Acervos, fontes, história e historiografia dos carnavais de Porto alegre

Resumo: O presente artigo tem como objetivo assinalar a relevância de espaços que visam a patrimonialização das expressões culturais carnavalescas, partindo da apresentação da história, historiografia, acervos e documentos a respeito dos carnavais de Porto Alegre. Ao destacar a importância da preservação da memória da festa para as diferentes identidades culturais de um povo, busca-se contribuir para a sensibilização a respeito da necessidade de políticas públicas de preservação da memória e da identidade dos grupos sociais que fizeram e fazem os carnavais porto-alegrenses.

Palavras-chave: carnaval de Porto Alegre; história do carnaval; historiografia do carnaval; identidade cultural; patrimonialização.

A preservação da memória de um povo, passando pela guarda de seus bens materiais e imateriais, é fundamental para a compreensão das sociedades em que estamos inseridos. Assim, conhecer, valorizar e preservar o patrimônio cultural é um ato de cidadania. É tomar posse daquilo que nos pertence, é conhecer nossa história e o legado daqueles que nos precederam, construindo o presente que hoje experienciamos. É neste sentido que, enquanto expressões de uma coletividade, nas quais se evidencia os modos de ser, fazer, relacionar e sonhar de um povo, as festas também se constituem como patrimônios culturais de natureza imaterial daqueles que as celebram, devendo ser valorizadas, protegidas e resguardadas, garantindo-se sua herança para as futuras gerações. Em seu artigo 216, a própria Constituição Federal (BRASIL, 1988), estabelece que “o poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”.

Mas para que se possa preservar um bem cultural e efetivar políticas de guarda das festas é importante conhecê-las! Afinal,

[...] como uma sociedade, qualquer que seja ela, poderia existir, subsistir, tomar consciência de si mesma, se não abrangesse com um olhar um conjunto de acontecimentos presentes e passados, se não tivesse a faculdade de retroceder no fluxo do tempo e repassar ininterruptamente os vestígios que deixou de si mesma? (HALBWACHS, 2006, p. 155).
Durante muito tempo, as festas não foram objetos investigativos privilegiados no universo de Clio. Legadas aos trabalhos de folcloristas e etnógrafos eram vistas como expressões dos costumes e do espírito nacional. Contudo, a partir da renovação historiográfica das últimas décadas, sobretudo com os estudos decorrentes da Nova História Cultural, as festas passaram a despertar o interesse de historiadores e historiadoras, que nelas vislumbraram a possibilidade de acesso ao mundo das relações estabelecidas entre homens e mulheres e da diversidade das atividades práticas e representacionais que compõem esses universos. Dessa forma, partindo da apresentação da história, historiografia, acervos e documentos a respeito dos carnavais de Porto Alegre, neste artigo buscamos assinalar a relevância de espaços que visam a patrimonialização das expressões culturais carnavalescas. Ao destacar a importância da preservação da memória da festa para as diferentes identidades culturais de um povo, busca-se contribuir para a sensibilização a respeito da necessidade de políticas públicas de preservação da memória e da identidade dos grupos sociais que fizeram e fazem os carnavais porto-alegrenses.


1. História e historiografia dos carnavais de Porto Alegre

O início da prática de manifestações carnavalescas em Porto Alegre nos remete ao período de colonização da cidade. Embora ela tenha sido ocupada ainda na primeira metade do século XVII, seu processo de povoamento só teria início com a chegada de 60 casais açorianos, em 1752, que em sua bagagem também trouxeram a forma portuguesa de celebrar o carnaval: o jogo do entrudo.

