Alemães no Carnaval de Porto Alegre

O Século, Porto Alegre, 22 de fevereiro de 1885.

O próximo 24 de julho é marcado pelo bicentenário da fundação da Colônia de São Leopoldo, na então Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, e o início da imigração alemã para o Brasil. Influenciando fortemente a vida econômica, política e social dos lugares em que se estabeleceram,  alemães e seus descendentes também fizeram parte do carnaval de Porto Alegre.

Fundada em 1855, por um grupo de alemães da elite da cidade, a sociedade Germânia promoveu diversos bailes e préstitos em homenagem a Momo, a exemplo do chuvoso carnaval de 1885, quando ela "aproveitou uma esteadazinha, na tarde de segunda-feira, e fez o seu passeio, que esteve imponente” (O Século, Porto Alegre, 22/02/1885). Acompanhada por outras sociedades teuto-brasileiras, como a Leopoldina e a Schützenverein, o préstito era composto de “grande numero de carros, uns exibindo espirituosas críticas outros, elegantemente decorados, conduzindo muitas jovens fantasiadas. Sobressaia entre outros o carro de crítica á atual política” (Mercantil, Porto Alegre, 18/02/1885, p.2).

Retratado por Joaquim Samarach (litógrafo espanhol radicado em Porto Alegre, a partir de 1881), a litografia do desfile foi publicada no jornal O Século. 

No canto inferior direito da imagem, observa-se Till Eulenspiegel, personagem dos contos folclóricos alemães, abrindo o préstito. Logo atrás vinha uma banda de música e gaúchos a cavalo, que parecem não ter agradado muito o cronista do jornal A Federação (Porto Alegre, 18/02/1885, p.2): "O Grupo de gaúchos... um perfeito desastre! Aqueles cavalarianos não nos pertencem".

O primeiro carro triunfal era intitulado Germania. Simbolizando as façanhas militares prussianas, a alegoria reproduzia “um monumento erguido por Guilherme II da Prússia, que mostrava uma imensa Germânia, figura feminina em bronze segurando o escudo do Reich e a coroa imperial, em alusão á reconstituição do império (em 1871) e da unidade alemã” (GANS, 2004, p.182). A Germânia era personificada pela “a exma. Sra. D. Carolina Koseritz que fazia ressaltar os seus dotes naturais com a magnificência de seus adornos” (Jornal do Comércio, Porto Alegre, 17/02/1885, p.1). 

Filha do jornalista Carlos Von Koseritz, Carolina nasceu em Porto Alegre, em 1865, e se tornou um dos poucos exemplos de mulheres que “transpuseram os umbrais domésticos para se impor por sua capacidade intelectual” na Porto Alegre oitocentista (FLORES, 1983, p.101). Escritora e tradutora, ela participou intensamente das atividades promovidas pelo Centro Abolicionista, integrando as chamadas Comissões Libertadoras, “responsáveis por promover a libertação dos escravizados em diferentes distritos de Porto Alegre e Pedras Brancas” (DIHLL, 2020, p.43). Seu pai, Carlos Von Koseritz, foi uma das principais lideranças políticas e intelectuais da província do Rio Grande do Sul, na segunda metade do século XIX. Monarquista, anticlerical, defensor do liberalismo, professava ideias cientificistas que, provavelmente, influenciaram a exibição do grupo intitulado “darwinismo”, no passeio carnavalesco da Germânia, em 1879. Figura de destaque no jornalismo e defensor da integração teuta à sociedade local através da política, elegeu-se deputado provincial, exercendo mandato a partir de 1883, mesmo ano em que se tornava alvo de crítica carnavalesca, sendo retratado no desfile da sociedade carnavalesca Esmeralda, “de barretina e espada à cintura”, sob o nome de O Capiton (FERREIRA, 1970, p.67). Do carro de crítica apresentado pela agremiação também eram distribuídos versos, assinados com suas iniciais (C. v. K.), em que se satirizava “seu perfil intelectual pouco comum para o ambiente provinciano”, ao mesmo passo em que se manifestavam as “suspeitas e ressentimentos que sua dupla nacionalidade podia despertar entre os brasileiros” (LAZZARI, 1998, p. 124).

