Seguindo na vibe dos bailes de carnaval, hoje apresentamos uma partitura de valsa para piano, oferecida à Sociedade Carnavalesca Esmeralda, em 1908.
A valsa, gênero musical de compasso ternário, desde que superou o minueto, tornou-se o ritmo mais dançante nas manifestações musicais do século XIX. Surgida na Áustria e na Alemanha, chegou ao Brasil após a transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, através do músico austríaco Sigismund Neukomm. Vivendo no Rio de Janeiro, entre 1816 e 1821, ele foi professor de música de membros da família real e autor de "Fantasia a Grande Orquestra sobre uma Pequena Valsa de S. A. R.. o Principe d. Pedro" (1816). Há de se destacar também a referência a um arranjo para orquestra de seis valsas compostas pelo futuro imperador do Brasil.
Reinando nos salões do Império, estendeu-se pelo tempo afora, chegando até a República e sendo muito executada nos bailes oferecidos pelas sociedades carnavalescas, como vimos na postagem anterior. Em 1907, por exemplo,o jornal A Federação, ao descrever o baile da Esmeralda, ressaltava que "após a última valsa, os diretores Afonso Beck, membro da comissão central, e Sócrates Taborda Ribas, empunhando o primeiro estandarte da sociedade, ao lado da rainha, organizaram um préstito de retirada, a cuja frente ia a banda musical" (A Federação, 12/02/1907, p.2).
No ano seguinte, a agremiação seria presenteada com Esmeraldina, esta valsa para piano, composta por Alcides Antunes. Compositor gaúcho, também foi autor de modinhas, polcas e schottisch registradas em discos fonográficos. Ainda Palpita o Coração, Ai que sina, O Canto de um Descrente, Ao Cair da Tarde, Vencer o impossível, Meditando, são algumas das modinhas de sua autoria, interpretadas por Xirú, em discos da Casa Hartlieb, prensados no Rio de Janeiro e lançados pela Odeon R (Arquivo Nirez). O compositor atuaria ainda como perito musical, sendo figura importante em um processo de direitos autorais de Cabocla de Caxangá. O documento faz parte do acervo da Discoteca Pública Natho Henn da Casa de Cultura Mário Quintana.
Ao analisar a partitura mais detidamente, vemos que, provavelmente, ela foi escrita para piano, mas é possível que fosse acompanhada por outros instrumentos. A pauta de cima representa a melodia, a parte mais reconhecível da música; enquanto a pauta de baixo é o acompanhamento tocado pela mão esquerda.
Estruturalmente,
a obra é dividida em três grandes partes (A, B, C) que podem ser subdivididas
em frases de 8 compassos, sendo que A e B têm repetições (aquelas barras duplas
e mais largas dividindo a partitura, são sinais de repetição). Ao final vemos o
sinal D. C. ao Fim, que é a indicação para repetir a música desde o
início. Então a estrutura geral é algo como:
AA-BB-C
(e tudo de novo)
Apesar
do compasso ternário (ritmo com três “batidas” ou pulsos por compasso), a
métrica é quaternária, ou seja, cada pequena frase musical se estende por
quatro compassos, sendo sempre um jogo de pergunta e resposta melódica, onde o
primeiro pedaço da melodia dá a entender que tem uma continuação, enquanto a
segunda parte termina em repouso ou resolução, como se a música pudesse acabar
ali mesmo. Sendo assim, para cada grande parte da música temos sempre frases de
8 compassos (pergunta e resposta), que dividimos em A1, A2, A3 e A4, e assim por
diante.
Para
compensar o ritmo constante durante toda a peça, cada frase tem a dinâmica e/ou
expressão alterada. Observe isso já no início: o sinal p significa “piano”,
que é a expressão usada em música para indicar baixinho/pequeno. Porém, já na
próxima seção A2, veja o sinal f, que significa forte. A2 também
tem mais notas, causando um contraste com a frase anterior que só tinha notas
longas. Além disso, aqueles pontinhos acima das notas chamam-se staccato:
sinais de expressão que indicam uma nota precisa e destacada, ou seja,
“separadas” umas nas outras. Portanto, apesar de o ritmo/pulso ser constante, o
compositor mantém o interesse alterando outros aspectos da música, alternando
entre frases com notas mais longas e sustentadas e outras curtas e destacadas
ou trechos fortes e suaves, etc.
A obra tem um aspecto crescente, sendo que A e B se diferenciam pelo caráter, mas em C temos a diferença de caráter e também de intensidade. Veja, na segunda página, que a secção C já começa com o sinal ff (“fortíssimo”), que é seguido pelo mesmo padrão de alternância entre forte e suave. Por fim, Antunes decide encerrar com uma frase delicada, mas com harmonia ligeiramente diferente do resto da música, o que é um recurso de composição bem conhecido, que causa uma quebra na expectativa e ao mesmo tempo satisfaz o ouvinte porque ele faz novamente aquele retorno ao ponto de repouso ao final e ainda destaca isso repetindo no final os acordes de tensão > repouso, como uma reafirmação de que aquele é o fim da peça. Esse final é aquele encerramento cliché de obras clássicas, muito característico no contexto dessa peça.
E "dando vida" a nossa fonte documental, segue abaixo o registro fonográfico de Esmeraldina, lindo trabalho realizado pelo professor Alexandre Paoli. Confiram também a descrição do vídeo, onde o professor relata suas escolhas para a interpretação musical.
- Valsa e outros ritmos
KIEFER, Bruno. Música e dança popular: sua influência na música erudita. Porto Alegre: Editora Movimento, 1979.
BREIDE, Nadge. Valsas de Radamés Gnattali: um estudo histórico-analítico. Tese (Doutorado em Música), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.
- Fonogramas de Alcides Antunes