Caracterizado como intróito de quaresma, três dias que precediam os quarenta de preparação para a Páscoa, no entrudo o povo divertia-se molhando uns aos outros, atirando farinha e polvinho, empregando peças jocosas e banqueteando-se (Faria, 1861). De acordo com Flores (1999, p.152) “era uma verdadeira batalha para molhar alguém com água jogada de balde, bacia ou seringa, com arremesso de limão de cheiro. [...] homens e mulheres se empenhavam em loucas correrias e agarramentos, jogando água. Era um salve-se quem puder!”. Apesar de ser largamente praticado, desde o início da colonização de Porto Alegre (FERREIRA, 1970), com o passar dos anos o entrudo passou a ser severamente criticado. Em 1839, por exemplo, o jornal O Guayba (Porto alegre, 11 de janeiro de 1839, p.4), ao recriminar o jogo bradava: “o veneno da saúde, o terrível sedutor da mocidade, o carrasco ordinário dos velhos, nunca terá a minha aprovação e dou a minha porção aos que só querem divertimentos mulheris e depois são reduzidos a se arrependerem (O Guayba, Porto alegre, 11 de janeiro de 1839, p.4). As críticas à popular brincadeira destacavam tanto aspectos de ordem moral, em função dos excessos que seriam praticados durante o carnaval, quanto questões relativas ao prejuízo da saúde dos indivíduos. João Câncio Gomes[2], sob o pseudônimo de O Estudante, em Crônicas de Porto Alegre, complemento da edição dominical do jornal O Mercantil, demonstrava sua insatisfação com o início do festejo entrudesco: “[...] primeiro dia em que cada qual tem o direito de estragar a roupa da gente e, o que não é melhor, de estragar a saúde” (O Mercantil, Porto Alegre, fevereiro de 1852).

Há de se destacar que as mulheres tinham uma ativa participação nas brincadeiras de entrudo, eram protagonistas da festa. O comerciante inglês John Luccock, por exemplo, em sua passagem pelo Rio Grande do Sul, em 1808, teria sido vítima de ataques de limão de cheiro, provindos das filhas do governador (FERREIRA, 1970). Muito popular, tanto entre mulheres da elite, quanto entre as de camadas populares, o entrudo também propiciava um afrouxamento do controle familiar sobre a conduta feminina, permitindo um exercício da sexualidade, proibido em dias comuns: [...] quanto moço poeta, quanto namorado maldoso, quanto D. João disfarçado não se servia do limão de cheiro para em declaração de amor espremendo-o com a intenção maliciosa, no colo ebúrneo, decotado, tentador de sua Dulcinéia encantadora?”, relembrava o escritor Aquiles Porto Alegre (1994, p.87), em suas memórias sobre o carnaval.

A fim de acabar com a antiga brincadeira e buscando uma festa que tivesse os ares da modernidade, em 1873, surgiam a Sociedade Carnavalesca Esmeralda Porto-Alegrense e a Sociedade Carnavalescas Os Venezianos. Saudando a chegada do novo carnaval, o jornal A Reforma afirmava que:

A cidade de Porto Alegre deve estar orgulhosa de reconhecer em seus filhos desta época, jovens de tão adiantadas ideias, e tão entusiastas do progresso, que não hesitaram em fazer, a porfia, tão grandes sacrifícios, a fim de extirpar do seio da mãe pátria essa feia nódoa que a envergonhava aos olhos de outras nações.