Indígenas a cavalo davam sequência ao desfile e puxavam o segundo carro triunfal, intitulado Brasil. Segundo o jornal A  Federação, era "representado por um grupo de bugres". Utilizando a denominação pejorativa dada aos indígenas por não serem cristãos, o jornal contribuía para o reforço da dominação colonial e segregação dos povos originários, mesmo tendo a agremiação os identificado como verdadeiros representantes do Brasil. A partir de então, a agremiação apresentava os carros de crítica:  “o século XVIII, a diligência; o século XIX, a locomotiva; o século XX, o balão” (A Federação, Porto Alegre, 18/02/1885, p. 2). 

No carro seguinte, Linguiça dos Prados, eram retratadas “as típicas cenas do Prado, nas quais o relho e as facas ocupam lugar central. Sobre um grande cavalo de balanço, dois jockeys competiam. [...] No alto pairava uma grande lingüiça, em alusão à wurstymacherei então corrente nos prados” (Koseritz Deutsche Zeitung, Porto Alegre, 21/02/1885). Em seguida, um carro em alusão ao Jardim Botânico e outro às minas de Carvão de São Jerônimo, no qual "'encantadoras mineiras' trabalhavam em um poço novo, o Poço Isabel, de dentro do qual espiavam alguns duendes" (GANS, 2004, p.185). A partir de 1883, com a criação da Companhia de Minas de Carvão de Pedra de Arroio dos Ratos, se iniciou a exploração do carvão na cidade de São Jerônimo e, no mês anterior ao desfile da Germânia, contando com a presença da princesa imperial e de seu esposo, conde D´Eu, era inaugurado o Poço da Izabel, "simbolizando a importância que esse ramo de produção tinha para os governantes de então, quando o carvão passava a expressar progresso para a sociedade e ganhava o status de ouro negro, comparado com metais nobres" (KLOVAN, 2008, p.2).

Em outro bloco, uma gangorra, satirizava a disputa entre liberais e conservadores. Nos extremos da gangorra “Dr. Barcellos e Silveira Martins procuravam manter-se equilibrados. Subiam os liberais e Martins passava a discursar em alta voz e a distribuir panfletos liberais” (Koseritz Deutsche Zeitung, Porto Alegre, 21/02/1885).

Após banda de música, composta também por crianças rufando tambores, e cavalarianos, o préstito vinha com seu terceiro carro triunfal, o do príncipe e princesa do carnaval (A Federação, Porto Alegre, 18/02/1885, p. 2). 

Seguindo o desfile e fazendo uma crítica ao colonialismo alemão, a Germânia apresentava o carro Angra Pequena, onde eram retratados “os habitantes do ‘continente negro’, sob palmeiras e bananeiras, vivendo em paradisíaca inocência, sem ter a menor ideia do que vinha a ser o ‘regime tutelar’” (Koseritz Deutsche Zeitung, Porto Alegre, 21/02/1885). Baía localizada na costa desértica da Namíbia, inicialmente explorada pelos portugueses, Angra Pequena se tornou colônia do Império Alemão a partir de 1884. Anos antes, o comerciante alemão Adolf Eduard Lüderitz havia ocupado a região e, em função da ameaça dos povos locais em requerer o auxílio inglês, Lüderitz solicitou a proteção do Império Alemão (CHIPALANGA, 2022). Satirizando o antigo envolvimento de Portugual e Inglaterra e a entrada tardia da Alemanha na dominação colonial do continente africano, o jornal Koseritz Deutsche Zeitung, de propriedade de Carlos Von Koseritz, seguia detalhando a alegoria: “acima deles pairava a bandeira alemã para qual olhavam com certa estranheza, já que esta lhes parecia menos colorida do que aquela há muito conhecida da Inglaterra e de Portugal” (Koseritz Deutsche Zeitung, Porto Alegre, 21/02/1885).


