor da mensagem, fazendo sua declaração não só para a jovem que já estava “presa”, como também às outras que poderiam cair na armadilha. No desfile havia um alçapão armado e esta última sextilha referia-se ao intento de “apanhar qualquer alminha incauta” (A Federação, Porto Alegre, 09 de fevereiro de 1910), reforçando a necessidade de zelo da honra feminina. Apesar do tom diferente deste verso, as mulheres, contudo, continuam a ser representadas com os adjetivos de inocência, ingenuidade, virgindade e beleza.
A jovem que representava a presa do amor era Maria Elvira Werna Coelho. Filha caçula de João da Matta Coelho e de Miguelina de Castro Werna e Bilstein. Neta de Miguel de Castro Werna Bilstein, por parte de mãe, sua família era ligada aos festejos carnavalescos da cidade desde o nascimento de Esmeralda e Venezianos. Seu avô foi presidente da Esmeralda, em 1883; sua mãe, rainha dessa agremiação no carnaval de 1882; e seu pai era um importante sócio da sociedade rival, Os Venezianos, tendo sido tesoureiro e vice-presidente da agremiação.
Criada pelo pai e pela avó materna, pois o avô e a mãe morreram quando ela tinha dois anos de idade, Elvira cresceu, provavelmente, com a presença dos venezianos em sua residência, como por exemplo, quando do aniversário de João da Matta Coelho, os venezianos iam lhe fazer os cumprimentos (O Independente, Porto Alegre, 13 de fevereiro de 1908). Tanto que em 1911 foi escolhida para ser a rainha veneziana. E, embora fosse ainda muito jovem, de acordo com o jornal O Independente (12 de fevereiro de 1911) “a sua compleição moral afina-se já com assomos austeros e adoráveis de gravidade, qual flor sensível que ao contato da brisa inimiga, se contraísse, num movimento de infinita graça e pureza”. Salientava ainda educação de Elvira, que possuía “invulgar e esmerada instrução, de parceria com a mais imperturbável fineza do modo de entender e exprimir as coisas” e desta forma, conquistaria “as simpatias dos que se lhe a cercam, deixando-lhes na alma um rastro de profunda admiração”. Marcava a sua condição de soberana dos Venezianos para o carnaval que se aproximava, uma “rainha de indicação e verdade”.
Figura 2: Retrato de Elvira Werna Coelho, rainha dos Venezianos (1911).
Fonte: O Independente, Porto Alegre, 21 de fevereiro de 1911.
Elvira possuiria, portanto, as características que eram exaltadas – e por que não, cobradas – nas rainhas das sociedades carnavalescas. Uma aparência e comportamento moralizado orientado por sua pureza e graça. Adjetivos esses que, como vimos, foram muito utilizados nas construções discursivas apreendidas por meio dos versos distribuídos pelas associações e que legitimavam a sua indicação para ser a soberana dos venezianos naquele carnaval de 1911.
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Buscamos nesse artigo discutir as representações de mulher elaboradas pelo discurso carnavalesco. Os versos distribuídos ou recitados durante o carnaval foram instrumentos materiais através dos quais esses carnavalescos (note-se que o emissor quando é identificado, é masculino) expressaram não só a sua maneira de ver o mundo, como produziram um sistema de significação que contribuía para a manutenção de um sistema de subordinação feminina.
Ao analisar as estratégias discursivas que foram utilizadas pelos promotores do carnaval veneziano, evidenciamos a visibilidade que as mulheres passarem a ter nessa nova fase das sociedades carnavalescas: a Esmeralda, por exemplo, criou uma fábula que relacionava a criação do carnaval em Porto Alegre à presença de sua rainha. “Casta”, “imaculada”, “virgem” são os adjetivos mais utilizados nessa construção simbólica das carnavalescas. Representantes da própria Virgem Maria, as rainhas do carnaval, como Alcinda Lewis e Elvira Coelho, rainhas da sociedade Esmeralda e da Venezianos, respectivamente, foram veneradas, sobretudo, por “sua compleição moral”. “Obras primas da natureza”, “joias real de valia suprema”, “cheias de graça”, “belas” e “formosas”, associadas frequentemente a elementos da natureza, a essas mulheres foi creditada a ressurreição do carnaval. Por meio de distintos símbolos e significados culturais a respeito das diferenças sexuais, essa consagração feminina buscava manter as mulheres dentro de esquemas de subordinação no qual, embora fossem ativas partícipes, permaneciam com características associados ao universo doméstico, do espaço privado, da natureza, num reforço da dominação masculina.
Se no século XIX, quando do nascimento do carnaval, eram os heroicos esmeraldinos e venezianos que faziam a festa; no século XX, com o renascimento das sociedades carnavalescas, é a grácil mulher porto-alegrense. Em ambas as ocasiões, foram construídos estereótipos de masculinidade e feminilidade – valentia e coragem para eles; graça, pureza e beleza, para elas. A inculcação da ordem simbólica de dominação masculina se deu de modo diferente: não mais pela exaltação do discurso viril do carnaval, mas através da consagração das mulheres, ressaltando-se características “femininas do carnaval”, meigo, gentil! Apesar de uma aparente liberdade das mulheres, na qual elas podiam se reunir para organizar o festejo, desfilar e participar dos bailes, o que houve foi um reforço dessa dominação masculina. Afinal, Evas entrudeiras que contaminavam o carnaval, deram lugar às castas Marias que o regeneraram.
Ao identificarmos a reciprocidade que havia entre a elite política e os quadros de associados de Esmeralda e Venezianos buscamos confirmar que essa mudança discursiva foi mediada pelos ideais de mulher difundidos pelo castilhismo e sua interpretação do pensamento positivista, bem como as diretrizes do catolicismo. Esse pensamento que visava a manutenção da ordem social através moral e tinha na mulher sua guardiã foi empregado para a compreensão não só do carnaval, mas de todo universo daquela sociedade.
É lógico que a recepção e a apropriação desses discursos se diferenciavam de acordo com as posições que os indivíduos ocupavam no espaço social, sendo as falas aqui estudadas dirigidas mais comumente às filhas da elite do Rio Grande. Contudo, tal instrumento podia ser útil na difusão desses valores em diferentes camadas sociais, uma vez que, além das mulheres que participavam das sociedades carnavalescas, havia aquelas que estavam a assistir aos desfiles, que recebiam os versos distribuídos e também eram alvos de elogios e apreciações. Arrastando os indivíduos para a ação comum essas práticas discursivas ajudaram a moldar o imaginário social de uma época.
Analisar os festejos carnavalescos da Porto Alegre do início do século XX por meio dos estudos de gênero nos pemitiu mostrar o processo de genderização da festa. Através de uma construção discursiva que orientavam para a subordinação das mulheres, o carnaval contribuía para a inculcação da ordem simbólica de dominação masculina Descortinar esse processo nos permite fortalecer as resistências à supremacia dos discursos de poder dos sistemas de representação androcêntricos, que legitimaram a hierarquização dos gêneros ao longo do tempo e estão presentes ainda hoje.
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