Honra, pois, a essa mocidade que, em todos os cometimentos da esfera do conhecimento e da moralidade, não cedem a palma aos países mais antigamente civilizados e que mais se distinguem nas vias do progresso humano (A Reforma, Porto Alegre, 14 de fevereiro de 1875).
Transformando a maneira de render louvores a Momo, esmeraldinos e venezianos desfilavam com seus carros alegóricos pelas principais ruas da cidade e terminavam sua festa em bailes exclusivos a seus sócios. Inicialmente composta exclusivamente por homens, as agremiações eram aclamadas por trazer o progresso e a civilização na forma de celebrar o carnaval, ao tornar o “povo” espectador da festa por elas exibida, e inaugurar uma “era carnavalesca”[3]. Embora não tenha conseguido extirpar o entrudo das práticas carnavalescas da população, o novo modelo de carnaval fez sucesso e logo surgiram outras agremiações que buscaram celebrá-lo nos mesmos moldes: Congos (1877), Germânia (1879), Floresta Aurora (1881), Estrella D’Alva (1878), Moçambique (1878), XPTO (1882), Vagalumes (1886), Roxa Saudade (1887), Cara Duras (1887), entre outros. É importante destacar que por meio do carnaval diferentes grupos buscaram afirmar sua identidade étnica, ao mesmo passo em que intencionavam se incorporar à cidadania brasileira (LAZZARI, 1998). A Germânia, sociedade recreativa, fundada em 1879, embora não fosse uma agremiação exclusivamente carnavalesca, apresentou préstitos e bailes aos moldes de esmeraldinos e venezianos. Note-se que em seu desfile de 1885, ela trouxe um grupo de gaúchos vestidos em trajes típicos e montados a cavalos, representando o que seria a “cultura rio-grandense”. Do mesmo modo a Congos, que, além de promover campanhas abolicionistas, também evocava uma identidade africana. Outro exemplo é a Sociedade Floresta Aurora, que em 2022 completou 150 anos de existência e estreou no carnaval em 1879, realizando passeios à fantasia (sem carros alegóricos) e bailes a seus sócios. É neste sentido que, ao conhecer a história do carnaval, percebemos a relevância da celebração, sobretudo, no que tange ao reconhecimento e à valorização das diferentes identidades culturais formadoras do “povo gaúcho”.

Em estudo pioneiro a respeito do carnaval porto-alegrense no século XIX, Athos Damasceno Ferreira (1970) traçou um histórico do festejo na cidade, desde os tempos do entrudo até o fim daquela centúria, e descreveu o surgimento e decadência das sociedades carnavalescas. Além disso, reproduziu integralmente várias notas de jornais que hoje em dia encontram-se indisponíveis para consulta, sendo um documento indispensável para quem se dedica à temática. No que tange à historiografia, destacamos a pesquisa de Alexandre Lazzari (1998), que analisou a festa entre os anos de 1870 a 1915, buscando entender as diferentes expectativas projetadas sobre o carnaval de rua, decisivas para a sua apropriação definitiva por alguns grupos e abandono por outros. Segundo o autor, havia no carnaval porto-alegrense do final do século XIX uma tradição baseada em adaptações, ressignificações e rejeições das novidades culturais da Corte carioca e da Europa, conforme suas conveniências e condições sociais e políticas, que teria facilitado a difusão dos símbolos de identidade nacional, posteriormente. Com o foco nesse mesmo período, Caroline Leal (2008) analisou a participação das mulheres nos festejos carnavalescos, dos tempos de entrudo ao surgimento, consolidação e declínio das tradicionais sociedades carnavalescas no século XIX, assinalando as diferentes condições e lugares por elas ocupados. Ao apontar os caminhos que estavam sendo apresentados para as mulheres participarem do carnaval – a partir da inauguração das sociedades Esmeralda e Venezianos - a autora assinalou um processo de construção das hierarquias de gênero sendo promovido através do carnaval. Dando continuidade a essa pesquisa, em sua tese de doutorado Festas Carnavalescas da Elite de Porto Alegre: Evas e Marias nas redes do Poder (1906-1914), Leal (2013) investigou a participação das mulheres no carnaval, a partir do renascimento de Esmeralda e Venezianos, no início do século XX, buscando mostrar que no período pesquisado as Evas darão lugar às Marias, na busca de uma construção de um carnaval distinto e do reforço das hierarquias dominantes do masculino.