Seguindo com os carros de crítica, a Germânia apresentava Os Abusos da Hidráulica, no qual mostrava um hidrômetro pinga-pinga e a presença de funcionários da companhia que negavam aos usuários explicações sobre o extrato indicador do consumo" (GANS, 2004, p.186). A fim de melhorar o abastecimento de água na cidade, na década de 1860 havia sido criada a Companhia Hidráulica Porto-Alegrense, porém, vinte anos depois, o sistema já se mostrava deficitário e a empresa passou a ser fortemente criticada pela população. Dessa forma, poucos meses após o desfile, seria autorizado a criação de uma empresa concorrente, a Companhia Hidráulica Guaibense, que passaria a operar comercialmente a partir de 1891 (FRANCO, 2006).

Um acampamento militar era o assunto retratado no carro do canto direito da imagem: “em frente a uma barraca via-se um barril de cerveja e armas recostadas onde membros da infantaria prussiana [...] eram servidos por cinco ‘adoráveis’ Marketenderinnen, mulheres que exerciam aqui, o comércio informal de mantimentos comumente realizado no front ou durante as manobras” (GANS, 2004, p.29). Nesse sentido, Gans ressalta que houve uma inversão de gênero na exibição da Germânia, no que tange às profissões, na qual trabalhos ditos masculinos foram representados por mulheres, como por exemplo, a referida alegoria ou ainda aquela que retratou a mina de carvão São Jerônimo, sendo mineiras as representantes do grupo.

Logo após vinha o carro Deus Baco e as Vivandeiras, que segundo o jornal A Federação (Porto Alegre,18/02/1885, p.2) já havia sido apresentando em anos anteriores e "de um modo mais completo" e, na sequência, Lorelei, “uma linda jovem que, sentada sobre um rochedo à beira do Reno, enfeitiça, com seu canto os timoneiros que acabam por perder o controle da nau e naufragam” (GANS, 2004, p.29). Essa alegoria era inspirada em lendas germânicas, datadas do início do século XIX, que deram nome ao penhasco localizado junto ao rio Reno, no estado da Renânia-Palatinado, onde numerosos marinheiros perderam suas vidas ao longo do tempo (MENESES, 2020).


Depois de Lorilei, seguia o carro de crítica ao Boxe Inglês, esporte que vinha sendo legalizado, a partir da introdução das Regras do Marquês de Queensberry, em 1867, e que obrigava o uso de luvas, rounds de três minutos, ringue apropriado, entre outros. No Brasil, os primeiros praticantes foram imigrantes alemães e italianos que se deslocaram para o Rio Grande de Sul e São Paulo. Seguia-se, ainda, o carro de críticas aos curandeiros, que de acordo com o jornal A Federação pecava pela falta de espírito. Encerrando o desfile, a Crítica do Transporte Colonial, que era "realizado com mulas e, durante a estação da seca, quando as precárias estradas (se é que havia) o permitiam" (GANS, 2004, p. 93).


Permeado por elementos que faziam referência à germanidade, Till Eulenspiegel, Lorelei ou acampamento militar prussiano, o desfile da Germânia também buscou apresentar temáticas que se referiam a questões locais, como as minas de São Jerônimo ou as disputas políticas entre liberais e conservadores.  De acordo com Gertz (2022, p.7), imigrantes alemães e seus descendentes enfrentaram restrições ao exercício da cidadania, que só foram sendo eliminadas, gradativamente, na segunda metade do século XIX. No que tange à participação política, por exemplo, foi somente em 1881 que os naturalizados e não católicos tiveram o direito ao voto.