Ao adentar o século XX, o carnaval porto-alegrense era marcado por uma multiplicidade de práticas e expressões festivas: bailes (públicos, de agremiações recreativas e das carnavalescas), desfiles (de sociedades e clubes carnavalescos), jogo do entrudo, de confete e serpentina, mascarados e o Zé Pereira que também tomavam conta das ruas. Celebrado no centro ou nos arrabaldes, o carnaval também era assinalado pela hierarquização de raça, de classe e de gênero que caracterizava aquela sociedade. Enquanto Esmeralda e Venezianos, conhecidas pela “excelência do pessoal que tomava parte nos festejos” (A Federação, Porto Alegre, 28 de fevereiro de 1900), buscavam a imagem de um carnaval familiar e moralizado, a festa promovida por outros segmentos sociais era tida como “licenciosa libertinagem [...], uma ameaça feroz e real às bases sacratíssimas do lar, à moral da família que é o fundamento do edifício social” (O Independente, Porto Alegre, 9 de março de 1905). Sofrendo a mediação de um positivismo difuso, que inspirava a política, a religião e a vida intelectual de então, por meio do carnaval expressava-se as tensões, os conflitos, as disputas e as alianças a respeito dos valores que definiriam os viver em sociedade.

Durante os anos vinte, diversos blocos e cordões carnavalescos passaram a tomar conta do festejo: Bloco dos Tigres, Bloco dos Democráticos, Bloco dos Sentenciados, Bloco dos Fidalgos, Cordão Chora na Esquina, Bloco dos Exagerados, Cordão Esponja Branca, Cordão Triângulo Verde, Cordão dos Varinhas, para citar alguns nomes. O jornal A Manhã, promovendo um concurso, de voto popular, para definir o melhor bloco, clube ou cordão do carnaval de 1922, definiu essas categorias da seguinte forma: “Bloco eram agrupamentos com um Zé Pereira, Cordões eram grupamentos maiores, com estudantina (sopro), e Clubes (ou Sociedades) eram aqueles que faziam préstitos (desfile com carros)” (GARCIA,s/d, p.27). Nos anos trinta, o carnaval descentralizado, de bairro, ganhava força. Os blocos e bandas de cunho humorístico, como o Tira o Dedo do Pudim, de Vicente Rao, eram a marca do carnaval. Os blocos reuniam as camadas populares da cidade e os bairros Santana e Cidade Baixa tornam-se o palco da festa. É nesse momento que o carnaval também começa adquirir um status de símbolo da identidade nacional, ao mesmo tempo em que se relegava a “segundo plano as múltiplas formas de construção de identidades que se manifestavam durante os dias consagrados a Momo” (ROSA, 2008, p.6). Com o Estado Novo (1937), uma série de normatizações foram lançadas a fim de se manter a ordem durante a folia, além da obrigatoriedade do caráter didático dos desfiles das entidades carnavalescas. Na década de 1940, surgiam as tribos carnavalescas, agremiações específicas do carnaval porto-alegrense: Caetés, Iracemas (composta apenas por mulheres), Comanches, Guaianases, entre outras. Dentro da lógica do carnaval como símbolo da brasilidade, as tribos - compostas por brancos e negros das camadas populares - representariam aqueles que seriam os verdadeiros donos da terra, os indígenas, através de suas histórias, figurinos, cenários e canção (RAYMUNDO, 2013).

Abordando alguns aspectos da construção identitária negra em Porto Alegre através do estudo do carnaval, Íris Germano (1999) enfocou os diferentes modos como os grupos afrodescendentes locais se apropriaram da festa e compuseram suas identidades como negros, porto-alegrenses, gaúchos e brasileiros. Segundo a autora, o carnaval de rua de Porto Alegre nas décadas de 1930 e 40 esteve fortemente relacionado aos descendentes de africanos e aos territórios por eles estabelecidos no interior da cidade, tais como Areal da Baronesa, Ilhota, Cabo Rocha e Colônia Africana”. Associado a uma história de resistência, o carnaval tornou-se um referencial de consolidação da identidade negra em Porto Alegre, com forte carga simbólica de identificação coletiva, evocada até os dias de hoje (GERMANO, 1999, p. 261). Tendo como marco temporal também as décadas de 1930 e 1940, Marcus de Freitas Rosa (2008, p.6) buscou enfatizar a multiplicidade de sujeitos e modos de organização, a variedade de sentidos e a diversidade dos lugares da festa, olhando para a construção de hierarquias e distinções, aproximações e distanciamentos e os conflitos e solidariedades estabelecidos entre os variados agrupamentos carnavalescos da cidade, num período em que “os folguedos ‘populares’ foram submetidos a um intenso processo de transformação em ‘ícones de brasilidade'''. Fora do âmbito acadêmico há de se mencionar Memórias de um Carnavalesco (s/d), de Hemérito de Barros, fundador de alguns grupos carnavalescos, entre eles o Bambas da Orgia; e Fragmentos históricos do carnaval de Porto Alegre (s/d), pesquisa publicada por Heitor Carlos Sá Britto Garcia.

A partir da década de 1960, novas transformações se inserem à folia. Inspirado no modelo carioca de fazer carnaval, se introduziu a estrutura de escola de samba: divisão por alas temáticas, maior número de componentes, samba-enredo, mestre-sala e porta-bandeiras. O marco da inovação é o surgimento da escola de samba Praiana, primeira a apresentar essa nova configuração. Dos antigos blocos carnavalescos, alguns também a incorporaram, transformando-se em escolas de samba, como os Bambas da Orgia, Embaixadores do Ritmo e Fidalgos e Aristocráticos; outros, porém, acabaram por desaparecer. Associado a isso, houve uma centralização da festa, com ênfase para o desfile oficial de carnaval, e a criação da Associação das Entidades Carnavalescas. No que tange à festividade celebrada nesse formato, Helena Cattani (2014, p.6) analisou o processo de cariocalização do carnaval de Porto Alegre, buscando compreender como, a partir da década de 1960, foi incorporado o modelo carioca de fazer carnaval, tornando-se esta uma das únicas formas de comemorar os dias do rei Momo”. De acordo com a autora, é possível afirmar que isso se deu ao longo dos 11 anos em que a COMTUR esteve à frente dos festejos, “quando uma das principais características regionais, os desfiles de bairros, foram substituídos por um carnaval oficial, organizado e planejado pelo poder público, inserido no calendário cultural da cidade e estando este diretamente envolvido em todas as esferas que envolviam a celebração (CATTANI, 2014, p. 105).

Investigando a trajetória e o papel da Sociedade Recreativa e Beneficiente Estado Maior da Restinga na construção e visibilidade do bairro Restinga, Tavama Santos (2011, p.85) pesquisou os anos de 1977 a 2002 e verificou que a escola de samba “constitui-se como um espaço de encontro e de identidade fundamental para os moradores da Restinga”. O gosto pelo samba e pelo carnaval serviu como um elemento agregador da comunidade, a fim de enfrentar as adversidades encontradas. Já Laura Galli (2019) abordou o processo que desencadeou na transferência dos desfiles de Carnaval das escolas de samba do centro de Porto Alegre para a área do Porto Seco, na Zona Norte da cidade (1994-2004), buscando entender qual o lugar do Carnaval na cidade. Destaca-se ainda o trabalho Carnavais de Porto Alegre, de Flávio Krawczyk, Íris Germano e Zita Possamai publicado pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre, com objetivo de divulgação ao grande público[4].


2. Acervos e fontes dos carnavais de Porto Alegre

Nessa breve revisão historiográfica, pudemos perceber que há uma escassez de trabalhos acadêmicos que consideram o carnaval de Porto Alegre um objeto válido de pesquisa, sobretudo quando comparado com outros lugares do “país do carnaval”. A explicação para essa ausência pode residir no fato de a história do Rio Grande do Sul ser marcada por uma forte construção identitária regional, opondo-se à nacional. Ao adquirir o status de símbolo nacional, da brasilidade, o carnaval contrapunha-se ao regionalismo gauchesco e perdia visibilidade enquanto festejo a ser celebrado. Além disso, a associação da festa às camadas populares, majoritariamente negras, num lugar que invisibilizou a presença de africanos e seus descendentes e exaltou a contribuição dos imigrantes europeus em sua formação, fez com que o carnaval parecesse não ser uma festa a ser celebrada no Rio Grande do Sul e, especialmente, em sua capital (ROSA, 2008).