A partir disso, é possível verificar que, apesar da Germânia ser reconhecida por seu caráter étnico, o qual buscava demarcar em suas exibições e festividades, ela também não deixava de manifestar expectativas de exercício de cidadania, ao "demandarem serviços básicos eficientes (como o transporte colonial, os serviços da Cia Hidráulica e atendimento médico adequado)" (GANS, 2005, p. 189), bem como sua intenção de integração à sociedade local, tanto que em seu desfile trouxe um grupo de gaúchos vestidos em trajes típicos e montados a cavalos. Cabe observar que, dois anos antes, a sociedade carnavalesca Esmeralda havia apresentado um carro de crítica à figura de Kosertiz (naturalizado, não-católico, recém eleito para Assembleia provincial) em que ele revelaria seu “desprezo pelos brasileiros, índios e negros e confessa[va] planos de entregar terras brasileiras à Alemanha de Bismarck” (LAZZARI, 1998, p. 124). Buscando serenar a desconfiança que muitos nativos pudessem ter diante de alemães e seus descendentes, a Germânia talvez tenha procurado apresentar outra versão de sua presença na cidade, escolhendo temáticas que expressavam a constituição do ser “teuto-brasileiro, ou seja, pessoas conscientes de seus direitos e suas obrigações perante a sociedade e, ao mesmo tempo, moldadas com entusiasmo à língua e às tradições culturais de origem” (GREGORY, 2013, p.156).


Aproveita e confere o vídeo  com o desfile da Germânia de 1885!


Referências

CHIPALANGA, D. C.. A independência da Namíbia e o desmoronamento do sistema do apartheid na África do Sul. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura no Ensino de História). Instituto Superior de Ciências da Educação da Huíla, Lubango, 2022.
DIHLL, Tuane L.. “Anjos da caridade”: as mulheres integrantes do centro abolicionista de Porto Alegre (séc. XIX/ RS). Revista do Instituto Histórico Geográfico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, n. 159, p. 41-66, dezembro de 2020.
FERREIRA, Athos Damasceno. O Carnaval porto-alegrense no século XIX. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1970.GANS, Magda. Presença teuta em Porto Alegre no século XIX (1850 – 1889). Porto Alegre: Editora da UFRGS/ANPUH/RS, 2004.
FLORES, H. A. H. CAROLINA VON KOSERITZ. Estudos Ibero-Americanos, v. 9, n. 1, 2, p. 101–110, 1983. Disponível em   https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/iberoamericana/article/view/36354. Acesso em 12 jun. 2023.
GANS, Magda. Presença teuta em Porto Alegre no século XIX (1850 – 1889). Porto Alegre: Editora da UFRGS/ANPUH/RS, 2004.
GERTZ, René. Alemães em Porto Alegre: sua presença no trabalho, na cultura, no comércio, na indústria. In: Kühn, Fábio; Scott, Ana Sílvia Volpi (orgs.). Porto Alegre 250 anos: de uma vila escravista a uma cidade de imigrantes (séculos XVIII e XIX). São Leopoldo: Oikos Editora, 2022.
KLOVAN, Felipe Figueiró. Sob o fardo do ouro negro: as experiências de exploração e resistência dos mineiros de carvão em 1933 - 1935 na região de São Jerônimo (RS). Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em História), UFRGS, Porto Alegre, 2008.
MENESES, A. B..  Sereias: sedução e saber. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n.75, 2020. Disponível em  https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i75p71-93.  Acesso em12 jun. 2023.GREGORY, Valdir. Imigração alemã no Brasil. Cadernos Adenauer XIV, edição especial, 2013. Disponível em https://www.kas.de/c/document_library/get_file?uuid=6784b18c-388e-36b9-7404-2f6de3f23a15&groupId=265553. Acesso em 25 jun. 2023.
Franco, Sérgio da Costa. Guia Histórico de Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da Universidade (UFRGS), 2006.
LAZZARI, Alexandre. Certas coisas não são para que o povo as faça: Carnaval em Porto Alegre (1879-1915). Dissertação (Mestrado em História),  IFCH/UNICAMP, Campinas, 1998.

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