A falta de visibilidade do festejo de Momo na cidade também é verificada a partir da inexistência de instituições de guarda da memória específicas do carnaval. Algumas, contudo, buscaram evidenciar a festa através de exposições e destaque de seus acervos. Em 2011, a Prefeitura Municipal de Porto Alegre, em parceria com a Carris, por meio de sua Unidade de Documentação e Memória, promoveu a exposição “Salve o Samba! A identidade negra no carnaval porto-alegrense”. A mostra fotográfica, idealizada pela jornalista Clarissa Lima, objetivava resgatar fragmentos da história do Carnaval protagonizada pelo povo negro (PORTO ALEGRE, 2011). Já o Museu de Porto Alegre Joaquim José Felizardo, em 2019, realizou uma exposição temporária sobre o carnaval de rua de Porto Alegre, intitulada “Deus Momo vem aí: histórias da folia de rua na Porto Alegre antiga”. A mostra fez uso de seu acervo de indumentária, fotografia e itens arqueológicos, bem como de pesquisa em jornais, revistas e trabalhos acadêmicos, a fim de apresentar as diferentes formas que carnaval de rua assumiu desde o século XIX até a década de 1950, com seus blocos e cordões. Entre os objetos que fazem parte do acervo arqueológico do museu, destacam-se as tampinhas de garrafas de lança-perfume, provavelmente dos anos de 1940 e 1950, que foram encontradas na rede de esgoto de ruas do centro da cidade, bem como roupas e objetos do Rei Momo Vicente Rao (TV BRASIL, 2020). Em 2021, a Casa de Cultura Mário Quintana, sob a curadoria de Diego Vacchi, apresentou a mostra Aos carnavais que virão, reunindo registros fotográficos e documentos históricos sobre os carnavais de rua de Porto Alegre, desde a década de 1930 até os blocos mais recentes, marcados pela retomada no ano de 2007 (RS, 2021).

Embora não haja um museu do carnaval de Porto Alegre, algumas instituições têm em seu acervo uma documentação específica sobre a festividade. O Arquivo Histórico de Porto Alegre Moisés Velhinho, por exemplo, tem a custódia de documentos pertencentes ao sub-fundo da extinta Empresa Pública de Turismo (EPATUR), antiga responsável pelo carnaval[5], no período de 1973 a 1988, que versam sobre os bailes municipais, o carnaval de bairros, o carnaval de rua, concurso de fantasia e das rainhas do carnaval, festa de destaques, festival de músicas carnavalescas, festival de samba enredo, as muambas e outros eventos carnavalescos. A Biblioteca Pública do Estado do Rio Grande do Sul, por sua vez, também detém a guarda de uma documentação oriunda do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (IGTF), órgão vinculado à Secretaria da Cultura (SEDAC), do Rio Grande do Sul, que no índice carnaval apresenta recortes de jornais e revistas sobre a festa, convite para baile da Esmeralda, entre outros. Existe, ainda, uma gama variada de documentos, dispersos em distintos arquivos e museus: o Museu de Comunicação Hipólito José da Costa, em seu acervo museológico, tem filmes mudos e sonoros retratando o carnaval de Porto Alegre, bem como disco com sambas carnavalescos, enquanto sua coleção de imprensa nos dá acesso a inúmeras fontes jornalísticas que abordam a festividade; o Instituto Histórico Geográfico do Rio Grande do Sul, guarda o livro de atas da Sociedade Carnavalesca Esmeralda e o diploma de sócio da Sociedade Carnavalesca Venezianos, que apresentamos abaixo. À vista disso, sublinhamos que um pesquisador interessado em investigar os carnavais de Porto Alegre, deverá percorrer diversos lugares, garimpando as diversas fontes e documentos existentes relativos à festa.

Figura 1 - Diploma de Sócio da Sociedade Carnavalesca Venezianos.



Fonte: Acervo do Instituto Histórico-Geográfico do Rio Grande do Sul.

Motivadas pela dificuldade de acesso aos registros a respeito dos carnavais porto-alegrenses, outras iniciativas também têm buscado dar visibilidade à festa e trabalhar em prol da guarda de sua memória. Em 2011, Caroline Leal criou o blogue A Entrudeira, a fim de divulgar os trabalhos acadêmicos produzidos a respeito do festejo de Momo. Fazendo uso de princípios da história pública, o blogue também busca ser um veículo de conhecimento histórico direcionado ao grande público, apresentando fontes documentais de Porto Alegre e seus carnavais (LEAL, 2011). Outro exemplo vem sendo desenvolvido pelo projeto Acervos Errantes, do programa de extensão Estudos em Comunicação Científica na Arquivologia (ECCOA), em parceria com o Centro de Estudos e Pesquisas de Tema Enredo e Memória do Carnaval (Cete). Com vistas a reunir memórias do carnaval de Porto Alegre, a partir da organização do conjunto de documentos pessoais do enredista Sérgio Peixoto, o projeto permitirá que os inúmeros documentos e materiais que um dia pertenceram ao temista possam servir de referência para pesquisadores e entusiastas do Carnaval em Porto Alegre (GARIGHAN, 2021).

Considerações Finais

Ao olharmos para a história dos carnavais de Porto Alegre é possível perceber que a festa foi marcada por uma pluralidade de manifestações, sendo capitaneada por diversos grupos que a seu modo procuraram celebrá-la, extraindo momentos de alegria, de prazer e de diversão, bem como externavam seus sonhos, desejos e projetos.

Para muitas mulheres, o carnaval podia ser uma oportunidade de burla da vigilância sempre atenta dos pais ou ainda de protagonismo nas brincadeiras de entrudo; para alguns homens, o momento de serem reconhecidos enquanto verdadeiros cidadãos, ao proporem “festas civilizadoras”, como esmeraldinos e venezianos. Enquanto espaço de negociação, o carnaval foi ainda possibilidade de reconhecimento e de afirmação de origens étnicas para imigrantes alemães e africanos e seus descendentes, que através da folia também expressavam suas expectativas de integração à cidadania brasileira, através de sua atuação na Sociedade Germânia ou na Sociedade Carnavalesca Os Congos, por exemplo. Já para as elites porto-alegrenses, seja no século XIX ou no XX, festejar o carnaval com seus bailes, préstitos e corsos, era uma forma de distinção social e de reconhecimento enquanto elite. Símbolo de identificação coletiva para segmentos da população negra da cidade, a festa foi um importante referencial de consolidação de suas identidades sendo até hoje evocada, do mesmo modo que, por vezes, foi marcada pela manutenção de hierarquias de raça, gênero e classe social. Deste modo, pode-se afirmar que por meio do reinado de Momo exprimiram-se embates a respeito dos valores que estruturaram a sociedade porto-alegrense ao longo do tempo.

Embora tenha sido - e ainda seja - uma prática festiva muito significativa para boa parte da população porto-alegrense, a fim de contrapor-se a uma ideia de “cultura nacional”, de “brasilidade”, o carnaval acabou por ser invisibilizado enquanto manifestação cultural associada ao Rio Grande do Sul e, mesmo tendo uma grande variedade de documentos e fontes a seu respeito, inexiste uma instituição de guarda voltada especificamente ao festejo. É nesse sentido, portanto, que se assinala a necessidade de políticas públicas com vistas à patrimonialização das expressões culturais carnavalescas de Porto Alegre. Salvaguardar o carnaval, a memória dos diversos grupos que fizeram e fazem os carnavais porto-alegrenses, são ações que contribuem para a afirmação das identidades culturais de um povo, bem como permitem a sua continuidade, trazendo melhorias e incentivos à mais tradicional festa popular brasileira.

Referências
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CONCEIÇÃO, T.P. Forjas Pedagógicas:rupturas e reinvenções nas corporeidades negras em um bloco de carnaval (Porto Alegre, Brasil). Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.
DUARTE, U.C. O Carnaval Espetáculo no Sul do Brasil. Uma etnografia da cultura carnavalesca nas construções das identidades e nas transformações da festa em Porto Alegre e Uruguaiana. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Universidade Federal do Rio Grande do sul, Porto Alegre, 2011.
GARIGHAN, Grégorie. Projeto reúne memórias do Carnaval de Porto Alegre. Jornal da Universidade, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2021. Disponível em https://www.ufrgs.br/jornal/projeto-reune-memorias-do-carnaval-de-porto-alegre/. Acesso em 03 mai.2022.
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GUTERRES, Liliane S. Sou Imperador até morrer”, um estudo sobre identidade, tempo e sociabilidade em uma Escola de Samba de Porto Alegre. Dissertação (Mestrado em Antropologia), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1996.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2006.
LEAL, C. A Entrudeira, Porto Alegre, 2011. Disponível em http://www.aentrudeira.com.br/. Acesso em 03. mai.2022.
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RAYMUNDO, J. A poética do samba-enredo - a canção das escolas de samba de Porto Alegre. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015.
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RIO GRANDE DO SUL (RS), Estado do. Exposição se desdobra em atividades on-line no Carnaval da Casa de Cultura Mario Quintana, Porto Alegre, 2021. Disponível em https://www.estado.rs.gov.br/exposicao-se-desdobra-em-atividades-on-line-no-carnaval-da-casa-de-cultura-mario-quintana. Acesso em 03 mai. 2022.
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SILVA, Josiane Abrunhosa da. Bambas da Orgia: um estudo sobre o carnaval de rua de Porto Alegre, seus carnavalescos e os territórios negros. Dissertação (Mestrado em Antropologia), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1993.
TV BRASIL. Museu guarda relíquias que contam história do carnaval de Porto Alegre. Youtube. 25 de fev. de 2020. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=LY-MaNLSPxk. Acesso em 08 mai. 2022.

[2]João Câncio Gomes nasceu em Porto Alegre, em 1836. Jornalista, iniciou sua carreira como tipógrafo e colaborador do jornal O Mercantil, aos 16 anos de idade. O jornal O Mercantil foi fundado com João José de Faria Villasboas e circulou em Porto Alegre, entre 1º de dezembro de 1849 e 1865. Em 1874, João Câncio Gomes fundou um periódico homônimo, que circulou até 1897 (FRANCO, 2006).
[3]Em 1878, por exemplo, a Venezianos publicava o programa “para os festejos com que pretende solenizar o carnaval do ano V da era carnavalesca [...]” Mercantil, 02 de março de 1878, p.3.
[4] O carnaval de Porto Alegre também foi objeto de estudo de outras áreas acadêmicas. Na Antropologia, Liliane Guterres (1996) estudou a escola de samba “Imperadores do Samba”e Josiane da Silva (1993), a “Bambas da Orgia”; Ulisses Corrêa Duarte (2012), por sua vez, analisou os significados do carnaval das Escolas de Samba para os carnavalescos no sul do Brasil, centrado nas cidades de Porto Alegre e Uruguaiana. Jackosn Raymundo (2015, em sua dissertação de Mestrado em Literatura Brasileira, analisou a poética cancional das escolas de samba de Porto Alegre e Thiago Pirajira Conceição (2019), na Educação, investigou o processo de criação de artistas cênicos negros de um bloco de carnaval de rua de Porto Alegre, a fim de pensar como eles forjam resistências às categorias hegemônicas que oprimem as subjetividades negras.
[5] A partir de 1989 o carnaval passa a ser responsabilidade da SMC (Secretaria Municipal de Cultura).

Artigo publicado originalmente em Revista Eletrônica Ventilando Acervos, v.especial, n.1, jul.2022.